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A Parte Obscura de Nos Mesmos - Elisabeth Roudinesco

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Academic year: 2021

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

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Elisabeth Roudinesco

A parte obscura de nós mesmos Um a história dos perversos

Tradução: André Telles

Revisão técnica: Marco Antonio Coutinho Jorge Programa de Pós-graduação em Psicanálise,

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Transmissão da Psicanálise

diretor:

Marco

Antonio

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Sumário

Introdução

1 O sublime e o abjeto

2 Sade para e contra si mesmo

3 Iluminismo sombrio ou ciência bárbara?

4 As confissões de Auschwitz

5 A sociedade perversa Agradecim entos

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“Quanto m aior a beleza, m aior a ignom ínia.” GEORGES BATAILLE

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Introdução

Em bora as perversões sexuais constituam obj eto de diversos estudos, dentre os quais dicionários especializados (de sexologia, de erotism o, de pornografia), não tem os nenhum a história dos perversos. No que se refere à perversão enquanto denom inação, estrutura e vocábulo, não foi estudada senão pelos psicanalistas.

Inspirando-se em Georges Bataille, Michel Foucault planej ara incluir em sua História da sexualidade um capítulo dedicado ao povo dos perversos, isto é, aos que são designados com o tais pelas sociedades hum anas, preocupadas em se distanciar de um a parte m aldita de si m esm as. Inversam ente sim étricas às vidas exem plares dos hom ens ilustres, dizia ele em sum a, as dos perversos são inom ináveis: infam es, m inúsculas, anônim as, m iseráveis.1

Essas vidas paralelas e anorm ais, com o sabem os, são inenarráveis, não tendo em geral outro eco senão o de sua condenação. E, quando adquirem um a reputação, é m ediante o poder de um a crim inalidade excepcional, j ulgada bestial, m onstruosa, inum ana, vista com o extrínseca à própria hum anidade do hom em . Atesta isso a história incessantem ente reinventada dos grandes crim inosos perversos, de epítetos assustadores: Gilles de Rais (Barba Azul), George Chapm an (Jack o Estripador), Erzebet Bathory (a Condessa de Sangue), Peter Kürten (o Vam piro de Düsseldorf).2 Infindavelm ente representados em rom ances, contos, film es ou m onografias, essas criaturas m alditas suscitam , por seu estranho status — m etade hom ens, m etade anim ais —, um fascínio recorrente.

Eis por que entrarem os aqui no universo da perversão, bem com o na vida paralela dos perversos, pela via da m etam orfose e da anim alidade, dois tem as universais. Menos por interm édio dos poem as épicos que relatam a transform ação dos hom ens em anim ais, fontes ou vegetais que pelo m ergulho no pesadelo de um a infinita redefinição, que faz aparecer, em toda a sua crueldade, o que o hom em procura travestir. Com 20 anos de intervalo, entre 1890 e 1914, dois personagens da literatura européia, Dorian Gray e Gregor Sam sa,3 investiram -se de suas form as, um para fazer cintilar contra a m edicina m ental a grandeza do desej o perverso no cerne de um a aristocracia caduca que preferia servir à arte em vez de ao poder, o outro para desm ascarar a nudez abj eta no cerne da norm alidade burguesa.

Identificado com seu retrato, de um a beleza deslum brante, Dorian Gray entrega-se secretam ente ao vício e ao crim e ao m esm o tem po em que leva um a vida opulenta. Em bora conserve os traços de sua eterna j uventude, as

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m etam orfoses de sua subj etividade pervertida gravam -se sobre a obra pintada, tais com o em blem as de um a raça m aldita. Quanto a Gregor Sam sa, sua m utação radical em um inseto gigante revela, ao contrário, a grandeza de sua alm a sedenta de ternura. Mas o ódio suscitado nos seus fam iliares pela visão de seu corpo im undo o levará a deixar-se apodrecer, e depois a ser expelido com o um dej eto, após ter sido apedrej ado pelo pai.

Onde com eça a perversão e quem são os perversos?4 Eis a pergunta a que este livro tenta responder, reunindo abordagens até então independentes, m isturando a um a análise da noção de perversão não apenas retratos de perversos e um a exposição das grandes perversões sexuais, com o tam bém um a crítica das teorias e das práticas elaboradas, sobretudo a partir do século XIX, para pensar a perversão e designar os perversos.

Acom panharem os o desenrolar dessa história através de cinco capítulos, ao longo dos quais serão abordados sucessivam ente: a época m edieval, com Gilles de Rais, os santos m ísticos, os flagelantes; o século XVIII, em torno da vida e da obra do m arquês de Sade; o século XIX, o da m edicina m ental, com sua descrição das perversões sexuais e sua obsessão pela criança m asturbadora, o hom ossexual e a m ulher histérica; por fim , o século XX, em que se opera, com o nazism o — e sobretudo nas confissões de Rudolf Höss a respeito de Auschwitz —, a m etam orfose m ais abj eta possível da perversão, antes que esta term ine por ser qualificada, em nossos dias, com o um distúrbio de identidade, um estado de delinqüência, um desvio, sem que com isso cesse de se desdobrar em m últiplas facetas: zoofilia, pedofilia, terrorism o, transexualidade.

Confundida com a perversidade, a perversão era vista antigam ente — em especial da Idade Média ao fim da idade clássica5 — com o um a form a particular de abalar a ordem natural do m undo e converter os hom ens ao vício,6 tanto para desvirtuá-los e corrom pê-los com o para lhes evitar toda form a de confronto com a soberania do bem e da verdade.

O ato de perverter supunha então a existência de um a autoridade divina. E aquele que se atribuía com o m issão arrastar a hum anidade inteira para a autodestruição não tinha outro destino senão espreitar, no rosto da Lei por ele transgredida, o reflexo do desafio singular que ele lançara a Deus. Dem oníaco, am aldiçoado, crim inoso, devasso, torturador, lascivo, fraudador, charlatão, delituoso, o pervertedor era em prim eiro lugar um a criatura dúbia, atorm entada pela figura do Diabo, m as ao m esm o tem po habitada por um ideal do bem que ele não cessava de destruir a fim de oferecer a Deus, seu senhor e seu carrasco, o espetáculo de seu próprio corpo reduzido a um dej eto.

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autoridade divina, o corpo o da alm a, e o desvio o do m al, a perversão é sem pre, queiram os ou não, sinônim o de perversidade. E, sej am quais forem seus aspectos, ela aponta sem pre, com o antigam ente m as por m eio de novas m etam orfoses, para um a espécie de negativo da liberdade: aniquilam ento, desum anização, ódio, destruição, dom ínio, crueldade, gozo.

Mas a perversão é tam bém criatividade, superação de si, grandeza. Nesse sentido, pode ser entendida com o o acesso à m ais elevada das liberdades, um a vez que autoriza aquele que a encarna a ser sim ultaneam ente carrasco e vítim a, senhor e escravo, bárbaro e civilizado. O fascínio exercido sobre nós pela perversão deve-se precisam ente a que ela pode ser ora sublim e, ora abj eta. Sublim e, ao se m anifestar nos rebeldes de caráter prom etéico, que se negam a se subm eter à lei dos hom ens, ao preço de sua própria exclusão;7 abj eta, ao se tornar, com o no exercício das ditaduras m ais ferozes, a expressão soberana de um a fria destruição de todo laço genealógico.

Sej a gozo do m al ou paixão pelo soberano bem , a perversão é um a circunstância da espécie hum ana: o m undo anim al está excluído dela, assim com o do crim e. Não som ente é um a circunstância hum ana, presente em todas as culturas, com o supõe a preexistência da fala, da linguagem , da arte, até m esm o de um discurso sobre a arte e sobre o sexo: “Im aginem os um a sociedade sem linguagem ”, escreve Roland Barthes, “eis que um hom em nela copula com um a m ulher, a tergo, m isturando à sua ação um pouco de pasta de trigo. Nesse nível, não há nenhum a perversão.”8

A perversão não existe, em outras palavras, senão com o um a extirpação do ser da ordem da natureza. E com isso, através da fala do suj eito, só faz im itar o reino natural de que foi extirpada a fim de m elhor parodiá-lo. Eis efetivam ente por que o discurso do perverso repousa sem pre num m aniqueísm o que parece excluir a parte de som bra à qual não obstante deve sua existência. Absoluto do bem ou loucura do m al, vício ou virtude, danação ou salvação: este é o universo fechado no qual o perverso circula deleitosam ente, fascinado pela idéia de poder libertar-se do tem po e da m orte.9

Se nenhum a perversão é pensável sem a instauração de interditos fundam entais — religiosos ou profanos — que governem as sociedades, nenhum a prática sexual hum ana é possível sem o suporte de um a retórica. E é efetivam ente porque a perversão é desej ável, com o o crim e, o incesto e o excesso, que foi preciso designá-la não apenas com o um a transgressão ou anom alia, m as tam bém com o um discurso noturno em que sem pre se enunciaria, no ódio de si e na fascinação pela m orte, a grande m aldição do gozo ilim itado. Por esta razão — e é Freud o prim eiro a avaliar seu alcance teórico —, ela está presente, decerto em diversos graus, em todas as form as de sexualidade hum ana.

