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O capital cultural dos altos funcionários públicos cabo-verdianos: um estudo sobre os directores-gerais

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Academic year: 2021

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ÍNDICE

ÍNDICE DE QUADROS ... v

ÍNDICE DE FIGURAS... viii

AGRADECIMENTOS ... ix

INTRODUÇÃO ... 1

CAPÍTULO I – REVISÃO DA LITERATURA ... 7

1.Capital Cultural ... 7

1.1. A abordagem de Bourdieu: capital cultural, desempenho escolar e origem social ... 12

1.2. Estudos empíricos ... 22

2. Altos Funcionários Públicos ... 31

2.1. Abordagem conceptual: teoria das elites ... 31

2.2. Estudos empíricos ... 37

3. Síntese ... 47

CAPITULO II – METODOLOGIA... 50

1.Nota introdutória ... 50

2. Desenho da investigação ... 53

2.1.Técnicas e instrumentos de recolha de dados ... 58

2.2. Pesquisa bibliográfica e documental ... 59

2.3. Observação e pesquisa de campo ... 60

2.4. Inquérito por questionário ... 61

2.5. Entrevista semi-estruturada ... 63

3. Síntese ... 65

CAPÍTULO III – OS ALTOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS NAS SOCIEDADES MODERNAS ... 66

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2. Posição relativa dos altos funcionários públicos no sub-sistema político ... 75

2.1. Políticos e altos funcionários públicos ... 78

2.2. Variáveis que determinam a posição dos altos funcionários públicos no sub-sistema político ... 84

2.3. Politização ou partidarização dos altos funcionários públicos? ... 93

3. Altos funcionários públicos do século XXI: uma burguesia cultural ou uma elite política não governante? ... 99

4. Síntese ... 104

CAPÍTULO IV – CABO VERDE: um encontro entre África e Europa ... 106

1.Breve apontamento histórico ... 106

1.1. Estruturação de uma sociedade de características escravocratas ... 106

1.2. A independência primeiro, o multipartidarismo depois ... 111

2. Cabo Verde do século XXI ... 116

3. Um olhar fugaz sobre a emigração ... 120

4. Síntese ... 125

CAPÍTULO V – EDUCAÇÃO E CAPITAL CULTURAL EM CABO VERDE ... 127

1.Capital cultural e conhecimento como factores de dominação ... 127

2. O capital cultural e a educação escolar ... 134

2.1. A institucionalização do ensino secundário em Cabo Verde no período colonial ... 139

2.2. O papel do Seminário-Liceu de São Nicolau e do Liceu de São Vicente ... 147

3. O capital cultural institucionalizado na construção do Estado independente ... 155

3.1. Da expansão da rede escolar e combate à iliteracia à consolidação do sistema educativo 158 3.2. Política de formação de quadros superiores ... 165

3.3.Criação da Universidade de Cabo Verde e a expansão do ensino superior ... 175

4. Síntese ... 183

CAPITULO VI – ELITISMO, ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL E CAPITAL CULTURAL EM CABO VERDE ... 185

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2. A constituição de uma “elite crioula” na sociedade escravocrata cabo-verdiana ... 190

2.1. Mestiçagem e reconfiguração do campo simbólico durante o período colonial ... 194

2.2. Os cabo-verdianos letrados e o seu papel de mediadores nas colónias portuguesas ... 199

3. Elitismo cabo-verdiano: heranças e percursos culturais ... 209

3.1. As lógicas da “Cultura Erudita” e da “Cultura Popular” em Cabo Verde ... 211

3.2. Revista Claridade: um movimento cultural na trajectória da elite cabo-verdiana ... 222

3.3. Emigração temporária e a constituição de uma Elite de Estado pós-independência ... 229

4. Relação entre mobilidade social e capital cultural em Cabo Verde ... 236

5. Síntese ... 241

CAPITULO VII – OS ALTOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS EM CABO VERDE ... 244

