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MONUMENTOS
M I N I S T É R I O D A S O B R A S P Ú B L I C A S , T R A N S P O R T E S E C O M U N I C A Ç Õ E S
MONUMENTOS
N.o1 Setembro 1994
Directora
Margarida Alçada
Directora Adjunta
Maria Inácia Teles Grilo
Conselho Editorial
Alexandre Alves Costa Isabel Corte-Real José Fernando Canas José Manuel Fernandes Paulo Pereira Víctor Serrão
Redacção
Andrea Azevedo e Cardoso
Textos
Ana Rosa de Freitas António Cerdeira Francisco Hipólito Raposo João Bénard da Costa João Ceregeiro Joaquim C. S. da Silva Jorge Almeida José D. Rodrigues José Fernando Canas Manuel J. Gandra Margarida Alçada Maria do Rosário M. Moura Maria Fernandes
Rafael Moreira Rosário Gordalina Teresa Leonor Vale Victor Eleutério
Edição e Propriedade
Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais Praça do Comércio 1149-005 Lisboa Telefone 21 881 7042/49 Fax 21 888 0249 Concepção Gráfica Antevisão
Os artigos são da inteira responsabilidade dos respectivos autores.
Os textos e as imagens desta publicação não podem ser reproduzidos sem autorização prévia da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais.
MONUMENTOS (Edição em CD-ROM)
N.o1 Abril 2002
Coordenação da edição
Andrea Azevedo e Cardoso
Produção
Critério – Produção Gráfica, Lda.
Fabricação/Duplicação MPO – Portugal Preço: 5g Tiragem: 2000 exemplares ISSN: 1645-4413 Depósito Legal n.o180 562/02
MONUMENTOS
EDITORIAL
MONUMENTOS 3Setembro 94
MONUMENTOS – Publicação de periodicidade semestral da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, materializada entre os limites do possível e do desejado, constitui reflexo, pretendido visível, de renovação permanente.
A par da informação sobre a actividade dos serviços e da manutenção de uma agenda de cariz cultural, esta publicação está vocacionada para a abordagem de temas relativos ao patri-mónio construído.
Proporcionar e promover o diálogo entre os diferentes discursos, que em cada número os vários artigos irão retratar, reflectindo a perspectiva de cada autor, é contribuir para uma mais alargada e enriquecida leitura da história das construções.
Um mais profundo conhecimento das técnicas de construção, dos materiais utilizados, das razões de articulação e ordenação dos espaços construídos, fortalecerá o elo que historica-mente nos liga ao passado e projectará no futuro os valores culturais que representamos, ajudando-nos a construir novos MONUMENTOS.
ÍNDICE
8
Da cor ao tom
10
Finalmente a cor do sol poente no Terreiro do Paço
11
Limpeza e pintura das fachadas do Terreiro do Paço
Pequenas notas sobre a empreitada
14
Pintura da fachada do conjunto
monumental do Terreiro do Paço
18
O valor estético da cor de uma praça de Lisboa
25
O painel de São Luís do Maranhão
29
Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio
35
A Praça do Real Arco demonstrada
41
Crónica de um teatro efémero
e de outro que não existiu
Victor Eleutério
Manuel J. Gandra
Teresa Leonor Vale
Rafael Moreira
Rosário Gordalina
Jorge Almeida
António Cerdeira
Francisco Hipólito Raposo
José Fernando Canas
O Palácio de Estói
48
Projecto de recuperação e adaptação a residência oficial
O Jardim de Estói
54
Ou o romantismo na paisagem
A Igreja de São Pedro em Dois Portos, Torres Vedras
62
Restauro do tecto em madeira
Limpeza da Torre dos Clérigos
68
Estudos realizados e trabalhos executados
Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM)
76
A “Torre do Tombo” da memória do século XX
O Inventário do Património Arquitectónico
79
Intervenções no Património Arquitectónico
83
Margarida Alçada
João Bénard da Costa
José D. Rodrigues
▪
M.ª do Rosário M. e Moura
▪
Joaquim C. S. da Silva
Ana Rosa de Freitas
João Ceregeiro
Maria Fernandes
DGEMN.
Cabrita
Henriques,
anos
D O S S I E R
Da cor ao tom
José Fernando Canas*
Quase vinte anos depois da última pintura ge-ral das fachadas do Terreiro do Paço, voltou a colocar-se o problema de uma nova pintura e de uma cor apropriada para esta magnífica praça.
Dado que os rebocos se encontravam em bom estado de conservação, muito embora, e infe-lizmente, fossem de cimento e não de cal, não se afigurou necessário nem económico proce-der à sua substituição. Este dado viria assim condicionar a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais no que respeita ao tipo de pintura a utilizar, já que a caiação se tornava impossível ou muito difícil, tendo em conta que estávamos em presença, precisa-mente, de argamassas de cimento e não de cal. As transparências e a textura que se conse-guem com a caiação, adicionando ou não pig-mentos naturais (ocre, almagre, cobalto, etc.), de modo algum são possíveis com tintas plás-ticas. Paralelamente, o respectivo “envelheci-mento”, causado pela poluição atmosférica e pela acção dos raios ultravioleta, é também assaz diferente (uma parede caiada “envelhece” com muito maior nobreza).
Estando vedada, por exclusão de partes, a uti-lização da cal, restava escolher o tipo de tinta e a cor a aplicar. Ciente da delicadeza da opção, procedeu a DGEMN a uma exaustiva investi-gação1com vista a determinar as possíveis
co-res originais da Praça do Comércio, e também as opções cromáticas tomadas ao longo dos úl-timos dois séculos, chegando-se rapidamente à conclusão que a cor original seria algo entre o
amarelo e o ocre, numa das suas variantes. Ao mesmo tempo, efectuou-se uma prospecção no mercado a fim de se encontrar uma tinta que não só não “envelhecesse” rapidamente como também se aproximasse, tanto quanto pos-sível, da textura e da luminosidade da cal. Resolvido este último problema, restava de-terminar o tom mais apropriado. Numa pri-meira selecção afinaram-se sete amostras, to-mando como referência alguns ocres naturais de proveniências distintas, mas de luminosi-dade e cromatismos diferentes.
A fim de que a escolha definitiva fosse o mais aleatória possível, convidou a DGEMN algu-mas personalidades e outras instituições com responsabilidades na defesa do património a pronunciarem-se sobre as amostragens referi-das, as quais foram pintadas nos nembos da fa-chada voltada a sul, ao lado do arco da Rua Augusta.
Esta comissão, composta por doze elementos2,
viria a seleccionar, quase por unanimidade, o tom n.o4, que acabou naturalmente por ser o
eleito. " Notas
1 – Ver artigo da Dr.a Rosário Gordalina nesta revista.
2 – Prof. José-Augusto França, Prof. Rafael Moreira, Francisco Hipólito Raposo, Arq.oPinho Lo-pes, do IPAAR, Arq.o Raul Cere-jeiro e Arq.oSérgio de Melo, da Câmara Municipal de Lisboa, com alguns dirigentes da DGEMN (Eng.o Vasco Martins Costa, director-geral, Arq.oNuno Beirão, Eng.o António Cerdeira, Arq.o Jorge Brito e Abreu, Dr.a Marga-rida Alçada e Arq.oJosé Fernando
Da cor ao tom Fig. 1 As sete amostras da primeira selecção. DGEMN. João Cabral, 1994
Finalmente
a cor
do sol poente
no Terreiro
do Paço
Francisco Hipólito Raposo
-Augusto França e Rafael Moreira, Arq.oPinho
Lo-pes, em representação do IPAAR, arquitectos Raul Cerejeiro e Sérgio de Melo, da Câmara Muni-cipal de Lisboa e, pela Direcção-Geral dos Edifí-cios e Monumentos Nacionais, o Eng.oVasco
Mar-tins Costa, Arq.oNuno Beirão, Eng.oAntónio
Cer-deira, Arq.oJorge de Brito e Abreu, Dr.aMargarida
Alçada e Arq.oJosé Fernando Canas.
E não houve grande perda de tempo com a mara-vilhosa cor com o destino de abrilhantar a praça. Quase por unanimidade foi a cor n.o4 a escolhida e
é a que porá laivos de ouro ao entardecer e em dia soalheiro na nossa mais bela praça e uma das mais belas do mundo.