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A perversão, portanto, é um fenôm eno sexual, político, social, psíquico, trans-histórico, estrutural, presente em todas as sociedades hum anas. E se todas as culturas partilham atitudes coerentes — proibição do incesto, delim itação da loucura, designação do m onstruoso ou do anorm al —, a perversão naturalm ente tem seu lugar nessa com binatória. Porém , pelo seu status psíquico, que rem ete à essência de um a clivagem , ela é igualm ente um a necessidade social. Ao m esm o tem po em que preserva a norm a, assegura à espécie hum ana a subsistência de seus prazeres e transgressões. Que faríam os sem Sade, Mishim a, Jean Genet, Pasolini, Hitchcock e m uitos outros, que nos deram as obras m ais refinadas possíveis? Que faríam os se não pudéssem os apontar com o bodes expiatórios — isto é, perversos — aqueles que aceitam traduzir em estranhas atitudes as tendências inconfessáveis que nos habitam e que recalcam os?

Sej am sublim es quando se voltam para a arte, a criação ou a m ística, sej am abj etos quando se entregam às suas pulsões assassinas, os perversos são um a parte de nós m esm os, um a parte de nossa hum anidade, pois exibem o que não cessam os de dissim ular: nossa própria negatividade, a parte obscura de nós m esm os.

1 Michel Foucault, História da sexualidade, vol.1: A vontade de saber (Paris, 1976), Rio de Janeiro, Graal, 2ª ed. 1979; Herculine Babin, dite Alexina B., Paris, Gallim ard, col. Les Vies Parallèles, 1978, apresentado por Michel Foucault. Cf. tam bém Pierre Michon, Vidas minúsculas (Paris, 1984), Rio de Janeiro, Estação Liberdade, 2004.

2 Modelo de M, o Vampiro de Düsseldorf, film e de Fritz Lang (1931), com Peter Lorre no papel do assassino, condenado à m orte por um tribunal de ladrões tão crim inosos quanto ele e que lem bram os nazistas.

3 Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray (1890), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000. Franz Kafka, A metamorfose (1912), São Paulo, Com panhia das Letras, 2000, trad. de Modesto Carone.

4 Forj ado a partir do latim perversio, o substantivo “perversão” surge no francês entre 1308 e 1444 [no português, entre 1562 e 1575, com a m esm a origem ]. Quanto ao adj etivo “perverso”, é atestado em 1190, derivando de perversitas e perversus, particípio passado de pervertere: retornar, derrubar, inverter, m as tam bém erodir, desorganizar, com eter extravagâncias. É, portanto, perverso — não há senão um adj etivo para diversos substantivos — aquele acom etido de perversitas, isto é, de perversidade (ou perversão). Cf. O. Bloch e W. von Wartburg, Dictionnaire étymologique de la langue fran-çaise, Paris, PUF, 1964. E Ém ile Littré: “Transform ação do bem em m al. A perversão dos costum es.

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Distúrbio, perturbação. Há perversão do apetite na pica, da visão na diplopia.”, in Dictionnaire de la langue française, t.5, Paris, Gallim ard-Hachette, 1966. “Pica” é um term o de m edicina derivado de “pega” (a ave que com e todo tipo de coisas). Designa um a perversão do paladar caracterizada pela aversão aos alim entos corriqueiros e pelo desej o de com er substâncias não-nutrientes: carvão, gesso, raízes. A diplopia é um a alteração da visão, um a m á convergência, que faz com que vej am os dois obj etos em lugar de um . 5 Quando será vista com o um a doença pela psiquiatria.

6 Os fam osos sete pecados capitais, definidos pelo catolicism o, são na realidade vícios, excessos, e portanto a expressão dessa desm edida passional e desse gozo do m al que caracterizam a perversão. São cham ados capitais porque deles decorrem os outros, e, a cada um , é atribuída um a figura do Diabo: avareza (Mam m on), ira (Satã), invej a (Leviatã), gula (Belzebu), luxúria (Asm odeu), orgulho (Lúcifer), preguiça (Belfegor).

7 Cf. Henri Rey -Flaud, Le démenti pervers, Paris, Aubier, 2002.

8 Roland Barthes, Sade, Fourier, Loyola (1971), Œuvres complètes III, Paris, Seuil, 2002, p.857 [ed. bras.: Sade, Fourier, Loyola, São Paulo, Martins Fontes, 2005].

9 Cf. Catherine Millot, Gide, Genet, Mishima: inteligência da perversão (Paris, 1996), Rio de Janeiro, Com panhia de Freud, 2004.

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O sublime e o abjeto

Durante séculos, os hom ens j ulgaram que o universo era regido por um princípio divino e que os deuses os faziam sofrer para os ensinar a não se tom arem por seus iguais. Dessa form a, os deuses da Grécia antiga puniam os hom ens acom etidos pela desm edida (hybris).1 E é através do grande relato das dinastias reais — Atridas ou Labdácidas — que podem os m elhor captar o m ovim ento alternado que levava o herói, esse sem ideus, a ocupar ora o lugar de um déspota, arrebatado pela em briaguez do poder, ora o de um a vítim a subm etida a um destino im placável.

Em tal universo, todo hom em era ao m esm o tem po ele m esm o e seu contrário — herói e velhaco —, m as nem os hom ens nem os deuses eram perversos. E no entanto, no cerne desse sistem a de pensam ento que definia os contornos da Lei e de sua transgressão, da norm a e de sua inversão, todo hom em que alcançava o topo da glória corria sem pre o risco de ser constrangido a se descobrir perverso — isto é, m onstruoso, anorm al — e fadado a viver um a vida paralela, a de um a hum anidade abj eta. Édipo é seu protótipo. Após ter sido o m aior rei de sua época, viu-se reduzido ao estado de desonra — rosto m arcado e corpo degenerado — por ter com etido, sem o saber e em virtude do erro de um a genealogia “claudicante”, o pior dos crim es: esposar a m ãe, m atar o pai e ser ao m esm o tem po pai e irm ão de seus próprios filhos, condenado ao opróbrio de sua descendência. Nada é m ais hum ano que esse sofrim ento de um hom em responsável — portanto culpado à sua revelia, sem ter errado — por um destino organizado pelos deuses.

No m undo m edieval, o hom em , corpo e alm a, pertencia não aos deuses, m as a Deus. Consciência culpada, dividida entre queda e redenção, estava destinado a sofrer tanto por suas intenções com o por seus atos. Pois Deus era seu único j uiz. E, com isso, após ter-se feito m onstro por sedução do Dem ônio tentador, que lhe inculcara o gosto pelo vício e a perversidade, ele podia sem pre, pela força de sua fé ou tocado pela graça, voltar a ser tão hum ano quanto o santo

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que aceitava as sevícias enviadas por Deus. Era este o destino do hom em subm etido a essa potência divina: por seu sofrim ento ou m artírio, ele perm itia à com unidade unir-se e aprender a designar o que Georges Bataille cham a de “parte m aldita”2 e que Georges Dum ézil, através da história do deus Loki,3 define com o um lugar heterogêneo necessário à ordem social.

Tanto do lado dos m ísticos, que ofereciam seus corpos a Deus, quanto dos flagelantes, que im itavam a paixão de Cristo, ou ainda quando estudam os o itinerário sangrento e heróico de Gilles de Rais — e provavelm ente em m uitas outras histórias —, encontram os, sob diferentes sem blantes, essa alternância entre sublim e e abj eto que caracteriza a parte obscura de nós m esm os no que esta tem de m ais herético, m as tam bém de m ais lum inoso: um a subj ugação voluntária concebida com o a expressão da m ais elevada das liberdades.

No instigante com entário que fez, em 1982, acerca do destino de um a idiota no século IV, tal com o contado na História lausíaca,4 Michel de Certeau captou fielm ente a estrutura dessa face noturna de nossa hum anidade.

Nessa época, ensina a hagiografia, vivia num m osteiro um a j ovem virgem que sim ulava ser louca. As dem ais passaram a rechaçá-la e a relegaram à cozinha. Ela então com eçou a prestar todo tipo de serviço, a cabeça coberta por um trapo, com endo m igalhas e cascas sem se queixar, m esm o sendo espancada, inj uriada e am aldiçoada. Avisado por um anj o, um santo hom em dirigiu-se ao m osteiro e pediu para conhecer todas as m ulheres, inclusive a apelidada de “esfregão”. Quando esta lhe foi apresentada, ele caiu a seus pés, rogando sua bênção, em m eio às outras m ulheres doravante convencidas de sua santidade. Entretanto, incapaz de suportar a adm iração de suas irm ãs, a “esfregão” abandonou o m osteiro e sum iu para sem pre.