1.Enquadramento institucional ... 245

1.1.Evolução da Administração Pública ... 247

1.2. Estrutura orgânica ... 256

1.3. Enquadramento normativo dos altos funcionários públicos cabo-verdianos ... 261

2. A Administração Pública cabo-verdiana e os seus recursos humanos ... 264

3. Síntese ... 272

CAPÍTULO VIII – OS DIRECTORES-GERAIS CABO-VERDIANOS: perfil, trajectórias e capital cultural 274 1. Background social e familiar ... 274

2. Perfil institucional... 282

3. Capital cultural ... 292

3.1. Do ensino básico ao ensino superior ... 293

3.2. Formação superior e a construção do capital cultural institucionalizado ... 302

3.3. Valor do capital cultural institucionalizado ... 312

3.4. Posição social e habitus ... 316

4. Perfil político ... 324

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iv 6. Limitações do estudo ... 336 7. Síntese ... 338 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 339 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 348 APÊNDICES ... 372

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v ÍNDICE DE QUADROS

Quadro nº 1 - Pesquisa Quantitativa: variáveis e respectivas dimensões e indicadores ... 55 Quadro nº 2 - Nível de estudos da população cabo-verdiana com 3 anos ou mais ... 119 Quadro nº 3 - Distribuição dos alunos com frequência irregular ao longo do ano, em Cabo Verde (1911-1916) ... 144 Quadro nº 4 - Seminário-Liceu de São Nicolau: plano de estudos ... 149 Quadro nº 5 - Principais Estrangulamentos do Sistema de Ensino em Cabo Verde ... 160 Quadro nº 6 - Investimento Público na Educação em Cabo Verde: Planos Nacionais de

Desenvolvimento, 1978-2000 (%) ... 161 Quadro nº 7 - Evolução das despesas públicas com a Educação (2001-2009) ... 162 Quadro nº 8 - Bolseiros cabo-verdianos no exterior por país de acolhimento e segundo o grau de formação (ano lectivo 2011/2012)... 172 Quadro nº 9 - Génese do Ensino Superior de Cabo Verde ... 177 Quadro nº 10 - Número de alunos inscritos no Ensino Superior em Cabo Verde no ano lectivo

2011/2012 ... 179 Quadro nº 11 - Número de cursos disponíveis por áreas e por nível de formação (Ano lectivo

2011/2012) ... 182 Quadro nº 12 - Organismos da Administração Pública Central Directa de Cabo Verde (2015) ... 258 Quadro nº 13 - Evolução do número de funcionários públicos em Cabo Verde (19074-2006)... 268 Quadro nº 14 - Número de funcionários públicos da Administração Pública Central Directa em Cabo Verde (2014) ... 269 Quadro nº 15 - Antiguidade dos funcionários públicos da Administração Pública Central Directa (2014) ... 269 Quadro nº 16 - Percentagem de dirigentes da Administração Pública Central Directa, segundo o género (2014) ... 270 Quadro nº 17 - Estrutura etária dos dirigentes da Administração Pública Central Directa (2014) .... 270 Quadro nº 18 - Género ... 275 Quadro nº 19 - Estrutura etária ... 276 Quadro nº 20 - Habilitações literárias ... 276

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Quadro nº 21 - Habilitações literárias do pai e da mãe ... 277

Quadro nº 22 - Ocupação profissional dos pais ... 279

Quadro nº 23 - Ocupação profissional das mães ... 279

Quadro nº 24 - Valorização da escola por parte da família ... 280

Quadro nº 25 - Antiguidade no cargo de director-geral ... 283

Quadro nº 26 - Antiguidade na administração pública ... 283

Quadro nº 27 - Número de vezes que foi nomeado para o cargo de director-geral ... 284

Quadro nº 28 - Local onde exercia actividade profissional antes de ser nomeado para o cargo ... 286

Quadro nº 29 - Forma de nomeação para o cargo ... 286

Quadro nº 30 - Participação directa no processo de tomada de decisão sobre políticas públicas na sua área da actuação ... 288

Quadro nº 31 - Regularidade de participação em reuniões ministeriais sobre a definição de políticas públicas ... 288