Só que a exuberância e o esplendor – insisto – não ficam na verdade completos sem que a estátua de D. José mais o seu cavalo Gentil (escolhido pelo marquês de Marialva) não fiquem também a reful-gir em ouro. É o contraste, o pendant ali necessário, e o que realmente aconteceu no dia da inauguração da praça, quando 100 fascineiras em cima de um praticável, segundo o testemunho de um padre, munidas de pedra pomes e de camurças puliram a estátua que brilhava como ouro. O ouro que fal-tava para contrastar com a tripla fachada pomba-lina, dourada ela também. Talvez um dia a Câ-mara se resolva…
E para além de todo este meu regozijo nada mais tenho a acrescentar, além de plenamente felicitar os Monumentos Nacionais por terem tomado esta medida tão justa e acertada. Porque, para remate deste meu parecer, nada melhor do que ir buscar o sensacional parecer de Rafael Moreira, apenso ao eficiente processo que me foi enviado, e onde mais uma vez aprendemos uma lição de técnica e de História. Rafael Moreira, de quem tive a honra de ser parceiro logo no início desta cruzada e graças também à evidência visual do painel de São Luís do Maranhão, descoberto por ele, que revelava a cor de origem e que a tecnologia da Fundação Gulbenkian e da equipa brasileira tão bem soube recuperar.
Graças à atitude certeira dos Monumentos Nacio-nais, o Terreiro do Paço, com aquela magnífica cor de ocre amarelado, vai-se apresentar em todo o seu esplendor refulgindo em ouro, soberbamente enga-lanado, como há muito tempo não se via assim. "
D O S S I E R
Confesso que foi com grande emoção e alegria que recebi o convite do director-geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, engenheiro Vasco Martins Costa, para integrar a equipa da selecção da nova cor do Terreiro do Paço.
Foi pela grande sensibilidade desse director que fui com certeza seleccionado para esse importante acontecimento, já que, durante muitos anos, eu me batera pela cor que lhe foi sempre devida, o ocre do sol em ouro a pôr-se, e confirmado por vá-rios testemunhos do passado, entre os quais o de Ribeiro Guimarães em Summario de Vária História, em que na página 213 (I vol.) diz: “(…) e a alve-naria foi pintada de amarello, côr que sempre se lhe tem conservado”. Para além de várias curtas re-ferências que fiz ao caso, como no Expresso, que não vale a pena referenciar, escrevi sobre o tema e sob a “Bandeira do Património” no Independente, “Uso e abuso do Pink” (22/03/1991), “O ocre do Ter-reiro” (05/04/1991), “Proposta à Câmara” (23/07/1993), e “Ainda a estátua de D. José” (06/08/1993), onde defendo sempre, nesses textos, a cor ocre para as fachadas do Terreiro do Paço. Mas é claro, podia eu ter continuado a bradar no deserto e ser excluído dessa excelente equipa, não fosse a simpatia desse director, que aliás já mo afirmara anteriormente no seu gabinete e na pre-sença do arquitecto Jorge de Brito e Abreu, que a nova cor seria na cor do ocre. Rejubilei na altura, mas nunca supus participar no elenco da escolha em que participaram várias entidades de assina-lada competência, como os professores
José-Limpeza e pintura
das fachadas
do Terreiro do Paço
Pequenas notas sobre a empreitada
António Cerdeira*
D O S S I E R
Há bastante tempo que se constata a neces-sidade de proceder à limpeza e pintura das fa-chadas do conjunto monumental do Terreiro do Paço. Assim, elaborou-se o projecto para a intervenção e diligenciou-se para dotar o orça-mento da DGEMN das verbas necessárias. Quanto às verbas, há que referir os orçamentos quase sempre escassos na maioria dos organis-mos públicos.
Para resolver esta questão tentou-se que to-das as entidades instalato-das no Terreiro do Paço comparticipassem, proporcionalmente em função da área das suas fachadas, e tam-bém de acordo com as suas disponibilidades orçamentais.
É deste modo que está a ser suportado o en-cargo de cerca de 110 mil contos, sendo várias as entidades a contribuir para o seu paga-mento.
Quanto ao projecto, pode afirmar-se que é re-lativamente simples, consistindo essencial-mente em medições, mas contendo duas ques-tões fundamentais, que são:
– a limpeza das cantarias; – a definição da cor.
A limpeza das cantarias é uma questão deli-cada em qualquer monumento e, por maioria de razão, no caso presente, dado o avançado estado de alteração das mesmas, em algumas áreas, e ainda a quantidade e a natureza da sujidade.
No projecto posto a concurso previu-se a lim-peza com recurso a jacto de água, mas cedo se
Fig. 1
Cais das Colunas. Colocação de esfera de lioz.
DGEMN.
cos ao Terreiro do Paço e informado que em algumas áreas se poderia utilizar o jacto de água e sílica, sendo esta de uma granulometria perfeitamente definida.
Tem sido esta a orientação seguida na limpeza das cantarias, isto é, o recurso ao jacto de água e água e sílica a baixa pressão.
Refere-se ainda que sobre esta questão – lim-peza das cantarias – muitas firmas, que co-mercializam equipamento e produtos para constatou que o processo não dava os
resulta-dos esperaresulta-dos nas áreas mais sujeitas à acção exterior, nomeadamente chuvas, poeiras e po-luição atmosférica e rodoviária.
Houve que pensar em outros processos com-plementares, ouvindo-se pessoas e organismos com muita experiência neste domínio. Um dos organismos consultados foi o Insti-tuto José de Figueiredo, que se disponibilizou totalmente, tendo-se deslocado um dos
técni-Limpeza e pintura das fachadas do Terreiro do Paço
Fig. 2 Arcadas antes da limpeza. Fig. 3 Arcadas depois da limpeza. Fig. 4 Pormenor da cantaria antes da limpeza. Fig. 5 O mesmo pormenor depois da limpeza. 2 3 4 5 DGEMN. 1994 DGEMN. João Cabral, 1994 DGEMN. João Cabral, 1994 DGEMN. 1994
este tipo de trabalho, têm feito diversas ac-ções de divulgação no sentido de mostrarem que os seus produtos são os ideais para resol-ver esta questão, ou seja, proceder à limpeza das cantarias sem as danificar, ou danifi-cando-as minimamente e mantendo a marca do tempo, a patine.
A definição da cor foi também uma das ques-tões tratadas com todo o cuidado.
Primeiramente foi constituído um grupo de trabalho interno da DGEMN que, com base nos elementos históricos disponíveis, tentou definir os principais parâmetros orientadores. Paralelamente foram ouvidas pessoas ligadas a entidades com intervenção neste domínio, ou por si sós ligadas ao património arquitec-tónico.
Dado que a opinião francamente maioritária era pela cor amarela, foram feitas amostras com diversas tonalidades, tendo-se obtido grande consenso em relação a uma delas, que é, como é óbvio, a que está a ser apli-cada.
Refira-se, a propósito, a opinião francamente favorável da comunicação social, nomeada-mente a imprensa, sobre a nova cor do Ter-reiro do Paço.
Talvez de menor importância, mas que podem ser consideradas como apontamentos finais de reportagem, referem-se ainda as resoluções de pequenos problemas, tais como:
– a substituição das janelas no primeiro andar da ala oriental, pois os caixilhos não tinham as mesmas dimensões dos restantes;
– a aplicação de material nas portadas princi-pais com a finalidade de não permitir a per-manência de pombos nesses locais.
– a colocação de uma esfera em lioz, numa das colunas do Cais das Colunas do Terreiro do Paço. "
Limpeza e pintura das fachadas do Terreiro do Paço
Figs. 6 e 7
Pormenores do material colocado para impedir a permanência de pombos.
* Director Regional dos Edifícios de Lisboa
6 7 DGEMN. João Cabral, 1994 DGEMN. João Cabral, 1994
DGEMN.
João
Cabral,
D O S S I E R
Pintura da fachada do conjunto
monumental do Terreiro do Paço
Jorge Almeida*
1. Introdução
A protecção por pintura de edifícios constituti-vos do património histórico envolve a selecção de revestimentos que satisfaçam critérios de protecção e decoração, mas que mantenham o aspecto das superfícies o mais próximo possível do original. Os materiais de revestimento ou-trora usados, mesmo que sejam conhecidos, não estão, hoje em dia, facilmente disponíveis e pressupunham quase sempre acções de manu-tenção frequentes. Existem actualmente tintas fabricadas com tecnologia recente que, satisfa-zendo apertados critérios de apreciação, confe-rem aos substratos o aspecto tido como origi-nal, sem o inconveniente da necessidade de ma-nutenção tão frequente. Neste texto far-se-á uma referência ao critério de selecção da tinta para a pintura da fachada do conjunto monu-mental do Terreiro do Paço.