“Um a m ulher, portanto”, escreve Michel de Certeau,

… ela se reconforta apenas no fato de ser esse ponto de abj eção, o “nada” rechaçado. Eis o que ela “prefere”: ser a esfregão … . Ela reivindica para si as m ais hum ildes funções do corpo, perdendo-se num insustentável, abaixo de qualquer linguagem . Mas esse rechaço “repugnante” perm ite às outras m ulheres a partilha das refeições, a com unidade dos signos vestim entares e corporais escolhidos, a com unicação das palavras; a excluída viabiliza toda um a circulação.5

Se, em nossos dias, o term o “abj eção” rem ete ao pior da pornografia6 através das práticas sexuais ligadas à fetichização da urina, das m atérias fecais, do vôm ito ou das secreções corporais,7 ou ainda a um a corrupção de todas as

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interdições, ele não é dissociável, na tradição j udaico-cristã, de sua outra faceta: a aspiração à santidade. Entre o enraizam ento na conspurcação e a elevação ao que os alquim istas cham avam outrora de “volátil”, em sum a, entre as substâncias inferiores — do baixo-ventre e do m onturo — e as superiores — exaltação, glória, superação de si —, existe portanto um a estranha proxim idade, feita de renegação, clivagem , repulsa, atração.

Em outras palavras a im ersão na degradação com anda o acesso a um além da consciência — o sublim inar —, bem com o à sublim ação no sentido freudiano.8 E a travessia do sofrim ento e da decadência leva assim à im ortalidade, suprem a sabedoria da alm a.

Pereça o dia que m e viu nascer

e a noite que disse “um m enino foi concebido”. Que esse dia sej a trevas,

que Deus, lá de cim a, não o reivindique, …

Por que não m orri ao sair do seio, não m orri m al nasci?9

Herói de um a tradição sem ítica, Jó, fiel servo de Deus, vivia rico e feliz. Mas Deus perm itiu que Satã colocasse sua fidelidade à prova. Subitam ente doente e tendo perdido bens e filhos, Jó deita-se no m eio dos excrem entos, coçando suas chagas e lastim ando a inj ustiça de sua desgraça. Quando três am igos vão até ele, sustentando que seu sofrim ento é necessariam ente decorrência de seus pecados, ele grita inocência sem com preender por que um Deus j usto castiga um inocente. Sem lhe responder, Deus lhe restitui fortuna e saúde.

Por essa narrativa, portanto, o hom em deve persistir em sua fé, suportar seus sofrim entos, ainda que inj ustos, e j am ais esperar resposta de Deus, pois é independentem ente de qualquer súplica que Deus o liberta de sua queda e lhe revela sua transcendência. Nesse sentido, a história de Jó faz um desm entido à tradição segundo a qual recom pensas e castigos poderiam sancionar, na vida terrena, os m éritos e erros dos m ortais. Pelo seu poder literário, e pela força com que o herói, ao m esm o tem po em que lastim a sua subm issão, incorpora a inj unção da fala divina, essa parábola inverte a norm a arcaica do dom sacrificial para substituí-la por um a nova norm a, j ulgada superior: Javé, o Ser absoluto — “eu sou aquele que é” —, j am ais tem dívidas a honrar.

Nessa perspectiva, a salvação do hom em reside na aceitação de um sofrim ento incondicional. E esta é a razão de a experiência de Jó ter sido capaz

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de abrir cam inho para as práticas dos m ártires cristãos — e das santas m ais ainda — que farão da destruição do corpo carnal um a arte de viver e das práticas m ais degradantes a expressão do m ais consum ado heroísm o.

Assim , quando foram adotados por determ inados m ísticos,10 os grandes rituais sacrificiais — da flagelação à devoração de excrem entos — tornaram -se a prova de um a santa exaltação. Aniquilar o corpo físico ou expor-se aos suplícios da carne: eis a regra dessa estranha vontade de m etam orfose, única capaz, diziam , de efetuar a passagem do abj eto ao sublim e. E, se por um lado os santos — no im pulso de um a interpretação cristã do livro de Jó — tiveram com o dever prim ordial destruir neles toda form a de desej o de fornicação, as santas, por sua vez, condenaram -se, pela incorporação de dej eções ou pela exibição de seus corpos torturados, a um a esterilização radical de seus ventres doravante pútridos. Hom ens ou m ulheres, os m ártires do Ocidente cristão vieram então a rivalizar em horror na relação corporal que m antinham com Jesus.

Eis efetivam ente por que A legenda áurea, obra pia que relata a vida dos santos, pode ser lida com o um a espécie de prefiguração dessa inversão perversa da Lei que será efetuada por Sade em Os 120 dias de Sodoma. Encontram os ali os m esm os corpos supliciados, nus, degradados. Martírio verm elho, m artírio branco, m artírio verde. Com base no m odelo desse confinam ento m onástico, repleto de m acerações e dores, o m arquês criará, privando-o da presença de Deus, um a espécie de j ardim sexológico, entregue à com binatória de um gozo ilim itado dos corpos.11

Vista com o im pura — porque nascera m ulher —, a santa m ártir devia purificar-se: m etam orfose de um sangue destinado à fecundidade em sangue sacrificial ofertado a Cristo. Porém , diferentem ente do santo, não podia, para “esposar” o Cristo, j am ais ter sido m aculada pelo pecado da carne. E era por sua virgindade que ela se tornava um soldado de Deus, após ter abolido em si a diferença dos sexos: “Com o se passa da virgem ao soldado?”, escreve Jean-Pierre Albert.

Naturalm ente, a m arca de cada sexo subsiste. Assim , enquanto as j ovens virgens sacrificadas são em geral cristãs desde a infância, os soldados convertem -se brutalm ente, sofrendo im ediatam ente o m artírio. Essa diferença entre a vocação precoce das m ulheres e a conversão m ais tardia dos hom ens atravessa toda a história da santidade.12

Portanto, o corpo carnal, putrefato ou torturado, ou ao contrário intacto e sem estigm as, fascinava santos e santas, exaltados pela anorm alidade. Essa relação especial com a carne deve-se provavelm ente ao fato de o cristianism o

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ser a única religião em que Deus assum iu a form a de um corpo hum ano a fim de viver e m orrer com o hum ano e com o vítim a.13 Daí o status atribuído ao corpo. De um lado, este é visto com o a parte viciosa do hom em , oceano de m iséria ou abom inável vestim enta da alm a, e, de outro, é destinado à purificação e à ressurreição: “O corpo do cristão, vivo ou m orto”, escreve Jacques Le Goff, “está na expectativa do corpo de glória de que ele se revestirá caso não se sacie no corpo de m iséria. Toda ideologia funerária cristã vai oscilar entre esse corpo de m iséria e esse corpo de glória e organizar-se em torno do desenraizam ento de um na direção do outro.”14

Mais que qualquer outro, o corpo do rei era m arcado por esse duplo destino. E esta é a razão pela qual os despoj os corporais dos m onarcas, assim com o os dos santos, foram obj eto, durante séculos, de um fetichism o particular, de aspecto pagão, que parecia inverter o grande princípio cristão da m etam orfose “do corpo de m iséria num corpo de glória”. Assim , quando Luís IX m orreu em Túnis, em 25 de agosto de 1270, no início da oitava Cruzada, seus com panheiros ferveram seu corpo em vinho m isturado com água a fim de que as carnes se desprendessem dos ossos, isto é, “da parte preciosa do corpo a ser conservada”.15 Um a vez lavados os ossos, procedeu-se ao corte dos m em bros e partes internas a fim de que as vísceras fossem oferecidas ao rei da Sicília. Quanto à ossada e ao coração, foram depositados na basílica de Saint-Denis. A partir de 1298, depois que Luís IX foi canonizado, suas relíquias — verdadeiras ou falsas — foram dispersadas à m edida que se forj ava a crença em seu poder m ilagroso.