Quadro nº 32 - Autonomia no exercício das suas funções ... 288

Quadro nº 33 - Instrumentos dos quais depende o poder de decisão ... 289

Quadro nº 34 - Importância da identificação do director-geral com o partido no Governo ... 290

Quadro nº 35 - "Existe um elevado grau de coesão entre todos os directores-gerais." ... 290

Quadro nº 36 – “A relação com os outros directores-gerais é de conflito" ... 290

Quadro nº 37 – “A relação com os outros directores-gerais é de cooperação." ... 291

Quadro nº 38 - Conhecimento pessoal dos outros directores-gerais ... 291

Quadro nº 39 - "Convive informalmente com os outros directores-gerais." ... 292

Quadro nº 40 - Estabelecimento de ensino onde realizou os estudos secundários ... 294

Quadro nº 41 - Motivos para realizar estudos médios/superiores ... 297

Quadro nº 42 - Formas de financiamento dos estudos médios/superiores ... 298

Quadro nº 43 - Países onde realizou a formação média/superior... 299

Quadro 44 - Estabelecimentos de Ensino Superior frequentados ... 301

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vii Quadro nº 46 - Número de anos que esteve fora de Cabo Verde a realizar os estudos

médios/superiores ... 305

Quadro nº 47 - Actividades de carácter laboral desenvolvidas durante o período de formação média/superior ... 305

Quadro nº 48 - Actividades desenvolvidas no estrangeiro durante a formação média/superior ... 308

Quadro nº 49 - Actividades associativas e/ou políticas durante o período de formação média/superior ... 309

Quadro 50 - Vantagens apontadas pelos directores-gerais decorrentes da formação média/superior no estrangeiro ... 310

Quadro nº 51 - "O curso realizado no estrangeiro foi imprescindível para encontrar o seu 1º emprego" ... 313

Quadro nº 52 - Tempo que demorou a encontrar emprego após o período de formação média/superior ... 313

Quadro nº 53 - "Trabalhava antes de fazer a sua formação média/superior?" ... 313

Quadro nº 54 - "Se ficar desempregado não terá muitas dificuldades em encontrar nova ocupação profissional" ... 314

Quadro nº 55 - "A obtenção de um diploma no estrangeiro constitui uma vantagem sobre aqueles que realizaram ou estão a realizar os seus cursos em Cabo Verde? ... 314

Quadro nº 56 - Auto-percepção do valor da formação média/superior no estrangeiro para o desempenho do cargo, por comparação com os estudos em Cabo Verde ... 315

Quadro 57 - Preferência quanto ao local onde os filhos devem realizar a sua formação superior .... 316

Quadro nº 58 - Actividades desenvolvidas antes da formação média/superior ... 318

Quadro nº 59 - Auto-percepção sobre posição económica e social ... 321

Quadro nº 60 - Auto-posicionamento socio-económico, segundo o rendimento do seu agregado familiar ... 323

Quadro nº 61 - Exercício da actividade docente ... 324

Quadro nº 62 - Envolvimento político-partidário ... 325

Quadro nº 63 - Participação política ... 327

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ÍNDICE DE FIGURAS

Gráfico nº 1 - Espaço das Posições Sociais (Bourdieu) ... 18

Gráfico nº 2 - Tipologia de Burocracias ... 73

Gráfico nº 3 - Variáveis determinantes da posição dos altos funcionários públicos ... 85

Gráfico nº 4 - Evolução da taxa de desemprego em Cabo Verde (%) ... 117

Gráfico nº 5 - Evolução do número de alunos de Ensino Básico e Secundário (1973-1990) ... 159

Gráfico nº 6 - Percentagem de abandono escolar por anos de estudo (2013-2014) ... 164

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ix AGRADECIMENTOS

No percurso para a concretização do presente trabalho tive o privilégio de encontrar diversas pessoas e instituições sem as quais o resultado que agora apresento teria sido uma impossibilidade, pelo que, não poderei deixar de lhes demonstrar o meu apreço.