2. Generalidades sobre tintas
De acordo com a Norma Portuguesa NP42--1982 (TINTAS e VERNIZES – Terminolo-gia. Definições) define-se tinta como
“compo-sição pigmentada líquida, pastosa ou sólida que, quando aplicada em camada fina sobre uma superfície apropriada, no estado em que é fornecida, ou após diluição ou dispersão em produtos voláteis, ou fusão, é convertível, ao fim de certo tempo, numa película sólida, contínua, corada e opaca”.
A maior parte dos tipos de tintas pode descre-ver-se, de modo simplificado, como soluções ou dispersões de uma substância filmogénea – a resina – num solvente volátil, tendo disper-sos neste meio as partículas sólidas dos pig-mentos.
A resina (mais propriamente designada por li-gante ou veículo fixo) é responsável por carac-terísticas marcantes da tinta, tais como ade-rência ao substrato, processo de formação de película e suas propriedades mecânicas. Os pigmentos são partículas sólidas, fina-mente dispersas no veículo, que transmitem à tinta, entre outras características, a cor e a opacidade (ou poder de cobertura), isto é, a ca-pacidade de ocultar o substrato sobre o qual é aplicada.
Os solventes são compostos líquidos usados para solubilizar a resina e facilitar a aplicação da tinta. Podem ser compostos orgânicos ou
Existem tintas concebidas e fabricadas segundo modernas tecnologias que apresentam
carac-terísticas adequadas à protecção e decoração do património histórico edificado. Na selecção da
tinta e cor para pintura do Terreiro do Paço participou também o fabricante, em regime de
prestação de assistência técnica à aplicação dos seus produtos.
operações de preparação menos complicadas relativamente às de reacção química.
3. A solução
3.1. A tinta seleccionada
A análise das condições particulares desta obra fez recair a selecção na tinta HEMPATEX 56810. Trata-se de uma tinta de grande capa-cidade de penetração em substratos porosos, cujo veículo é uma resina sintética e cuja pelí-cula se forma por um mecanismo de secagem física. Pode ser aplicada directamente a betão ou reboco ou, como neste caso, sobre algumas outras tintas, desde que se encontrem bem aderentes à base. Mediante preparação de su-perfície adequada pode ainda aplicar-se sobre superfícies caiadas.
A aplicação nesta obra foi efectuada com trin-cha e rolo. Todavia, a tinta está preparada para aplicação com pistola tipo airless, permitindo espessuras mais elevadas por demão e maior rapidez de execução da pintura.
A secagem processa-se em cerca de duas horas, variando ligeiramente este limite em função das condições ambientais. Podem iniciar-se acções de repintura com a mesma tinta logo após a fase de secagem.
3.2. Características da película Uma das funções da película formada é consti-tuir uma barreira entre a superfície a proteger e o meio envolvente, quase sempre agressivo. Para que desempenhe bem essa função, a pelí-cula deve aderir perfeitamente à base existente, o que implica que as operações de preparação de superfície tenham de ser eficazes na remoção de, nomeadamente, poeiras, incrustações diver-sas e material gorduroso. No caso em análise, os agentes agressores são sobretudo os raios ultra-violeta da luz solar e a água, que, caso tenha acesso ao reboco, o vai humedecendo levando consigo agentes agressivos presentes no ar po-água, no caso particular das tintas de base
aquosa.
Durante e após a aplicação, o solvente evapora, restando um filme seco constituído por uma fase contínua de resina solidificada, encapsu-lando as partículas sólidas dos pigmentos. Num dos grupos principais de tintas, desig-nadas por tintas de secagem física, e onde se incluem as celulósicas, acrílicas e de borracha clorada, o veículo é constituído por um polí-mero de elevada massa molecular que se en-contra dissolvido no solvente. O polímero evolui para a forma de um filme sólido à me-dida que o solvente se evapora durante a seca-gem da tinta. Um caso particular deste é o das tintas de dispersão aquosa, vulgarmente co-nhecidas por tintas de água. O veículo é cons-tituído por uma dispersão (e não uma solução) do polímero em água, e a formação do filme sólido dá-se por coalescência das partículas dispersas à medida que a água se evapora. No outro grupo de tintas, de que fazem parte as alquídicas, epoxídicas e de poliuretano, a formação do filme sólido ocorre por uma reac-ção química, paralelamente à evaporareac-ção do solvente.
Essa reacção envolve a resina e um outro rea-gente, que é o oxigénio do ar nas alquídicas, a humidade do ar, nos poliuretanos (de um componente) e um endurecedor misturado imediatamente antes da utilização, no caso das epoxídicas e poliuretanos (de dois componen-tes). Estas tintas designam-se por tintas de reacção (ou cura) química.
Importa fazer notar uma diferença importante entre estes dois grupos. A película das tintas de secagem física fica sensível ao solvente de onde se separou. A consideração das tintas de dispersão aquosa como um caso especial deste grupo confirma-se agora, dado que a película sólida resiste à água. A película das tintas de reacção química, após cura completa, resiste ao solvente de onde se separou.
Esta diferença de comportamento dos dois grupos de tintas reflecte-se na prática de pin-tura de manutenção. As tintas de secagem fí-sica são mais fáceis de repintar, envolvendo
mãos de HEMPATEX 56810 a rolo, tendo a primeira sido dada com uma taxa de diluição superior às duas seguintes. A espessura seca da película deverá situar-se entre 100 e 120 µm.
3.4. A cor
A selecção da cor mostrou de maneira ainda mais evidente a vantagem da participação do fabricante da tinta em todo o processo. O tom a utilizar foi um dado inicial fornecido pelo “dono da obra” a partir de estudo efec-tuado. Esta informação conduziu à síntese de algumas cores aplicadas em troços da fachada, de modo a oferecer diferentes opções.
A resistência à acção dos raios ultravioleta foi a característica que mais condicionou a esco-lha dos pigmentos empregues na composição da cor. Todavia não foram descuradas outras, designadamente o poder de cobertura e as ca-racterísticas cromáticas, tendo em vista alcan-çar uma cor com reflectância elevada.
A cor aprovada foi conseguida por composição adequada de dióxido de titânio, óxido de ferro e um pigmento orgânico de elevada resistên-cia à luz solar.
4. Nota final
A selecção da tinta e cor para pintura da fa-chada do Terreiro do Paço contou com a parti-cipação da empresa fabricante da tinta. Esta participação permitiu gerar, atempadamente, variantes de cores orientadas para o resultado do estudo de cor feito previamente e compatí-veis com as características da obra.
Este modo de actuação ajusta-se especialmente às obras de reabilitação de edifícios antigos, em que as soluções são talhadas à medida de cada situação e em que se espera do fabricante dis-ponibilidade para apoio técnico frequente. " luído e contribuindo também para alterações
no comportamento térmico das paredes. Resulta daqui a necessidade de se usar uma tinta cuja película satisfaça critérios de per-meabilidade à água, normalmente reconheci-dos. Para uma tinta com a finalidade da pre-tendida, considera-se que o valor máximo de permeabilidade à água líquida deve ser de 100g/dm2. 24h. A tinta HEMPATEX 56810,
para uma espessura da ordem dos 110 µm, apresenta um valor de 14,2g/dm2. 24h.
Todavia, a mesma película deve permitir a di-fusão de vapor de água, contribuindo deste modo para a manutenção de um bom am-biente interior e evitando condensações e infes-tações por fungos. O valor mínimo geralmente aceite para a permeabilidade ao vapor é de 40g/m2. 24h. A tinta HEMPATEX 56810,
para uma espessura de cerca de 110 µm, apre-senta uma permeabilidade de 210g/m2. 24h.
Outras características foram também tidas em conta. Trata-se de uma tinta lisa, mais de acordo com o tipo utilizado no projecto ini-cial, e que apresenta uma superfície fosca com um toque semelhante ao da cal.
Por ser uma tinta de secagem física, o trabalho de manutenção pontual fica facilitado. Cada demão da mesma tinta dissolve ligeiramente a demão anterior existente, proporcionando uma boa ligação entre as duas, sem envolver opera-ções complicadas de preparação de superfície.
3.3. Esquema de pintura
A preparação da superfície condiciona, em larga medida, o êxito de uma pintura. Neste caso particular foi necessário remover poeiras e sujidades diversas incrustadas na superfície da tinta antiga, mediante uma lavagem com água a alta pressão. Previamente, foram remo-vidas zonas da película que não ofereciam ga-rantias de boa aderência, efectuadas reparações de reboco e ainda retocadas as zonas nuas com tinta de textura semelhante à antiga.