Por ocasião da coroação de Filipe o Belo, o crânio real foi transferido para a Sainte Chapelle, ao passo que os dentes, o queixo e o m axilar ficaram com os m onges. Em seguida, o fracionam ento do esqueleto continuou ao longo de dois séculos sem que j am ais se conseguisse localizar o coração. Na Sicília até 1868, as sagradas vísceras foram então levadas para o exílio pelo últim o dos Bourbon, antes de serem entregues aos padres brancos da catedral de Cartago.16 Após essas m últiplas tribulações, a parte interna do corpo retornou então para o local onde o santo rei encontrara a m orte, j ustam ente no m om ento em que com eçava a se consolidar, na sociedade ocidental, o princípio laico do respeito à integridade do corpo hum ano.17

Em nossos dias, o fetichism o das relíquias é visto com o um a patologia ligada à necrofilia — e, logo, com o um a perversão sexual. Quanto à lei, proíbe qualquer form a de dispersão e com ércio de restos hum anos.18

Michel de Certeau assinala que a configuração m ística que prospera do século XIII ao XVII, para findar com a época do Ilum inism o, levou ao extrem o o

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confronto com a instância decadente do cosm o. Fundam entada no desafio de um a possível restauração da unidade do m undo, em detrim ento da do indivíduo, a literatura m ística apresentaria todos os traços do que ela com bate e postula: “Os m ísticos”, diz ele, “confrontam -se com o luto, esse anj o noturno.”19

Daí a idéia de que a m ística seria um a prova por que um corpo passa, um a “ciência experim ental” que põe em j ogo a alteridade sob a form a do absoluto: não apenas o outro que está em nós, m as a parte esquecida, recalcada, sobre a qual é construída a instituição religiosa — um a parte incognoscível, ligada a um a iniciação. Assim , antes de tudo, ela tem com o lugar “um alhures e com o signo um a anti-sociedade”. Em outros term os, torna-se m ístico “o que se afasta das vias norm ais ou com uns, o que não se inscreve m ais na unidade social de um a fé ou de um a referência religiosa, porém à m argem de um a sociedade que se laiciza e de um saber que se constitui acerca dos obj etos científicos”.20

A esse título, a experiência m ística foi um a m aneira de restabelecer um a com unicação espiritual que corria o risco de se ver abolida na travessia incessantem ente anunciada da Idade Média21 para a época m oderna. Daí seu desdobram ento cada vez m aior à m edida que sua tentativa de reconquista de um a soberania perdida passa a ser revelada exclusivam ente por um léxico corporal ou a criação de um a língua eleita.22

O discurso m ístico, portanto, alim enta-se de desvios, conversões, m argens, anorm alidade. O que ele busca captar, sua m aneira de perverter o corpo, é da ordem do indizível — m as tam bém do essencial.23

Tratando-se de torm entos infligidos à carne, determ inadas santas m ísticas parecem ter sido capazes de um a auto-superação m ais rude que a dos hom ens nos vínculos que instauraram entre as atividades corporais m ais abj etas e as m anifestações m ais sublim es de um a espiritualidade separada da m atéria. Da m esm a form a, os relatos hagiográficos do im aginário cristão são povoados por personagens fem ininos que, após haverem “se casado” com o Cristo, entregam -se, no recôndito de suas celas, a um a busca tanto m ais depurada do êxtase na m edida em que esta não passa do avesso de um tem ível program a de exterm ínio dos corpos.

Marguerite-Marie Alacoque24 dizia-se tão suscetível que a visão da m enor im pureza sobressaltava-lhe o coração. Porém , quando Jesus cham ou-a à ordem , ela só conseguiu lim par o vôm ito de um a doente transform ando-o em sua com ida. Mais tarde, sorveu as m atérias fecais de um a disentérica declarando que aquele contato bucal suscitava nela um a visão de Cristo m antendo-a com a boca colada em sua chaga: “Se eu tivesse m il corpos, m il am ores, m il vidas, os im olaria para lhe ser subm issa.”25

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Catarina de Siena26 afirm ou um dia não ter com ido nada tão delicioso quanto o pus dos seios de um a cancerosa. E ouviu então Jesus lhe falar:

Minha bem -am ada, travaste por m im grandes com bates e, com a m inha aj uda, saíste vitoriosa. Nunca m e foste m ais querida e m ais agradável … . Não apenas desprezaste os prazeres sensuais, com o venceste a natureza bebendo com alegria, por am or a m im , um a horrível beberagem . Pois bem , um a vez que praticaste um a ação acim a da natureza, quero oferecer-te um licor acim a da natureza.27

Num a época em que a m edicina não tratava nem curava, e em que a vida e a m orte pertenciam a Deus, as práticas de em porcalham ento, autodestruição, flagelação ou ascetism o — que m ais tarde serão identificadas com o perversões — não eram senão diferentes m aneiras de os m ísticos identificarem -se com a paixão de Cristo.28 Tratava-se, para aqueles que queriam alcançar a verdadeira santidade, de se m etam orfosear em vítim as que consentissem nos torm entos da carne: viver sem com ida, sem evacuação, sem sono, ver o corpo sexuado com o um am ontoado de im undícies, m utilá-lo, cobri-lo de excrem entos etc. Todas essas práticas levavam aquele que as adotava a exercer sobre si m esm o a soberania de um gozo que ele destinava a Deus.

É a Joris-Karl Huy sm ans que devem os a m ais curiosa biografia de Liduína de Schiedam .29 Situando a história da santa no contexto histórico do fim do século XIV, e princípio do XV, o autor cria o quadro apocalíptico de um a época devastada pela dem ência e a crueldade dos soberanos europeus e am eaçada tanto pelas epidem ias quanto pelo Grande Cism a30 e as heresias m ais extravagantes. Fascinado por esse m undo m edieval, e convencido da suprem acia do poder divino sobre as classificações da ciência m édica de seu tem po, ele retraça, apoiando-se nas m elhores fontes, o itinerário dessa m ística holandesa,31 que quis salvar a alm a da Igrej a e de seus fiéis transform ando seu corpo num m onturo.

Quando seu pai quis casá-la, Liduína explicou que preferia tornar-se feia a sofrer tal destino. Dessa form a, a partir dos 15 anos de idade, horrorizada com a perspectiva de um ato sexual e após ter sido vítim a de um a queda num rio congelado, soçobrou na doença. Um a vez que Deus não pode apegar-se senão a carnes im undas, ela desej ava, dizia, obedecer a esse senhor e servir seu ideal, tornando-se carrasco de si m esm a ao substituir o encanto de seu belo rosto pelo horror de um a face escalavrada. Então, durante 38 anos, levou a vida de um a grabatária, im pondo a seu corpo terríveis sofrim entos: gangrena, epilepsia, peste,

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fratura dos m em bros.

Quanto m ais os m édicos acorriam à sua cabeceira para extirpar o m al, exam inar seus órgãos e, às vezes, retirá-los do corpo para lim pá-los, m ais a doença piorava — sem com isso levá-la à m orte. Assim , a bem -aventurada considerava seu estado com o um dom de Deus. Após a m orte da m ãe, desfez-se de todos os seus bens, incluindo sua cam a. Com o Jó, viveu num a tábua coberta de esterco, am arrada a um a correia de crina que fazia de sua pele um a chaga purulenta.

Depois de apontada com o suspeita de heresia, em virtude de sua resistência à m orte, Liduína foi m arcada por estigm as: de suas m ãos em anava o cheiro dos arôm atas da Índia e das especiarias do Levante. Magistrados, sacerdotes ou pacientes incuráveis atiravam -se a seus pés para receberem sua graça. Teve êxtases e viu aparições. Porém , à noite às vezes soluçava, desafiando seu senhor para em seguida reivindicar-lhe m ais sofrim ento. Na hora de sua m orte, Jesus visitou-a e lhe falou dos horrores dos tem pos de então: reis corruptos e loucos, pilhagens, sabás, m issas negras. Entretanto, enquanto ela se desesperava com a inutilidade de seus suplícios, ele a fez vislum brar o avesso sublim e daquele século abj eto: o exército de santos em m archa rum o à reconquista da salvação.

Quando ela cessou de viver, as testem unhas quiseram saber se, com o ela o predissera, suas m ãos voltariam a se unir. Houve um a exclam ação de j úbilo: a bem -aventurada voltara a ser “o que era antes de suas doenças, viçosa e loura, j ovem e carnuda … . Do corte na testa que tanto a desfigurara, não subsistia nenhum a cicatriz: as úlceras, as feridas haviam desaparecido”.32

Liduína foi canonizada em 1890, e glorificada por Huy sm ans dez anos m ais tarde, no m om ento em que a m edicina m ental classificava os com portam entos transgressivos das m ulheres exaltadas na categoria das perversões: gozo da suj eira, da polução, dos excrem entos, da urina, da lam a.

Utilizando-se de chicote, nervo de boi, chibata, bastão, urtigas, cardos, espinhos, cactos ou de diversos instrum entos de tortura, a flagelação foi, em todas as épocas e culturas, um dos com ponentes m ais im portantes de um a prática especificam ente hum ana que visava a ora punir, ora proporcionar um a satisfação sexual ou influir na procriação.33 Seu uso era freqüente na fam ília ocidental, e m ais ainda nos colégios ingleses, antes da interdição progressiva, durante todo o século XX, dos diferentes tipos de castigos corporais infligidos aos adultos, depois às crianças.