A minha maior gratidão é, sem dúvida, para com o meu primeiro e malogrado orientador, Professor Doutor João Bettencourt da Câmara que me abriu as portas do mundo académico e, acima de tudo, me transmitiu o valor do rigor, da honestidade científica, o gosto pelo conhecimento e a curiosidade pelas questões que a realidade social apresenta. A minha admiração e a minha amizade para como meu Mestre são difíceis de traduzir em meras palavras e não caberiam sequer neste espaço, por isso, limito-me a dizer-lhe: muito obrigada!

Ao Senhor Professor Doutor Hermano Carmo agradeço a prontidão, a simpatia e a generosidade com que aceitou substituir o Professor Doutor João Bettencourt da Câmara na orientação deste meu trabalho. A sua entrega, as suas acutilantes e pertinentes sugestões e troca de ideias, as suas imanentes palavras de incentivo e de apoio foram cruciais para o término deste desafio. Estar-lhe-ei para sempre muito grata por tudo isso.

À Professora Doutora Conceição Pequito, minha co-orientadora, expresso a minha gratidão, não só pela ajuda académica e por tudo o que me ensinou, fazendo-me crescer em termos científicos, mas sobretudo pela amizade, palas partilhas e companheirismo.

À minha Escola, o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, agradeço a formação, o acolhimento e sua cultura de excelência. Aos seus Presidentes Professor Doutor João de Faria Bilhim e Professor Doutor Manuel Meirinho Martins que criaram condições para a concretização do presente trabalho, além do incentivo e da amizade. O mesmo agradecimento é dirigido à Professora Anália Torres, Coordenadora da Unidade de Coordenação de Sociologia do ISCSP que desde a sua entrada na instituição foi uma presença amiga, motivadora e solidária neste meu processo.

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Uma palavra muito especial ao malogrado Professor Doutor Óscar Soares Barata, uma das minhas maiores referências académicas, com quem tive o privilégio de aprender e que foi presença constante ao longo da minha trajectória académica, com os seus ensinamentos e exemplo de dedicação e sabedoria.

Agradeço a preciosa ajuda em diferentes pontos da elaboração do trabalho, a troca de conhecimentos e o carinho dos meus amigos e colegas António Pedro Cipriano, Álvaro Nóbrega, Célia Belim, Pablo Biederbost e Guillermo Bóscan.

Também estou grata a vários colegas e amigos do ISCSP que sempre tiveram palavras de estímulo nos momentos de maior incerteza e desânimo, nomeadamente, Sónia Frias, Albino Cunha, Carla Cruz, Margarida Mesquita, Fátima Assunção, Stella António, Rosária Ramos, Francisca Saraiva, Ana Maria Santos, Alice Trindade e Fernando Serra.

Agradeço, igualmente, a todos os directores-gerais que acederam participar voluntariamente neste estudo, bem como a vários informadores, donde destaco os Professores Doutores André Corsino Tolentino, Cláudio Furtado e Crisânto Barros, o Dr. Fernando Jorge Tavares e a Dra. Carla Miranda, bem como a todas as pessoas que, de modo directo ou indirecto, me ajudaram a compreender melhor a realidade cabo-verdiana durante a pesquisa de terreno.

Não posso deixar de manifestar o meu apreço aos amigos que me apoiaram com a sua generosidade, carinho e incentivo, muito em particular, a Fátima Baptista e os parceiros do Lisboa Cantat.

As últimas palavras de agradecimento, mas as mais importantes, são dirigidas aos meus pais, por tudo: o amor incondicional, os sacrifícios, o apoio, os valores que me transmitiram e a sua infinita paciência e compreensão durante esta minha caminhada.