Terminada esta reparação, e após secagem da superfície, procedeu-se à aplicação de três
de-Pintura da fachada do conjunto monumental do Terreiro do Paço
* Engenheiro químico
Director da Divisão de Construção Civil TINTAS HEMPEL (PORTUGAL), LDA.
O valor
estético da cor
de uma praça
de Lisboa
Rosário Gordalina*
D O S S I E RPeter Handke, no seu Ensaio sobre o Cansaço1,
implica a cidade, ou melhor, particulares lo-cais de encontro e de vida urbana: as ruas his-tóricas, as artérias principais e as praças, os traçados viários que na cidade assumem um valor e uma memória particulares. Que valor estético têm estes lugares na identidade da própria cidade, no sentido de pertença àquela ou a esta área urbana por parte dos seus habi-tantes, demonstra-o igualmente (e certamente muito melhor) um qualquer lugar ideal como, e no universo de pessoais caminhos, Piazza della Signoria na parda Florença, o sistema de praças e avenidas de Turim (que não por acaso evidenciam uma particular afinidade com cer-tas zonas de Lisboa), os percursos viários varri-dos de arcadas na vermelha Bolonha… Yourcenar2, recordo, por sua vez, imagina-se
acompanhada nas suas deambulações pelos lugares monumentais de Roma, por Piranesi, mestre-escola na valorização estética dos lo-cais mais significativos e emblemáticos da ci-dade. Praças de Itália, chirichianas ou não, e praças de Lisboa, das primeiras representações de cidades míticas e bíblicas na basílica infe-rior de São Francisco em Assis, à quatrocen-tista representação de um Tejo pontuado de embarcações diante das muralhas fernandinas de uma fantástica Lisboa no Claustro das La-ranjas da abadia florentina; do Carmo e da Trindade à Piazza del Palio de Siena, que da cidade é o coração, em todos os sentidos; ou
Rosário
Gordalina,
Uma necessária premissa primeiro se impõe. Da pesquisa por mim elaborada para a DGEMN com o objectivo de se apurar qual a cor original da Praça do Comércio, e cujos re-sultados foram depois sintetizados em relató-rio5, uma certeza emergiu no que respeita à
primitiva coloração dos rebocos dos seus edi-fícios: do exame dos documentos de arquivo e das fontes iconográficas, compreendendo um arco temporal que arranca mais ou menos em 1775 (ano no qual se inaugura a estátua equestre de D. José e estando ainda por edifi-car a totalidade dos edifícios que fecham a praça, tendo então o marquês de Pombal de-terminado que para a solene ocasião as alas por construir fossem provisoriamente cons-truídas de madeira, gessadas e pintadas à imi-tação do já edificado em cantaria e alvenaria) e chega aos anos 80 deste século, resulta que a cor original da praça devia ser o amarelo, nos documentos dito “jalde”, termo que deriva do francês antigo “jalne”, ou seja, jaune, amarelo, como tive então ocasião de escrever, cor que a praça manteve até finais do século XVIII, so-frendo depois sucessivas variações de cor e to-nalidade.
Basta recordar alguns documentos impor-tantes, contemporâneos da edificação da Praça do Comércio, que comprovam a origi-nal cor amarela, como por exemplo o poema épico de Miguel Ramalho de 17806ou o
tes-temunho de Carrére em 17967. A diferente
coloração no tempo assumida pelos seus edi-fícios é, por sua vez, confirmada pelas várias fontes iconográficas e escritas, referidas no já citado relatório.
Estes mesmos documentos dizem-nos que a coloração da praça mudou com o mudar das condições culturais, sociais, económicas e polí-ticas. “Mudam-se os tempos, mudam-se as co-res…” escrevi então. Tal poderia significar que a sociedade, a variável temporal, qualquer contingência, de algum modo poderia modifi-car a realidade artística. Será todavia mais cor-recto dizer que a instância e a valência esté-tica, em si perene, são sujeitas ao atrito im-posto aos objectos em questão (como acontece ainda, das históricas e celebradas praças de
Paris (incluindo La Défense materializando o
Playtime de Jacques Tati) à londrina Trafalgar
Square, que Durrell3 transfigura de ulmeiros
ao abrigo dos quais se valsa por Blake; e tan-tas outras referências, referências que sem tré-gua se adensam. Cidades reais e cidades ideais encontram-se e desencontram-se, vêm-se a unir nestes locais. Poderia sem dúvida insis-tir, mas detenho-me nestas breves referências, suficientes, creio, a introduzir o tema, o da cor de uma praça, a do Comércio em Lisboa. Reencontrar a identidade primeva de uma praça histórica, desta praça que de Lisboa é símbolo, tem não só múltiplos significados como é um acto estético, uma afirmação de estética e da goethiana necessidade de esté-tica que desde as suas milenárias origens alimenta o homem, como nos diz Carlo L. Ragghianti4. A recuperação de uma
identi-dade arquitectónica de tal modo emblemá-tica significa, assim, para além do valor in-trínseco ao restauro, algo mais. À parte o imediato referimento a uma vasta rede de argumentações, mesmo no campo pura-mente perceptivo, diga-se desde já que se tem uma imediata confirmação do incentivo estético que deriva da plena e correcta res-tauração da Praça do Comércio, ainda que de um único pormenor: o da restauração das fachadas dos seus edifícios, numa acção de recuperação que visa a reposição do pig-mento histórico, a reposição da coloração dos primitivos rebocos. Permanecendo no âmbito do restauro, no qual a questio é plana e transparente, não será supérfluo recordar que qualquer recuperação monumental ou ambiental bem conduzida acaba por resti-tuir vida, identidade e valor ao local em questão, relançando assim a sua habitabili-dade que cresce com o crescer do nível esté-tico. Indo mais longe, julgo inevitável per-guntarmo-nos: qual é o sentido estético da reposição do autêntico e primevo pigmento, da reposição da primeira pele dos edifícios da Praça do Comércio?
O valor estético da cor de uma praça de Lisboa
Fig. 1 (página anterior) Piazza della Signoria, Florença.
assinala e pára um tempo já histórico, tenta-se a sua transformação, que resulta por ser uma transfiguração; tenta-se dar a estes edifícios uma nova pele.
Se procurávamos uma prova da instância esté-tica evidente, e aliás intrínseca ao objecto em questão, eis a sua confirmação claríssima, para além do mais incidente na vida dos cidadãos, incidente em termos decisivos na vida da pró-pria cidade. A cor verde imposta à praça sob ideia de Raul Lino, no final dos anos 40, e mantida por um quarto de século, não consti-tuirá indício significativo? Em 1975 o verde é substituído pela cor vermelha na tonalidade rosa-laranja e, em 1977, pretende-se dar outra coloração à área vizinha, em sintonia com a praça. Porquê tais tonalidades? Estes elemen-tos, ainda que sugestivos se interpretados se-gundo diferentes clavis, suscitam algumas ra-zoáveis dúvidas e muitas outras interrogações, como tive ocasião de constatar no balanço his-tórico resultante do relatório a que já acenei, pelo que nos deteremos num só particular, isto é, sobre o que a questão referente à cor da praça pode implicar.
Uma vez que todo o arbítrio é, em primeira instância, uma dispersão histórica relativa-mente à realidade em objecto, logo, indubita-velmente, oblitera a realidade estética e for-mal desse mesmo objecto. Mas é também Yourcenar que nos ensina que “faça-se o que se fizer, reconstrói-se sempre o monumento à nossa maneira, mas já é muito empregar so-mente pedras autênticas”9. Daqui a
impor-tância do cuidado posto não só na recuperação da cor original, mas igualmente da primeva tonalidade que, obviamente, será sempre aproximativa. Pelo que me parece excessivo poder afirmar-se com certeza qual a tonali-dade primitiva da praça e consequentemente do original pigmento empregue; com a agra-vante dos pigmentos amarelos, nomeada-mente os existentes à época, entre eles, como tive ocasião de referir no “meu relatório” acima citado, o amarelo de Nápoles, popula-rizado a partir da segunda metade do século XVIII, ou o massicote abraçarem um amplo para qualquer outro manufacto artístico),
su-jeitas a uma inesgotável manipulação, que fre-quentemente modifica ou diminui e dispersa tal potencialidade estética, alterando com a História o sentido e o valor próprio da obra. Como escrevi, noutra ocasião, “la brezza che
O valor estético da cor de uma praça de Lisboa
come un trapano rode la scogliera soffia ancora rendendone perpetuamente mutevole e mai raggiungibile un suo profilo”8. Na
impossibi-lidade, no caso Praça do Comércio, de se fugir a uma realidade arquitectónica indelével, que
Fig. 2 Bolonha pele vermelha.