Porém , acim a de tudo, sob a form a da autoflagelação, o uso do chicote teve com o função atar um laço quase ontológico entre o universo dos hom ens e o dos deuses. Os xam ãs viam nela as m olas do êxtase ou de um a perda de si; as m assas pagãs a celebravam com o um rito essencial à fertilidade do solo, do sexo e do

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am or; e, finalm ente, os m onges da cristandade a consideraram , a partir do século XI, instrum ento de um castigo divino que perm itia com bater o relaxam ento dos costum es e transform ar o corpo de gozo, j ulgado abj eto, num corpo m ístico capaz de alcançar a im ortalidade.

Popularizada por Pedro Dam ião,34 a flagelação enquanto prática da servidão voluntária unia a vítim a e o carrasco. Seus adeptos acusavam -se a si m esm os a fim de com pensarem com o sofrim ento o prazer que o vício proporciona ao hom em : prazer do crim e, do sexo, da depravação. Dessa form a, a flagelação tornou-se um a busca do absoluto — essencialm ente m asculina —35 m ediante a qual o suj eito ocupava o lugar de j uiz e de réu, o lugar de Deus pai e o do filho de Deus. Infligir-se um castigo significava querer educar o corpo, dom iná-lo, m as tam bém m ortificá-lo para subm etê-lo a um a ordem divina. Daí o em prego do term o “disciplina” para designar o instrum ento visível que servia à flagelação ou aquele outro, invisível (o cilício ou o pano de crina), usado diretam ente na pele com vistas a provocar um sofrim ento contínuo das carnes.

Com o os santos dos grandes relatos hagiográficos, os flagelantes entregavam -se a atos de m ortificação que, a princípio inspirados na instituição m onástica, não tardaram a assum ir o aspecto de um a autêntica transgressão.

A partir do fim do século XIII, e em ruptura com a Igrej a, os flagelantes form aram grupos errantes para em seguida reagruparem -se em confrarias, a m eio cam inho entre a organização sectária e a corporação laica: “O im portante”, aponta Patrick Vanderm eersch, “… é m anifestar e sentir pessoalm ente e de m aneira profunda que a carne é feia, que seu próprio corpo é m alform ado, e pedir que outra corporeidade instale-se espontaneam ente. A flagelação, portanto, proporcionaria a sensação de um corpo diferente.”36

Um século m ais tarde, e após um período de eclipse, o m ovim ento dos flagelantes ganhou nova am plitude, escapando com pletam ente ao controle da Igrej a. A flagelação tornou-se então um rito disciplinar de aspecto sem ipagão, depois francam ente diabólico. Os hom ens que a ela se entregavam eram oriundos da sociedade e faziam o voto, evocando os anos da vida de Jesus, de perm anecerem durante 33 dias no m ovim ento. Usavam um a túnica branca, cobriam a cabeça com um capuz, vergastavam -se duas vezes por dia brandindo cruzes e entoando hinos religiosos. Para não serem seduzidos nem pela luxúria, nem pela gula, nem por nenhum dos pecados capitais,37 não ingeriam nenhum a alim entação supérflua e renunciavam a qualquer contato sexual. Dedicados ao culto da Im aculada Conceição, procuravam , pela m etam orfose do corpo, esposar outro, virginal, o de Maria, e substituir sua identidade m asculina por outra, assexuada, de um a virgem não m aculada pelo pecado original.

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identitárias e transgressões, os flagelantes acabaram por ser vistos com o possuídos pelas paixões dem oníacas que eles pretendiam vencer.38 No fim do século XIV, voltaram -se contra a Igrej a para anunciar o advento de um Anticristo. João de Gerson39 condenou então essas práticas bárbaras, opondo à idolatria do corpo um cristianism o da palavra fundado no am or e na confissão. Pregando a razão contra o excesso, preferiu substituir a punição exuberante da carne pelo controle espiritual de si.

Deixando de ser um a oferenda a Deus ou um culto m ariano, a flagelação foi então considerada um vício ligado a um a inversão sexual ou a um travestim ento, sobretudo quando o rei Henrique III, hom ossexual notório, foi suspeito de se entregar a ela após ter fundado, em 1583, um a Congregação de Penitentes:

Por volta do século XVI, viu-se, com um refinam ento digno de sua pessoa e de sua corte, o rei Henrique III flagelar-se em público com seus nam orados nas procissões que faziam , vestidos com túnicas brancas, excitando-se dessa form a para as orgias de luxúria às quais, após a cerim ônia, esses pios personagens dedicavam -se nos aposentos secretos do Louvre.40

Antes um rito de m ortificação visando a transform ar o corpo odiado num corpo divino, a flagelação foi então assim ilada a um ato de devassidão. E isto, tanto m ais na m edida em que os penitentes — m etam orfoseados em adeptos de um a sexualidade pervertida — escolhiam não m ais se vergastar as costas, com o queria a antiga tradição, m as a totalidade do corpo — sobretudo as nádegas, receptáculo por excelência de um a poderosa estim ulação erótica. Da m esm a form a, por sinal, experim entavam um prazer extrem o em serem flagelados por outros e flagelarem seus próxim os.

Em 1700, em sua História dos flagelantes, Boileau destacou que a flagelação era “sexual”, um a vez que a “disciplina do baixo [as nádegas] substituíra a do alto [as costas]”. E, para estigm atizá-la com o um desvio — e não m ais apenas com o um vício, no sentido cristão do term o —, baseava-se num a obra de m edicina, prim eira no gênero, dedicada ao “uso de golpes em m atéria de sexo”.41 Mas, acim a de tudo, denunciava sua fem inilização, um a vez que, dizia, era agora praticada secretam ente nos conventos de m ulheres.

Do alto para o baixo, em seguida de Sodom a para Gom orra, a flagelação, a princípio ato purificador, agora não passava senão de um a prática de prazer, centrada na exaltação do eu. E foi sob essa form a que ela se generalizou no século XVIII entre os libertinos: Sade, um de seus m ais fervorosos adeptos, associava-a à sodom ia.

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No fim do século XIX, após a publicação, em 1870, do rom ance A Vênus das peles, de Leopold Sacher-Masoch, a flagelação foi classificada pelos psiquiatras e sexólogos com o protótipo de um a perversão sexual fundada num a relação sadom asoquista entre um dom inante e um dom inado, com o hom em podendo, por exem plo, tornar-se vítim a voluntária de um a m ulher que o obrigasse a ser seu carrasco.42 E com isso, à m edida que se abolia no Ocidente o uso dos castigos corporais com fins punitivos e a ciência m édica tentava classificar suas diferentes práticas, a noção de disciplina foi conceitualizada com o um dos pilares do sistem a de pensam ento típico da perversão: tanto nos m anuais redigidos por j uristas e psiquiatras com o nas obras escritas pelos perversos para popularizar sua ars erotica. Transform ada num j ogo sexual e alheia a qualquer culto a Deus, a “disciplina” designa atualm ente as coerções de dom inação e de obediência às quais se subm etem seus adeptos voluntários, consentâneos e “esclarecidos”.

Adepto da dem onologia, da m ística e da anorm alidade, J.-K. Huy sm ans apaixonou-se pelo destino do m aior crim inoso perverso da época m edieval: Gilles de Rais.43 Mas é a Georges Bataille que devem os a prim eira publicação das m inutas do processo desse Barba Azul enigm ático cuj os atos prefiguravam a inversão sadiana da Lei e pareciam dar conteúdo antropológico à noção de crim e enquanto m anifestação de um a desum anidade característica do hom em : “O crim e”, dizia Bataille,

é próprio da espécie hum ana, é inclusive próprio apenas dessa espécie, m as acim a de tudo é seu aspecto secreto … . Gilles de Rais é um crim inoso trágico: o princípio da tragédia é o crim e, e esse crim inoso foi, m ais que qualquer outro, um personagem de tragédia … . O crim e evidentem ente evoca a noite; o crim e sem a noite não seria crim e, porém , em bora profundo, o horror da noite aspira ao brilho do sol.44

Nascido em 1404, Gilles de Rais pertencia, por parte de pai, à ilustre casa de Laval-Montm orency, e, por parte de m ãe, a um a das fam ílias m ais ricas do reino. Mas o m undo em que ele viveu — o da Guerra dos Cem Anos — achava-se entregue à pilhagem . Transform ados em predadores, os herdeiros da antiga cavalaria tinham o gosto pelo assassinato e a crueldade. Sob o reinado de Carlos VI — m onarca louco —, a rivalidade dos Arm agnac e dos Bourguignon era explorada pela potência inglesa, cada lado assum indo alternadam ente o controle de Paris e do rei sem que j am ais a autoridade real fosse restaurada.