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1 INTRODUÇÃO

Em diferentes domínios da sociedade, as elites assumem um papel de liderança nas dinâmicas sociais. Na administração pública, os funcionários que ocupam o topo daquela estrutura, são responsáveis pela implementação de políticas públicas, exigindo-se, para tal, uma forte capacitação técnica para a prossecução dos objectivos definidos. Max Weber (1947) foi o primeiro autor a estudar o perfil daquele grupo, tendo observado que utilizam um tipo de poder que denominou de racional-legal por ser ancorado num conjunto de normas formais que estipulam o seu modo de agir. A crescente importância das organizações burocráticas consolidou o destaque dos altos funcionários públicos na sociedade. Nesse sentido, importa conhecer as suas características, a sua actuação e o seu posicionamento no sistema social e político.

A problemática do presente trabalho está relacionada com o perfil dos altos funcionários públicos cabo-verdianos – em particular, os actuais directores-gerais – atendendo, sobretudo, ao seu capital cultural e a forma como ambos contribuem para o perfil dessa “Elite de Estado”. A questão central que conduz a investigação proposta prende-se com a realização social das competências técnicas, sociais e políticas adquiridas ao longo da sua trajectória pessoal, académica e profissional. Por “realização social” entende-se a conversão de tais competências em instrumentos que viabilizam a pertença a um grupo minoritário detentora de poder, ou seja, a uma elite. Partindo do pressuposto de que a maioria dos actuais dirigentes da administração pública cabo-verdiana recebeu a sua formação superior fora das ilhas (Barros, 2011), por não existir uma universidade no país até 2006, importará analisar o peso dessa diploma no seu acesso a funções de liderança nos serviços estatais, as dinâmicas geradas entre si enquanto membros que partilham um certo habitus num determinado campo (Bourdieu, 2001b [1994]). Importará, igualmente, perceber até que ponto esse capital cultural singular se sobrepõe, se subjuga ou se equipara ao peso do capital político enquanto catalisador de uma estratégia de circulação ou de reprodução das elites.

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Em Cabo Verde os funcionários públicos são um grupo com uma conspícua relevância na História do país, sobretudo, desde os finais do século XIX quando o Governo português começou a recorrer a uma mão-de-obra mais qualificada para assegurar o trabalho nas estruturas administrativas de outras colónias portuguesas em África. Tal tornou-se possível devido à escolarização oficial no arquipélago, destacando-se o Seminário-Liceu na ilha de São Nicolau, criado pela Igreja católica e também o Liceu de São Vicente, com ensino laico, que até 1960 foi a única escola secundária no país. Consequentemente, à data da sua independência Cabo Verde pôde contar com pessoas dotadas de experiência no exercício de funções na administração pública. Mas foi através de uma “política de formação de quadros” alicerçada em acordos de cooperação com o estrangeiro que os jovens cabo-verdianos puderam aceder a bolsas de estudo para fazerem os seus cursos superiores fora das ilhas. A Universidade de Cabo Verde só começou a funcionar no ano lectivo 2006-2007, por isso, a maioria dos membros das actuais elites cabo-verdianas estudou no estrangeiro onde, pôde enriquecer o seu capital cultura,l não só através do acesso a um diploma, mas também pelas experiências vividas durante o período de ausência do arquipélago.

O conceito de capital cultural foi utilizado pela primeira vez por Pierre Bourdieu para aferir uma eventual relação entre o desempenho escolar dos jovens e as suas origens sociais e económicas. Desde essa altura, as interpretações do termo tendem a ser contextualizadas nas abordagens alusivas ao mercado escolar e aos benefícios daí decorrentes que determinam a posição social dos indivíduos. Na presente investigação procurar-se-á determinar de que o modo o capital cultural concorre para a definição do perfil e para o posicionamento dos directores-gerais no sistema social cabo-verdiano. São várias as questões que se levantam a este propósito: a) quem são?; b) onde e quando estudaram?; c) como é a que a sua experiência académica influenciou o seu capital cultural?; d) que tipo de capital político amealharam por intermédio do capital cultural? Estas interrogações conduziram à seguinte pergunta de pesquisa: De que modo o capital cultural dos directores-gerais cabo-verdianos contribuiu para a definição do perfil social, político e institucional dos directores-gerais cabo-verdianos?