Fig. 3 O azul de La Défense. Rosário Gordalina, 1991 Rosário Gordalina, 1988
O valor estético da cor de uma praça de Lisboa
Fig. 4
Piazza dei Palio, Siena.
Rosário
Gordalina,
dade. Quem chegava do mar e quem se aprontava a partir, encontrava neste local um natural “porto”, cenário perfeito para um último momento de reflexão antes do re-gresso a casa, deixando para trás aventuras e cansaços, qual Ulisses deixando para trás, antes de nova viagem, afectos e seguranças, mas ao mesmo tempo dando novo impulso ao desejo de aventura.
Se considerarmos a valência estética em sen-tido crociano, ou seja, na mais ampla e rigo-rosa acepção proposta por Croce13,
contem-poraneamente à proposta, avançada por Ku-bler14, de uma inferência antropológica que
modifica a reflexão sobre a arte, se a essas juntarmos igualmente, como sugerido por Belting15, a instância psicológica de raiz
woelffliniana, configura-se então uma con-vincente identidade estética da “nossa” praça, a qual implica a vida social e a vida fí-sica que a condicionam no tempo, alterando e simultaneamente confirmando a sua iden-tidade formal; melhor então podemos abor-dar a questão do seu valor estético e o das ar-quitecturas que a constituem. O que está em jogo não é naturalmente simples; trata-se em suma de entender a essência desta ins-tância estética.
Um procurado acordo com os mitos, os ritos, com a realidade fremente e vivente da natu-reza, designadamente do rio que de um lado coroa o perímetro da praça, com tudo aquilo que, e em termos peremptórios, declara a liga-ção entre cidade e mar, a enfim projecliga-ção ecla-tante de Lisboa sobre o rio, eis o que dilata e articula os próprios termos da nossa reflexão. É William Blake que nos recorda que tudo aquilo que vive é sagrado.
Confirma-se assim a sacralidade da ligação com o mar, consequentemente assume um va-lor sagrado também a praça, símbolo evidente de tal ligação, símbolo de Lisboa. A pele des-tes edifícios tem, pois, um valor especial; pelo que alterá-la, ainda que minimamente, e alte-rar a “memória” histórica que nela se narra, poderia significar atingir profundamente a ci-dade na sua identici-dade.
leque de tonalidades que vão desde o amarelo enxofre ao laranja, como é o caso do amarelo de Nápoles, dependendo as variações de tom da quantidade de chumbo e antimónio nele presente10.
Voltando à questão em análise, é uma ulterior confirmação a da valência estética a atribuir sem demora à recuperação da cor da praça? Gaston Bachelard11observa que a mínima
co-lina, para quem extrai os sonhos da natureza, é inspirada. O mesmo se poderá dizer desta em-blemática praça; com a agravante determinada pela projectualidade inevitavelmente presente que significa vontade estética. Detendo-me nesta última, é por demais evidente ser a Praça do Comércio um lugar arquitectónico “tópico” que condiciona o plano urbanístico circundante; um ponto de referência nodal, ao nível de área ou perímetro urbano, de territó-rio. Não basta porém declarar-lhe a valência estética e deixar subentender que a essa se liga uma inferência existencial e tantas outras. Torna-se necessário, igualmente, melhor clari-ficar o sentido, o tom e o peso desta instância estética.
Pela sua própria estrutura, a Praça do Comér-cio é um grande rectângulo repartido pelas li-nhas medianas em partes iguais, circundado nos três lados por edifícios calculados em rela-ção a este espaço, ao cenário que coroa a pró-pria praça e ao quarto lado aberto sobre o rio; estrutura esta que mostra uma singular analo-gia com os textos de Dylan Thomas. Nestes parece prevalecer o princípio da regularidade estrutural, rítmica, sintática, estilística, sem que nunca venha a faltar simultaneamente a valência simbólica e visiva, na qual a visão se adensa e carrega de significados, de segundos sentidos metafóricos, como no caso da última poesia de Dylan, “Elegy”12, características que
correspondem precisamente ao que nos oferece a Praça do Comércio.
Estamos diante de um cenário regularís-simo, que atrai e domina, observando-o seja da cidade seja do rio. Portanto um local “forte” de Lisboa, que funciona como ele-mento ordenador do skyline histórico da
rebocos representam a rede de ligação, de destacamento e de contacto entre cidade e rio; e de algum modo contribuem na exalta-ção do encontro entre a história e o tempo presente que nesta praça se actua.
Para terminar, diria – e permanecendo na questão da recuperação do original pigmento – que essa, mais do que uma devida restitui-ção “histórica”, actualiza a própria história e vem assim a restituir impulso ao valor deste espaço arquitectónico que é exactamente o es-paço do seu ser em si, adoptando as palavras de Rilkde, reinvestindo a realidade arquitec-tónica da praça, da sua memória e da sua Essa mesma pele confirma não só a
identi-dade formal das construções, de toda a praça, como dá um outro efeito sobre este espaço. As diferentes energias activas e passivas, o encontro entre aquilo que está dentro e o que está fora, a ligação entre terra e mar, equiva-lente de algum modo àquela entre dia e noite, tudo isto é confiado à unidade do ce-nário, composto em grande parte pela se-quela de edifícios que dão para a praça. A função dos rebocos destes edifícios surge as-sim também como a de ligante e de filtro en-tre tal diversidade de estímulos e de solicita-ções. Sobretudo estas construções e os seus
O valor estético da cor de uma praça de Lisboa
Fig. 5
Lisboa em Florença (João Gonçalves, particular do fresco São Bento
recupera a foice caída no lago,
Claustro das Laranjas, Florença).
Rosário
Gordalina,
ponível ao encontro com os homens, com os cidadãos. "
*Historiadora da Arte
Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais plena vitalidade, já que está implicada a
pos-sibilidade de uma vida activa que tenha uma especial “qualidade”, uma “qualidade esté-tica” implicando o tempo presente. O que torna a Praça do Comércio mais incisiva na consideração da contemporaneidade, mais
di-O valor estético da cor de uma praça de Lisboa
Notas
1 – Peter Handke, Versuch uber der
eglucklain Tag Ein Wintertagtraum,
Frankfurth e Maine, Suhrkamp, 1991; tradução italiana de E. Zorzi, Sagio sulla Giomata Riuscita, Milão, Garganti, 1993.
2 – Marguerite Yourcenar, “Les prisions imaginaires de Piranèse”, N.R.F., Janeiro de 1961; incluído em Sous Benéfice d’Inventaire, Paris, Gallimard, 1978; tradução inglesa de Richard Howard, The Dark
Brain of Piranesi and other Essays,
Farrar, Straus & Giroux, 1986. 3 – Lawrence Durrell, Quatour
d’Alexandrie-Mountolive (1958),
Paris, Buchet/Chastel, s.d. 4 – Carlo Ludovico Ragghianti,
L’uomo cosciente, arte e conoscenza nella paleostoria, Bolonha,
Calde-rini, 1981.
5 – Maria do Rosário Gordalina,
Praça do Comércio – A Cor Original,
Lisboa, DGEMN – Direcção de Serviços de Inventário e Divulga-ção, Dezembro de 1993.
6 – Miguel Maurício Ramalho,
Lisboa Reedificada. Poema Épico,
Lisboa, 1780.
7 – J. B. F. Carrère, Tableau de
Lisbonne en 1796, Paris, 1797;
tra-dução portuguesa de Castelo Branco Chaves, Panorama de Lisboa
no ano de 1796, Lisboa, Biblioteca
Nacional, 1989.
8 – In Aicune Premesse sulla pittura
di Gualtiero Nativi, Florença, 1992
(em curso de publicação).
9 – Marguerite Yourcenar, Carnets
de notes de Memóires d’Hadrien
(1958); tradução portuguesa de Maria Lamas, “Apontamentos so-bre as Memórias de Adriano”, in
Memórias de Adriano, s.1., Ulisseia,
1981.