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dois herdeiros viam -se em condições de sucedê-lo: de um lado, um inglês, Henrique VI, filho de Henrique V, ainda criança e apoiado pelos Bourguignon; e, de outro, um francês, Carlos VII, o delfim , deserdado desde 1420 pelo tratado de Troy es e refugiado em Bourges. Entregue a seus inim igos, o herdeiro legítim o da coroa da França não passava, nessas condições, de um rei de m ascarada, à espera de sua sagração e da reconquista de seu reino.

Criado pelo avô m aterno, João de Craon, um riquíssim o senhor feudal, avaro e libertino, Gilles de Rais foi iniciado no crim e aos 11 anos por esse feroz educador, que tanto chorara a perda de seu filho único vencido em Azincourt. Aos 16 anos, Gilles casou-se com Catarina de Thouars, neta da segunda m ulher de seu avô, o que não o im pediu de em seguida tom ar com o am ante seu paj em , por sua vez futuro assassino de crianças: “Diante de Gilles e de seu avô”, escreve Georges Bataille, “é possível im aginar as brutalidades nazistas.”45

Em 1424, Gilles apoderou-se da im ensa fortuna desse avô odioso, pensando em dilapidá-la integralm ente em despesas feéricas e bebedeiras desvairadas. Com seus excessos, destruía as riquezas que o velho senhor feudal acum ulara graças a tram as cínicas e brutalidades prem editadas. À avareza de um sucedia portanto a prodigalidade do outro. Porém , no cerne dessa inversão, perpetuava-se o gozo do m al: com efeito, os dois predadores com partilhavam a m esm a paixão pelo sangue e a m esm a negação da lei dos hom ens.

Preocupado em servir seus próprios interesses j unto à corte de Carlos VII e consciente de que a fúria de Gilles devia ser canalizada, Craon estim ulou seu ingresso na carreira das arm as. Contrariando todas as expectativas, o rapaz, inspirado por um ideal de heroísm o que o arrebatava para além de si m esm o, revelou-se um brilhante líder guerreiro, abandonando então o crim e para se pôr a serviço de um a personalidade oposta à sua: Joana d’Arc.

Sob as ordens de um a virgem guiada por vozes e traj ando roupas m asculinas, Gilles participou do despertar do sentim ento patriótico, fundado no desej o de restaurar a santa unidade do princípio m onárquico. Joana encarnava esse desej o, que ia ao encontro dos de seu avô e dos daquela nobreza crim inosa que abandonara o povo e desistira de im por o próprio princípio da soberania, contentando-se com saques e pilhagens. Em Orléans, depois em Tourelles, em Jargeau depois em Patay, Gilles de Rais guerreou bravam ente, em com panhia de outros senhores de seu tem po, a ponto de receber a alcunha de “m ui valente cavaleiro em arm as”.

Em 17 de j ulho de 1429, trouxe da abadia de Saint-Rem i a am pola contendo o Sagrado Crism a, necessário à unção real. Depois, ao lado de Joana, assistiu em lágrim as à sagração de Reim s. Naquele dia, o m ais glorioso de sua sinistra existência, foi nom eado m arechal de França. Alguns m eses m ais tarde, a pedido da Virgem que adm irava sua bravura, em preendeu o cerco de Paris: “Nesse dia,

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não devem os esquecer”, escreve Bataille, “se um disparo de arbaleta não houvesse atravessado seu om bro, a decisão aguardada pela Virgem seria possível. Evidentem ente, Gilles é um soberbo líder guerreiro. É daqueles que o delírio dos com bates im pele adiante. Se Joana d’Arc, no m om ento decisivo, quer tê-lo ao seu lado, é porque sabe disso.”46

Nada perm ite dizer que Gilles e Joana tivessem laços de am izade.47 Entretanto, quando desm oronou diante de seus olhos o ideal tão gloriosam ente encarnado pela serva de Deus nos cam pos de batalha, Gilles com eçou a destruir os em blem as de sua própria glória, m ultiplicando pilhagens e roubos e dilapidando novam ente sua fortuna. Aparentem ente o destino da Virgem deixava-o indiferente.

Julgada culpada de um crim e perverso48 por se ter travestido de hom em , apontada com o herética, relapsa, apóstata, idólatra, Joana, a despeito de sua virgindade, era acusada de envolvim ento com o Diabo. As vozes que ela ouvia, dirá o tribunal da Igrej a, não eram as do Deus visível, m as do Anj o negro, deus obscuro e oculto. Seu carrasco, o bispo Cauchon, assistiu ao suplício, esperando um a renegação. Nada conseguiu: em m eio às cham as, Joana entregou-se a Jesus. Vinte anos m ais tarde, Carlos VII, que a abandonara, m as que, graças a ela, pudera restaurar o poder m onárquico francês, instaurou um inquérito. Reabilitada em 7 de j ulho de 1456, Joana foi canonizada pelo papa Bento XV em 1920.49

Depois da m orte do avô, em novem bro de 1432, Gilles de Rais em brenhou-se no crim e: em Cham ptocé, Tiffauges, Machecoul. Cercado por brenhou-serviçais, que eram seus fornecedores, seqüestrava crianças das fam ílias cam ponesas e lhes im punha as piores sevícias. Retalhava os corpos, arrancava os órgãos, corações sobretudo, dando-se ao trabalho de sodom izá-las na hora de sua agonia. Freqüentem ente, tom ado pelo furor, usava seu m em bro ereto para esfregá-lo contra os ventres dilacerados. Era quando entrava num a espécie de delírio no m om ento da ej aculação. Preocupado com a estética e a perfeição teatral, escolhia as crianças m ais bonitas — m eninos de preferência —, fazendo-se passar por seu salvador e atribuindo o vício a seus lacaios. Assim , obtinha as m ím icas desej adas. Seduzidas e sedutoras, as crianças eram m isericordiosas com ele, sem saber que lhe provocavam intensa excitação. No auge da loucura, ele lhes rachava o crânio, depois entrava em transe, invocando o dem ônio ou transform ando-se ele próprio num dej eto, suj o de sangue, esperm a e restos de com ida.50

Toda a carnificina da guerra parecia ter-se deslocado para o cam po fechado de um a fortaleza que não era m ais senão o esgoto da antiga glória conquistada ao lado de Joana. A m orte do avô abolira no neto todas as fronteiras de um a Lei não

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obstante j á aviltada:

Nada refreava m ais a raiva que o atorm entava. Apenas o crim e, essa negação de todos os freios, podia lhe proporcionar a soberania ilim itada que, aos seus olhos de adolescente, aquele hom em possuíra. Gilles era o rival daquele que o criara, que ele seguira — e a quem adm irava —, daquele hom em agora m orto, que o superara enquanto vivo. Ele ia por sua vez superá-lo. No crim e.51

Mesm o caído na abj eção, Gilles não conseguiu esquecer Joana. E, com o era fascinado pela arte da exibição — j ogos, farsas, teatros, m istérios, festas —, quis com em orar o aniversário da libertação de Orléans. Para isso, gastou um a fortuna a fim de conferir m ais pom pa aos espetáculos oferecidos em sua hom enagem . Quatro anos m ais tarde, enquanto se m ultiplicavam os assassinatos de crianças, contratou para o seu séquito um a sósia da Virgem , j ulgando tratar-se da verdadeira Joana.52 Durantes esses anos, ao m esm o tem po em que organizava suntuosas cerim ônias na capela dos Inocentes, onde criancinhas cantavam em coro para a glória de Jesus, invocava o Dem ônio sob os auspícios de François Pelati, sedutor florentino, insolente e corrupto, que lhe im pingia que, m ultiplicando os assassinatos ou carregando poeira preta em seu pescoço, ele conseguiria convocar as form as m aléficas. Apesar disso, o Diabo nunca visitou o m arechal.

Em novem bro de 1439, buscando dar um fim às pilhagens e aos assassinatos, Carlos VII prom ulgou um a ordenação pela qual tentava substituir os bandos de salteadores que seguiam as ordens dos grãos-senhores feudais por um exército regular e hierarquizado. “Essa ordenação ditada pela razão”, sublinha Bataille, “é o prenúncio do nascim ento de um m undo novo em que os Gilles de Rais não teriam m ais lugar.”53 Foi o prenúncio da restauração da soberania real — e do fim da Guerra dos Cem Anos.

No ano seguinte, o rum or de seus crim es espalhou-se ainda m ais e Gilles de Rais foi levado ao banco dos réus pela j ustiça eclesiástica, depois pela j ustiça secular da corte de Nantes, presidida por Miguel Hospitalário. Após negar todas as acusações — crim es contra crianças com sodom ia, evocação dos dem ônios, violação da im unidade eclesiástica —,54 Gilles passou às confissões, declarando que seus crim es haviam sido com etidos por iniciativa própria, conform e a inclinação de seus sentidos, e sem que seus com parsas tivessem a m enor participação neles. Pediu que suas palavras fossem traduzidas em língua vulgar a fim de que pais e m ães não educassem m ais seus filhos na ociosidade. Exortou seus j uízes a desconfiarem do consum o de vinho quente, de especiarias e

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estim ulantes. Por fim , após ter im plorado o perdão de Deus, pediu que o povo que o fizera sofrer o acom panhasse em seu suplício com cantos e procissões.

A princípio excom ungado, Gilles de Rais foi reintegrado ao seio da Igrej a, depois enforcado e queim ado. Todavia, antes que seu corpo se reduzisse a cinzas, foi retirado das cham as da fogueira para ser sepultado por dam as da nobreza.

Portanto, num intervalo de nove anos, esse carrasco de alta linhagem teve direito a um processo m ais equânim e que o da hum ilde serva de Deus cuj o espectro acom panhara sua vida. Mais que isso, com o observará o abade Brossart, prim eiro biógrafo de Gilles de Rais, o segundo processo foi de certa form a a figura invertida do prim eiro: “Am bos com punham as duas causas m ais célebres da Idade Média, e tam bém talvez dos Tem pos Modernos”, m as o do carrasco de Machecoul é “em todos os aspectos o contrapé” do da virgem de Orléans.55

Durante o prim eiro processo, a causa do bem fora aviltada e tachada de crim e e heresia. Ao longo do segundo, ao contrário, a causa do m al fora m etam orfoseada em um a oferenda a Deus m ediante a graça da confissão e do arrependim ento.

Convém dizer que, para esclarecer perante seus j uízes a parte obscura de si m esm o, o crim inoso não invocara nem paixão dem oníaca nem causalidade natural — nem possessão nem instinto bestial. Mais sim plesm ente, fustigara a educação recebida em sua m ocidade, assim rem etendo a origem de sua decadência à figura odiada do avô. E quando os j uízes quiseram saber por que se entregava àqueles crim es, e com que intenções, respondeu, indignado: “Para que nos atorm entar, a vós e a m im ?”56

Nada de torm ento, portanto, nada de causas psicológicas, interioridade, intencionalidade, explicação — todas as considerações que no século XIX farão as delícias da sexologia e da crim inologia. Gilles apresentava-se exclusivam ente com o o rebento de um educador que fizera dele, desde a infância, um a criatura abj eta, im ersa no vício.

Com efeito, João de Craon aparecia aos seus olhos com o o único responsável por seu ingresso na loucura assassina, e ele pedia m aior vigilância para as gerações futuras. Apesar disso, os crim es com etidos por esse avô não eram nada com parados aos perpetrados pelo neto. O velho senhor feudal não passava do representante de um m undo guerreiro, brutal, arcaico. Só transgredia a Lei na m edida em que pretendia encarnar pessoalm ente a de sua linhagem .

E fora para abolir essa figura tão odiada que Gilles pervertera não apenas a ordem da Lei, m as a própria ordem da lei do crim e. Ao com eter crim es sexuais — isto é, crim es perversos ou “contra a natureza”,57 crim es vãos e por puro deleite —, que não visavam nem a destruir um inim igo nem elim inar um adversário, m as sim a aniquilar o hum ano no hom em , Gilles tornara-se agente de

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seu próprio exterm ínio. E, a propósito, o espetáculo das crianças sodom izadas, degoladas e im oladas só fazia rem etê-lo a seu status de criança pervertida pela lei do crim e m as aspirante à graça. O m onstro sagrado era um a criança, dirá Bataille, isto é, o m ais perverso e o m ais trágico dos crim inosos.

Mediante a observação dos excessos com etidos pelos m ísticos ou pelos flagelantes, bem com o através da reflexão em preendida em torno do m odo de designação do crim e perverso, a questão colocada, até o fim da idade clássica, era saber se a existência da face obscura de nós m esm os derivava de um a ordem divina, im posta ao hom em — entre a queda e a graça —, ou se, ao contrário, era produto de um a cultura e de um a educação.

Porém , com o advento do Ilum inism o, a referência à ordem divina irá ofuscar-se em prol da noção de que o universo inteiro obedece às leis da natureza e de que o hom em pode libertar-se das antigas tutelas da fé, da religião, da crença, do sobrenatural e da m onarquia absoluta, e, portanto, tam bém , das práticas escusas a elas associadas com vistas à salvação da alm a: flagelações, suplícios, castigos, penitências etc.

Por conseguinte, a interrogação sobre a origem da parte noturna irá deslocar-se agora para outras vertentes, as quais Condillac, Rousseau, Diderot e os libertinos, em especial, não cessarão de discutir: seria ela a expressão de um a natureza bárbara do hom em , que o distinguiria do anim al e que seria preciso corrigir com o progresso e a civilização? Seria o fruto de um a m á educação, que viria perverter a boa natureza hum ana? Não deveria ela, ao contrário, ser com preendida com o o sinal da perda (necessária) de todas as inocências? Nesse caso, não passaria da expressão sensual de um grande desej o de deixar o corpo gozar segundo o princípio de um a ordem natural finalm ente devolvida à sua potência subversiva.

É possível identificar, nesta últim a hipótese, a escolha feita por Sade: dar um fundam ento natural à parte obscura de nós m esm os e, ao m esm o tem po, afastar-se do ideal dos libertinos, que reivindicavam os prazeres do corpo sob o risco de com isso perderem sua alm a. Logo, é por um gesto que consistirá em inventar um universo de pura transparência sexual que o m arquês pode ser visto sim ultaneam ente com o o m ais flam ej ante representante do discurso perverso no Ocidente e com o o fundador da noção m oderna de perversão. Apesar de perm anecer um hom em do Ilum inism o, por sua recusa da tutela divina e sua escolha da liberdade individual, Sade deturpará o proj eto ilum inista até m etam orfoseá-lo em seu oposto: um a nova ordem disciplinar, sem lim ites, sem face oculta.

Constituída pelo im perativo desse gozo, essa nova ordem irá fundam entar-se, naturalm ente, na abolição da Lei divina. Confrontada com as ciências em devir, que buscarão então classificar todos os com portam entos hum anos, ela

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adotará suas regras e suas form as a ponto de parodiá-las e tentar excluir de seu cam po a potência tenebrosa que a tornava possível.

1 Hybris significa ao m esm o tem po excesso, desm edida e inj úria.

2 Georges Bataille, La part maudit (1949), Œuvres complètes VII, Paris, Gallim ard, 1976, p.17-179 [ed. bras.: A parte maldita, Rio de Janeiro, Im ago, 1975, esgotado].

3 Loki é um deus do m undo escandinavo essencialm ente am oral, sem dignidade, desbocado, sem eador de desordem , travesti, culpado de se subm eter à sodom ia. Não é representante de nenhum a das três funções (soberania, guerra, fecundidade). Excluído da com unidade dos outros deuses, todavia lhes é indispensável: eles precisam de seus serviços, em bora desconfiem dele e o “ponham para correr”. Cf. Georges Dum ézil, Loki (1948), Paris, Flam m arion, 1986.

4 História lausíaca: obra de Paládio da Galácia (fim do século IV d.C.), onde são contadas as legendas hagiográficas dos m onges e ascetas.

5 Michel de Certeau, La fable mystique, Paris, Gallim ard, 1982, p.51. 6 Pornografia: na origem , o term o rem ete a todo discurso que se interessa pela prostituição e o am or venal. Nos dias de hoj e significa tudo que, nas diversas representações do ato sexual, é destinado a chocar, provocar, ferir, horrorizar. Cf. Philippe di Folco (org.), Dictionnaire de la pornographie, Paris, PUF, 2005. Cf. tam bém o livro clássico de Julia Kristeva, Pouvoirs de l’horreur: essai sur l’abjection, Paris, Seuil, 1980.

7 Idem .

8 É a Johann Friedrich Herbart (1776-1841) que devem os a criação da palavra “sublim inar” para designar os átom os da alm a recalcados no lim iar da consciência. Em 1905, Freud irá conceitualizar o term o “sublim ação” para descrever um tipo de atividade criativa que extrai sua força da pulsão sexual na m edida em que investe obj etos socialm ente valorizados. Cf. Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, Dicionário de Psicanálise (1997), Rio de Janeiro, Zahar, 1998. 9 La Bible de Jérusalem, Paris, Le Cerf, 1998, p.791.