10 – Afirmar-se (Cfr. Femanda Ribeiro, “Praça do Comércio volta ao amarelo de Nápoles”, O Público, 24 de Abril de 1994 e Hedwig Heeren, “lt’s back to Naples Yel-low”, Anglo-portuguese News, 5 de Maio de 1994) que o tom original da Praça do Comércio era o ama-relo de Nápoles revela, antes do mais, desconhecimento da histó-ria, composição e natureza deste pigmento; de igual modo nada permite identificar o “jalde” refe-rido nos documentos como sendo amarelo de Nápoles. O pigmento deve o seu nome à tradição de que em Nápoles se encontrava um amarelo mineral de origem vulcâ-nica; por esse motivo é por alguns autores identificado como o
giallo-rino de que fala Cennino Cennini.
É um pigmento que quimicamente combina os óxidos de chumbo e de antimónio (Pb3[SbO4]2), sendo frequentemente substituido por misturas de outros pigmentos, como o ocre ou o cadmium mistu-rados com branco de chumbo, misturas todavia não comparáveis ao brilho do verdadeiro amarelo de Nápoles. Cfr.: Max Doemer,
Malmaterial und seine verwendung im Bilde, Munique, 1921;
tradu-ção inglesa de E. Neuhaus, The
Materials of the Artist, Orlando,
Harcourt Brace Jovanovich Pu-blishers, 1934. Merrifield, The
Art of Fresco Painting (1846),
Lon-dres, Alec Tiranti, 1952. Quanto ao “jalde” refira-se que, como já mencionado no meu Relatório…, dele se ocupou Filipe Nunes na sua obra Arte da Pintura, Symetria
e Perspectiva (editada em Lisboa
em 1615; ed. facsimilada pela Editorial Paisagem, 1982), dedi-cando-lhe um capítulo “Modo de usar o jalde a óleo”, e no qual re-fere a sua impossibilidade de ser aplicado a têmpera.
11 – Citado por Jacques Derrida na apresentação do catálogo da ex-posição Memóires d’Aveugle, Paris, Louvre, 1990.
12 – In Collected Poems, s.l., Dent O.M., 1991.
13 – Benedetto Croce, Breviario di estetica. Aesthetica in nuce, Milão,
Adelphi, 1990.
14 – George Kubler, The Shape of
Time, Princeton, Yale University
Press, 1972.
15 – Hans Belting, Das End der
Kunstgeschichte?,Munique, Deuts-cher Kunstverlag, 1983; tradução italiana de F. Pomarigi, La fine
della Storia dell’Arte o la libertá del-l’Arte, Turim, Einaudi, 1990.
O painel
de São Luís
do Maranhão
Rafael Moreira*
D O S S I E R
O bairro portuário da Praia Grande, na cidade brasileira de São Luís, capital do Estado do Maranhão (que na época pombalina abarcava todo o Norte do Brasil, incluindo a Amazó-nia), é justamente famoso pelos seus prédios de fachadas cobertas de azulejos – uma moda que daí teria vindo em meados do século pas-sado para Lisboa e Porto –, constituindo a maior extensão de arquitectura civil de ori-gem portuguesa existente fora de Portugal. Um criterioso programa de restauros, envol-vendo mais de 200 imóveis, vem desde há al-guns anos revitalizando e dando nova aparên-cia àquele que foi o centro dum dos maiores portos de toda a zona equatorial, e o mais pró-ximo em linha recta de Lisboa. Foi no decurso desses trabalhos que apareceu, em 1990, sob várias camadas de cal, no interior dum impo-nente edifício – um sobrado – de dois pisos contíguo à antiga sede da companhia pomba-lina de comércio do Grão-Pará e Maranhão, a pintura mural de que aqui nos ocupamos. O autor destas linhas acertou de passar no lo-cal poucas semanas após o casual achado e re-conheceu de imediato o seu enorme interesse. Trata-se, com efeito, duma ampliação em grande formato (3,10 # 1,70 metros), à es-cala da parede de fundo duma sala, da conhe-cida gravura contendo uma vista imaginária
Fundação
Calouste
Gulbenkian.
O painel de São Luís do Maranhão
Fig. 2 Vista geral do painel, recentemente restaurado, e sua inserção na parede. Na página anterior (Fig. 1), pormenor do painel.
Fundação
Calouste
Gulbenkian.
amarelo) que apenas conhecíamos de referên-cias literárias…
Algumas saborosas cenas do quotidiano lis-boeta povoam o interior da praça: um grupo de soldados que discute junto ao Cais das Co-lunas, o “galego” que descansa sentado nos seus degraus, carruagens que cruzam o terreiro vazio, um embuçado, carregadores, passeantes, e os habituais “mirones” que, como ainda hoje, observam de cima do muro a azáfama dos barcos no Tejo. A este espectáculo de rea-lismo costumbrista – tão comum na pintura de paisagem rural, mas raro nas vistas urbanas anteriores ao Romantismo (como em Se-queira) – o autor soube juntar a presença, si-lenciosa e imponente, da cidade, fazendo res-saltar todo o pormenor dos monumentos que a definem como centro do poder: o cais, os tor-reões do governo e da bolsa, a estátua, o arco (ainda visto com o campanário que, afinal, acabaria por não se erguer). É o retrato pu-jante duma próspera Capital que assim se nos oferece aos olhos.
Graças a um generoso auxílio da Fundação Calouste Gulbenkian, foi possível recuperar em menos de um ano este painel (pela equipa do restaurador Orlando Ramos, sob nossa orientação científica) e inaugurá-lo a 14 de Junho de 1993. O “sobrado” onde foi encon-trado pertencera a Honório José Teixeira, um dos mais prósperos comerciantes portugueses da praça de São Luís na passagem do século XVIII ao XIX, e a sala térrea do canto, a mais ventilada, servia de ponto de reunião aos negociantes, que aí trocavam informa-ções, recebiam as últimas notícias de Lisboa dos seus barcos acabados de atracar no cais da Alfândega, mesmo em frente, e fixavam os preços dos produtos: uma bolsa de mercado-res, que daria origem em 1854 à Associação Comercial Maranhense (ver Jerónimo de Vi-veiros, História do Comércio do Maranhão, vol. I, São Luís, 1954, pp. 237-8). O restauro mostrou que toda a sala estava pintada a es-caiola em dois tons, como um revestimento marmóreo, e o painel preenchia o fundo de uma vasta janela fingida, engalanada por cor-da “Praça do Comércio cor-da Cicor-dade de Lisboa”,
de que se conserva pelo menos um exemplar no Museu da Cidade, tradicionalmente atri-buído ao arquitecto Carlos Mardel.
Na realidade, a pequena mas impressiva gra-vura – que apresenta a “imagem oficial” da praça tal como fora projectada após o terra-moto e sonhada pelo marquês de Pombal, numa visão que deriva dos modelos da cidade ideal do Renascimento italiano – é hoje atri-buída com maior segurança ao gravador Joa-quim Carneiro da Silva (1727-1818), mestre na Imprensa Régia, e ao ano de 1775: o mesmo em que imprimia a sua célebre es-tampa da estátua equestre, então inaugurada. Encontramos o mesmo protótipo, reduzido às dimensões de um pequeno quadro, numa pin-tura a óleo a azul e negro sob vidro executada na China pouco após aquele ano, recente-mente exposta no Museu Guimet, em Paris. Tão surpreendente quanto esta ocorrência no Extremo Oriente (por encomenda de Macau, naturalmente) é o seu simultâneo apareci-mento no outro lado do globo. A gravura foi, pois, o suporte de um “ícone” em que se pre-tendia exibir a imagem da nova Lisboa de Pombal, tendo circulado rapidamente por todo o mundo português, copiada, reduzida e ampliada nos meios mais diversos – do cobre ao mural e à miniatura –, obedecendo, sem dúvida, aos propósitos oficiais de celebração e de prestígio.
Estamos melhor informados a respeito das circunstâncias em que foi executado o painel mural de São Luís do Maranhão do que o qua-drinho da China, ou a própria gravura lis-boeta que serviu de modelo a ambos. E ainda bem que assim é, porque se trata do único caso em que, devido às suas dimensões e ao meio usado (uma têmpera aplicada a seco so-bre uma camada de estuque muito fino, per-mitindo retoques e pinceladas de grande sub-tileza, como num guache), foi possível ao pin-tor fornecer pormenores de extremo realismo – entre os quais, e pela primeira vez, a exacta cor pombalina das paredes da Praça do Co-mércio, esse “jalde” ou “jalne” (=jaune, isto é,
O painel de São Luís do Maranhão
Fig. 3
Painel em processo de limpeza, notando-se bem a coloração amarela originária.
Fundação
Calouste
nardo da Silveira Pinto da Fonseca e a ligação da colónia à sua metrópole.
Mas, nessa ou noutras circunstâncias, por esse ou por outro autor, o que conta é a ima-gem viva da capital que ele nos dá, proposi-tadamente situada no próprio coração de São Luís: a ainda hoje chamada “Praça do Comér-cio”, vasto terreiro quadrado aberto em 1780 à beira-mar, com edifícios em três lados (e a rampa do cais no quarto), onde se situavam os armazéns grossistas, a alfândega e a bolsa – réplica em ponto pequeno da mítica praça pombalina.
Há muito já que sucessivos aterros a afastaram do mar; mas nela perdura, desconhecido até há pouco, o que é, talvez – na forma como na cor e na intenção ideológica –, o retrato mais fiel que até nós chegou do seu modelo pombalino de Lisboa.l
tinas vermelhas de festa e enquadrada em perspectiva na própria arquitectura da sala, como um balcão abrindo ao exterior. Era sob essa visão tutelar que os negociantes manti-nham os seus tratos, assim marcando uma política de ligação à pátria (o que explica que tenha sido recoberta com cal logo após a in-dependência do Brasil, em 1822, e assim per-manecido desde então).
Quando, e por quem, terá sido pintado? A presença num dos barcos da bandeira do “Reino Unido de Portugal e Brasil”, em uso apenas entre 1815 e 1822, permite restringir a sua feitura a esses anos, e atribuí-lo ao me-lhor pintor então activo no Maranhão, o enge-nheiro-cartógrafo e notável miniaturista Joa-quim Cândido Guilhobel, filho de um grava-dor da Casa da Moeda, recém-vindo de Lisboa após a fuga da família real. Seria por ocasião do grande movimento liberal eclodido no Porto em 1820 – que contou com fortes apoios no Maranhão, então governado por um irmão do seu chefe militar – que, ao que tudo indica, a pintura foi executada, homena-geando o bom governo iluminista de D.
Ber-O painel de São Luís do Maranhão
Fig. 4 “Sobrado” de 1780-1800 que forma o lado principal da Praça do Comércio de São Luís do Maranhão. Na sala térrea do ângulo, correspondente às duas primeiras portas, funcionava uma bolsa de mercadores, onde havia estado a companhia pombalina de comércio do Grão Pará e Maranhão. Lá aparecerá o painel rural representando a Praça do Comércio de Lisboa.
Notas
1 – Agradecemos ao secretário de Cultura do Estado do Maranhão, Arq.oLuiz Phelipe Andrès, bem como à Fundação Calouste Gul-benkian na pessoa do seu ilustre administrador, Dr. José Blanco, todo o apoio que têm prestado ao nosso trabalho (de que o presente texto representa uma súmula ainda provisória) e a necessária autoriza-ção para aqui reproduzir algumas
das suas imagens. * Universidade Nova de Lisboa
Fundação
Calouste
Gulbenkian.
D O S S I E R
Do Terreiro do Paço
à Praça do Comércio
Teresa Leonor Vale*
O Terreiro do Paço antes de 1755
Espaço urbano definido como praça desde o período medieval, o Terreiro do Paço era, já no período manuelino, um espaço detentor de grande significado do ponto de vista urbanís-tico e literalmente a praça na qual se localizava a residência régia – o Paço da Ribeira, situado no flanco poente do terreiro, junto ao rio, em estreita ligação com a máquina administrativa e comercial do Estado.
O reinado de Filipe II vai legar ao velho palá-cio real de Lisboa um torreão – edificado por volta de 1581, provavelmente segundo um pro-jecto do arquitecto régio Filippo Terzi – que teve um tal impacte no contexto da paisagem arquitectónica da capital (por questões estrita-mente formais, certaestrita-mente, mas também pelo prestígio do edifício no qual se integrava), que é repetido com geminação simétrica na recons-trução pombalina, já depois de ter servido de modelo a Mafra e sendo já muito tardiamente recriado numa linguagem neoclássica no Palá-cio da Ajuda.
O torreão era uma robusta construção de qua-tro andares, ostentando o primeiro artilharia apontada para o rio. Uma ala disposta perpen-dicularmente ao Tejo e de um só andar, vasada por múltiplos vãos de diferente configuração, articulava-se com o bloco do torreão.
Na primeira metade de Seiscentos, o terreiro – então com 620 passos de comprimento e 200 de largura2– tinha os seus limites fixados pelo
edifício da Alfândega e Terreiro do Trigo, no lado ocidental, pelo palácio real e Casa da Índia, a oriente e nordeste, e por uma série de edifi-cações várias perfuradas por arcos a norte. O Terreiro do Paço chega ao reinado de D. João V como um conjunto arquitectónico relativamente homogéneo quanto à massa construída – veja-se o interessante desenho efectuado a propósito das festividades realiza-das em Agosto de 1684, aquando do segundo casamento de D. Pedro II com D. Maria Sofia de Neuburgo3 –, reconhecendo-se como
ele-mentos perturbadores do conjunto apenas os arcos dos Pregos (situado sensivelmente no eixo norte-sul da praça), dos Barretes (a leste
“Os edifícios do Terreiro do Paço formam um conjunto agradável, circundando a praça e
erguendo-se sobre arcadas espaçosas, muito bem lançadas, terminando em cada extremo do
lado do Tejo por dois torreões (…). Todos estes edifícios são uniformes, regulares, mas sem
ornamentos (…).”
determinante no conjunto, não só do ponto de vista formal mas também no domínio da fun-cionalidade e carácter da praça.
Morfologicamente a praça era então um qua-drilátero bastante irregular, tendo o lado norte cerca de 270 metros, o lado oeste 115, o lado este 80 e o lado sul (rio) 235. Será sobre este terreiro de dimensões irregulares e sobre os escombros deixados pelo terramoto de 1755 que os arquitectos da reconstrução pombalina – disciplinando preexistências – edificarão a Praça do Comércio, tal como a re-conhecemos hoje, esse espaço urbano privile-giado pela acção do homem e pela paisagem4.
O Terreiro do Paço
da reconstrução pombalina:
a Praça do Comércio
O abalo sísmico de 1 de Novembro de 1755 arrasa parte significativa da cidade de Lisboa e o Terreiro do Paço não é excepção. As preocu-pações que presidem à necessária reconstrução da praça vão evoluir da linear preservação morfológica e funcional do preexistente até à edificação daquilo que podemos designar um conjunto arquitectónico inovador mas deten-tor de memória.
Com naturalidade, o Terreiro do Paço rapida-mente se constituiu, após a destruição do ter-ramoto, como um dos principais alvos da atenção de Sebastião José de Carvalho e Melo e dos seus arquitectos, assumindo-se com facili-dade como um centro ideal da reedificação da baixa lisboeta. Desde cedo que Manuel da Maia (1677-1768) – nas dissertações elabora-das acerca da reconstrução da cidade dirigielabora-das ao marquês de Pombal, a primeira das quais data de 4 de Dezembro de 1755 – realça as vantagens do local para se fazerem as “boas en-tradas” da cidade reconstruída.
Assim se procede à reedificação pombalina da praça, tendo subjacente o modelo das praças reais europeias e não negligenciando a ante-riormente marcante presença do famoso tor-reão filipino, nem tão-pouco a presença efé-do anterior), efé-dos Passarinhos (localizaefé-do perto
do ângulo formado pelos lados norte e oeste do terreiro) e ainda a porta da Ribeira. A este panorama, D. João V fará acrescentar a célebre torre do relógio, construída de acordo com um projecto de António Canevari, durante a per-manência deste arquitecto italiano em Lisboa, entre os anos de 1728 e 1732. Mantinha-se então o palácio real como edifício dominante e
Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio
Biblioteca
Nacional.
O contributo de ordem natural para o con-junto é obviamente a presença do rio, que funciona não só como abertura cenográfica à paisagem mas ainda como factor modelador da luz que banha a praça com sazonais varia-ções.
Aos primeiros anos da reconstrução pomba-lina remonta também a alteração da designa-ção da praça, o que corresponde igualmente a uma alteração de função e a uma adequação ao contexto socioeconómico da época pomba-lina.