10 Originalm ente, “m ístico”, com o adj etivo, rem ete ao que está escondido — logo, “relativo aos m istérios”. A substantivação da palavra aparece na prim eira m etade do século XVII. A partir de então, m ística designará um a experiência de linguagem , de tipo iniciático, pela qual um suj eito alcança um conhecim ento direto de Deus, e portanto um a revelação e um a ilum inação que transcende e

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am eaça o discurso das religiões estabelecidas. Mas a m ística designa tam bém o estudo de todas as form as de m isticism o, de idealização ou de exaltação na defesa de um ideal.

11 Alain Boureau, Le système narratif de Jacques de Voragine, Paris, Le Cerf, 1984, prefácio de Jacques Le Goff.

12 Jean-Pierre Albert, Le sang et le ciel: les saintes mystiques dans le monde chrétien, Paris, Aubier, 1997, p.101.

13 Jacques Gélis, “Le corps, l’Église et le sacré”, in Histoire du corps, sob a direção de Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine, Georges Vigarello, Paris, Seuil, 2005, vol.1, p.16-107.

14 Jacques Le Goff, Héros du Moyen Âge, le saint et le roi, Paris, Gallim ard, col. Quarto, 2004, p.407.

15 Ibid., p.427. A técnica de em balsam am ento não era conhecida. 16 Ibid., p.427-38.

17 Jacques Le Goff assinala que, j á em 1299, o papa Bonifácio VIII proibira (em vão) essas práticas, qualificadas de bárbaras e pagãs.

18 Atualm ente, o m esm o problem a se coloca para os restos hum anos decorrentes da crem ação. Cf. Jean-Pierre Sueur, “La m ort et son prix”, Le Monde, 1º nov 2006.

19 Michel de Certeau, La fable mystique, op.cit., p.13.

20 Michel de Certeau, verbete “My stique”, Encyclopedia Universalis, vol.11, Paris, 1978, p.522.

21 Lem brem os que a Idade Média estende-se, segundo os historiadores, da queda do Im pério Rom ano em 476 à tom ada de Constantinopla pelos turcos em 1453, ano da últim a batalha da Guerra dos Cem Anos.

22 Certeau, não sem audácia, com para a m ística à psicanálise: am bas, diz ele em sum a, criticaram o princípio da unidade individual, o privilégio da consciência e o m ito do progresso.

23 Résurgences et dérivés de la mystique, Nouvelle Revue de Psychanalyse 22, outono de 1980. E principalm ente os artigos de Didier Anzieu, Guy Rosolato e Paul-Laurent Assoun.

24 Marguerite-Marie Alacoque (1647-90): visitandina francesa conhecida por seus grandes êxtases m ísticos vividos sobretudo no convento de Paray -le-Monial. 25 Nicole Pellegrin, “Corps du com m un, usages com m uns du corps”, in Histoire du corps, op.cit., vol.1, p.111. Gilles Tétard, “Des saintes coprophages: souillure et

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alim entation sacrée en Occident chrétien”, in Françoise Héritier e Margarita Xanthakou, Corps et affects, Paris, Odile Jacob, 2004, p.353-64.

26 Catarina de Siena (1347-80): após ter se rebelado contra a fam ília, ingressou na religião nas irm ãs penitentes de São Dom ingos. Cultivou os êxtases e as m ortificações e foi canonizada em 1461.

27 Gilles Tétard, “Des saints coprophages”, op.cit., p.355.

28 “Convém saber”, dizia Paracelso, “que toda doença é um a expiação e que, se Deus não a considera term inada, nenhum m édico pode interrom pê-la.” 29 Liduína de Schiedam (1380-1433): m ística holandesa, viveu grabatária e foi canonizada em 1890 pelo papa Leão XIII. J.-K. Huy sm ans, Sainte Lydwine de Schiedam (1901), Ly on, Éditions À Rebours, 2002, prefácio de Claude Louis-Com bet. Biógrafo dos m ísticos e de Gilles de Rais, criador de Des Esseintes, herói perverso, Huy sm ans, libertino decadente, convertido ao catolicism o por ódio à ciência, à m odernidade e à razão, foi um m ístico esteta fascinado pela abj eção: “A arte”, dizia ele, “é, ao lado da prece, a única ej aculação lim pa da alm a.” Existe um a conivência secreta entre Huy sm ans, Proust e Wilde. Dorian Gray descam ba para o vício após ter lido Às avessas, cuj o herói é em parte inspirado na vida de Robert de Montesquiou, por sua vez m odelo do barão de Charlus, herdeiro do Vautrin de Balzac e principal encarnação da raça m aldita. Cf. Marcel Proust, Sodoma e Gomorra, Em busca do tempo perdido, t.III, Rio de Janeiro, Globo, 1995.

30 Grande Cism a do Ocidente: conflito que dividiu a Igrej a de 1378 a 1417 e durante o qual diversos papas reinaram sim ultaneam ente, alguns em Rom a, outros em Avignon ou alhures. O conflito tinha com o origem a hostilidade que os cardeais não italianos dem onstraram contra a eleição de Urbano VI, designando um francês, Clem ente VII, que se instalou em Avignon. O Cism a teve fim com o concílio de Constance (1414-18). Cf. Dom inique Vallaud, Dictionnaire historique, Paris, Fay ard, 1995.

31 Ele a com para a diversas outras m ulheres m ísticas do m esm o período. Cf. tam bém Jean-Noël Vuarnet, Le dieu des femmes, Paris, Méandres, L’Herne, 1989.

32 J.-K. Huy sm ans, Sainte Lydwine, op.cit., p.274. Ao contrário, Dorian Gray, encarnação do m al, volta a ser o que era no m om ento de sua m orte, um a vez destruído o retrato: “… ele estava enrugado, sua pele ressequida e seu rosto asqueroso.”

33 Cf. Brenda B. Love, Dictionnaire des fantasmes, perversions et autres pratiques de l’amour (Nova York, 1992), Paris, Blanche, 2006.

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34 Pedro Dam ião (1007-70): prior do m osteiro de Fonte Avellana. Reform ador da vida m onástica, violentam ente hostil à hom ossexualidade (denom inada sodom ia), que considerava o m aior dos vícios, ele estigm atizava o fato de a Igrej a ter se tornado, a seus olhos, um a nova Gom orra. Sobre essa questão, o m elhor livro é o de Patrick Vanderm eersch, La chair de la Passion. Une histoire de foi: la flagellation, Paris, Le Cerf, 2002.

35 “Quando um a m ulher se flagela”, escreve Jean-Pierre Albert, “percebem os as feridas abertas em seu corpo e a irrupção do sangue. Em se tratando de hom ens, igualm ente m aníacos pela flagelação, os textos insistem m uito m ais no enrij ecim ento da pele, em sua transform ação num couro m onstruoso” (Le sang et le ciel, op.cit., p.100). Foram sobretudo os hom ens os “m aníacos” pela flagelação pública.

36 Patrick Vanderm eersch, La chair de la passion, op.cit., p.110. 37 Ver na Introdução, nota 6, a lista dos pecados capitais.

38 Num film e perverso dedicado à Paixão de Cristo, Mel Gibson, cristão fundam entalista e puritano, a vida inteira fascinado pelo inferno e pelas carnes supliciadas, retom ou essa tradição para exibir um Jesus flagelado até o sangue, de rosto inform e, corpo sem alm a, falando num j argão inaudível e m anifestando, com seus olhares de vítim a petrificada, um ódio e um orgulho desm edidos: em outras palavras, um Cristo m ais diabólico que divino.

39 João Charlier de Gerson (1363-1429): teólogo, filósofo e pregador francês. Grão-chanceler da Universidade de Paris em 1398, desem penhou im portante papel no concílio de Constance.

40 Verbete “Flagellation”, in Dictionnaire encyclopédique des sciences médicales (1864), Paris, Asselin-Masson, 1878. Citado por Patrick Vanderm eersch, La chair de la passion, op.cit., p.123. Henrique III (1551-89): terceiro filho de Henrique II e Catarina de Médicis, foi o últim o rei da dinastia dos Valois, tendo se confrontado com as violências das guerras de religião que opunham católicos e protestantes. Após ter m andado assassinar o duque de Guise, líder dos ultracatólicos da Liga, foi por sua vez assassinado por Jacques Clém ent, prim eiro regicida da história da França, antes de Ravaillac e Dam ião. Mortalm ente ferido, Henrique III voltou a arm a contra seu assassino e o m atou, o que evitou a este o suplício do esquartej am ento.

41 Citado por Patrick Vanderm eersch, La chair de la passion, op.cit., p.189. 42 Cf. Gilles Deleuze, Apresentação de Sacher-Masoch, com o texto integral de A Vênus das peles, Rio de Janeiro, Taurus, 1981, esgotado. A questão do sadism o e do m asoquism o será tratada nos capítulos seguintes. Atualm ente, todas as práticas

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