Em 1758, tendo em consideração os projec-tos em elaboração para o então Terreiro do Paço, os comerciantes da cidade solicitam e obtêm autorização (por decreto de 16 de Ja-neiro desse ano) para aí procederem à edifi-cação de uma bolsa ou praça que antes do sismo se reunia sob as arcadas da Rua Nova dos Ferros e que seria paga com os 4% de donativo à Coroa. No ano seguinte, um “aviso” do marquês de Pombal designa já o terreiro como Praça do Comércio, designa-ção que alude não só à localizadesigna-ção da bolsa dos comerciantes no topo oriental daquele espaço, mas que funciona também como uma homenagem a uma actividade e a uma classe da maior relevância na sociedade do tempo.
A denominação Real Praça do Comércio ainda se regista, até que se determina o afastamento da residência régia daquele espaço urbano e prevalece a designação de Praça do Comércio. Verifica-se assim uma perfeita sintonia entre programa urbanístico e ideologia do Estado, conjugados no projecto de Eugénio dos San-tos, o qual traduz claramente a preocupação em transformar o velho Terreiro do Paço na nova Praça do Comércio. A partir do mo-mento em que se fixa o projecto e o programa a cumprir, têm início de facto as obras de edi-ficação do complexo arquitectónico da Praça do Comércio – obras com uma progressão lenta, que permite a alguns viajantes estran-geiros o registo da ideia de destruição (cau-sada pelo terramoto) ao longo de variados anos. Assim se verifica com os escritos do ita-mera de arcos celebrativos realizados na praça
em ocasiões de entrada na cidade de personali-dades de relevo ou de festivipersonali-dades relacionadas com a vida da família real.
Quanto ao torreão dito de Terzi, a ideia da sua duplicação em posição simétrica remonta a um momento anterior ao terramoto, mais precisamente a 1750, data de um projecto anónimo5 que Eugénio dos Santos
(1711--1760) não ignora ao elaborar, em 1759, o projecto que acabou por prevalecer e segundo o qual se procedeu à construção dos edifícios que constituem o novo Terreiro do Paço, numa área de 177 # 192,5 metros. Este pro-jecto de Eugénio dos Santos contemplava igualmente a edificação de um arco que aca-bou por não ser construído de imediato – op-tando-se bastante posteriormente pelo pro-jecto do francês Anatole Celestin Calmels, responsável pela aparência que apresenta hoje o arco da Rua Augusta – e ainda erecção de um monumento ao monarca no centro da praça, a estátua equestre de D. José, cuja exe-cução acabou por ser confiada a Joaquim Ma-chado de Castro (1731-1822).
Do ponto de vista arquitectónico, e como no-tou José-Augusto França, a principal qualidade do Terreiro do Paço pombalino é o ritmo6,
ob-tido pela constituição dos alçados por elemen-tos celulares simples – arcadas em arco de volta inteira, descarregando sobre pilares de secção quadrada, encimadas por janelão rectangular centrado, sobrepujado por vão quadrangular de emolduramentos de cantaria sem decoração. Ainda de registar, no contexto de generalizada sobriedade que se verifica, é a animação operada pelos dois torreões que rematam as alas laterais junto ao rio. Elemento dinamizador, em termos estritamente arquitectónicos mas também ur-banísticos, é o arco de triunfo – assinalando o acesso à rua central –, ladeado pela abertura de outros dois eixos que se equilibram. É esta a ar-quitectura de Eugénio dos Santos, expressa numa linguagem que, revelando ter assimilado os ensinamentos do classicismo francês, simpli-fica e funcionaliza o desenho barroco, legado pelo período joanino.
Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio
Fig.1
(página anterior)
Desenho do Terreiro do Paço – com a réplica do jardim do Palácio do Conde da Ericeira aquando do casamento de
D. Pedro II com Sofia de Neuburgo, em Agosto de 1684 – constante da obra de João dos Reis,
Copia dos Reaes. Aparatos e Obras que se Ficeram em Lixboa na ocasiam da Entrada e dos Desposorios de Suas Magetades.
(Lisboa, Biblioteca Nacional, Secção de Reservados.)
Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio
Fig. 2 Gravura de Wells, segundo desenho de NöeI, publicada em Londres em 1793, na qual se observam os edifícios da Praça do Comércio e em especial o torreão oriental, onde funcionava a bolsa dos mercadores. (Lisboa, Museu da Cidade.)
Fig. 3 Alçado da Praça do Comércio segundo o projecto de Eugénio dos Santos, sendo visível o torreão oriental e a Casa da Índia, 1823. Escala 1:135. (Lisboa, Biblioteca e Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas, Transportes
e Comunicações.) 2 3 Museu da Cidade. 1994 BAHMOPTC. 1994
A ocupação dos edifícios
pombalinos da Praça do Comércio
Quanto à ocupação dos edifícios pombalinos da Praça do Comércio, ela obedeceu, com na-turais pequenas variações ao longo do tempo, à função oficial estabelecida desde o início. Com efeito, foi essencialmente para receber o aparelho do Estado que o marquês de Pombal concebeu o conjunto arquitectónico da nova praça da reconstrução, que se assumia assim como o centro de poder do país na cidade sete-centista. Deslocada a residência régia daquele espaço, a nova Praça do Comércio tornava-se exclusivamente o ponto em torno do qual gi-ravam as decisões políticas e económicas de-terminantes para o futuro do reino, num pro-cesso do qual o rei era de certo modo distan-ciado pelo poder e atribuições do ministro. Assim, em 1758, como se referenciou já, os comerciantes recebem a necessária autorização para instalarem a sua bolsa no topo oriental da praça. Nos edifícios contíguos à bolsa rapida-mente se instala a alfândega, sendo os restan-tes edifícios ocupados por tribunais, já no final do século XVIII.
Excepção no contexto desta ocupação estrita-mente oficial da praça, que remonta ao século XVIII, era o café da arcada do Terreiro do Paço, ao qual surge pela primeira vez menção na Gazeta de Lisboa, no ano de 1782, sob a de-signação de Casa da Neve (gelado). Dois anos mais tarde era seu proprietário o italiano Do-menico Mignani, pelo que o café era então co-nhecido por Casa da Neve Italiana. Em 1795 era já o Café do Comércio, adequando-se as-sim à denominação da praça.
Data porém do final do século XIX a designa-ção com que chegou até nós, a qual se rela-ciona com o nome do seu proprietário de en-tão, Martinho Rodrigues, ficando o antigo café da arcada do Terreiro do Paço conhecido pelo Martinho da Arcada.
Durante a centúria de Oitocentos permanece-ram instalados nos edifícios da Praça do Co-mércio os diferentes ministérios, generica-mente com a seguinte distribuição: a oriente liano Giuseppe Gorani, residente em
Portu-gal entre 1765 e 17677.
Quando em 1775, vinte anos após a ocorrên-cia do sismo, se procede à inauguração da es-tátua equestre de D. José, os edifícios da praça encontram-se ainda apenas parcial-mente construídos8.
Alguns anos mais tarde, em 1793, gravuras efectuadas a partir de obras do pintor francês Nöel, então em Portugal a convite do comer-ciante inglês Gerard Devisme, evidenciam a inexistência do torreão ocidental da praça ainda nesta data. A mesma ideia que se en-contra expressa na obra que J.B.F. Carrère faz publicar em Paris, sob o título de Voyage en
Portugal et Particulièrement à Lisbonne en 1796,
na qual se refere ainda o facto de então os edifícios da Praça do Comércio se encontra-rem pintados de amarelo, “(…) cor que, de-gradada pelas chuvas, apresenta matizes vá-rios de muito mau efeito”9, segundo o autor
que, apesar destas observações, manifesta o seu agrado pelas “arcadas espaçosas e muito bem lançadas”.
Já nos primeiros anos do século XIX, Fran-cisco Coelho de Figueiredo escreve, repor-tando-se ao lado ocidental da praça: “(…) o lugar que se conserva imperfeito na Real Praça do Comércio, por terem dado de si para baixo as estacas agudas com pontas de ferro (…)”10, o que mais uma vez atesta o
estado incompleto da praça, em particular da sua ala poente. Ainda em 1819, gravu-ras efectuadas com base em desenhos de l’Evêque, mostram o Terreiro do Paço sem o torreão ocidental. Com efeito, data de 1842 a conclusão deste torreão, ficando en-tão o conjunto arquitectónico da praça completo, à excepção do arco triunfal, rea-lizado apenas em 1875, segundo projecto de Anatole Celestin Calmels, como se refe-renciou. Assim, é apenas no início do úl-timo quartel do século XIX que se pode falar de conclusão da edificação da Praça do Comércio na sequência do sismo ocor-rido em Novembro de 1755, cerca de 120 anos antes.