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Num exercício de reinterpretação crítica da teoria de Bourdieu sobre capital cultural, pretende-se analisar as estratégias de reconversão do valor formal e simbólico dos diplomas escolares em recursos sociais e económicos por parte da elite de funcionários públicos daquele Estado insular. Serão, então, exploradas as três formas de capital cultural propostas pelo sociólogo francês: objectivada – apropriação de bens culturais -, institucionalizada – titulação escolar – e incorporada – disposições duráveis do organismo.

O interesse por Cabo Verde e pelos seus dirigentes superiores da administração pública tem a ver com as idiossincrasias de um arquipélago com pouco menos de 500 mil habitantes, uma enorme diáspora cujos números exactos são desconhecidos e uma situação política, social e económica sui generis no contexto africano. Não tendo sido bafejada com recursos naturais, foi uma colónia portuguesa que passou por diversas crises alimentares devido a frequentes e prolongadas estiagens que causaram elevados níveis de mortandade. Quando se tornou independente em 1975 não se adivinhava que 40 anos depois seria uma das democracias mais aplaudidas em África e um caso singular de sucesso nesse contexto. Foram várias as conquistas entretanto registadas: a) em 2004 a Organização das Nações Unidas (O.N.U.) colocou-o na categoria de “países de desenvolvimento médio”; b) a 31ª posição que ocupa no índice do The Economist Intelligence Democracy Unit de 2014 - a melhor do mundo lusófono – atesta a consolidação da democracia no arquipélago; c) a sua taxa de iliteracia passou de cerca de 65% em 1975 para 17,2% em 2010; d) entre 1989 e 2014 a população pobre diminui de 49% para 24,5%; e) o seu governo crê que o país vai alcançar os “Objectivos do Milénio” propostos pelas O.N.U. Estes são apenas alguns indicadores, que colocam aquele Estado insular em destaque a nível regional e internacional. A estabilidade política, o desempenho dos seus dirigentes em conjunto com o engajamento dos cidadãos na melhoria do país, surgem como alguns factores que contribuíram para o seu desenvolvimento. Neste sentido, torna-se pertinente traçar o perfil de quem está no poder, nomeadamente no funcionalismo público que, desde o período colonial, se afigurou como “rampa de lançamento” para o acesso a posições de topo na hierarquia do Estado.

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A partir do seu povoamento Cabo Verde tem sobrevivido, fundamentalmente, graças aos seus recursos humanos. Numa primeira fase procedia-se à compra e venda de escravos negros que eram levados para trabalhar em grandes propriedades agrícolas nos continentes africano e americano. Mais tarde, a abolição da escravatura colocou termo a esse tipo de comércio, mas o arquipélago continuou a ser “exportador” de mão-de-obra devido emigração que se tornou parte integrande da sua dinâmica social, permanecendo até hoje. As divisas enviadas pelos emigrantes às suas famílias têm sido essenciais para a sua sobrevivência (Tolentino et al, 2008). Internamente, o salto qualitativo que o país deu em termos educativos é visto como uma importante mais-valia com efeitos na economia do país, centrada, sobretudo no sector terciário muito necessitado de mão-de-obra qualificada.

O presente trabalho está dividido em oito capítulos que procuram seguir um fio condutor cujo denomidaor comum é o conceito de capital cultural. Nos dois primeiros são delimitados os enquadramentos teóricos e metodológicos, a começar pela revisão da literatura sobre “capital cultural” e “altos funcionários públicos”. O debate e a sustentação teórica são o ponto de partida para a apresentação de cada uma das referidas noções tendo em vista um conhecimento mais alargado dos argumentos esgrimidos. Seguem-se as pesquisas empíricas que utilizaram o capital cultural para compreender determinados fenómenos e os estudos sobre a elite administrativa.

O terceiro capítulo é uma reflexão em torno do papel dos dirigentes dos serviços públicos nas sociedades actuais, com enfoque na conexão entre o seu posicionamento instuitucional e o seu lugar no sistema-político. O seu enquadramento cruza duas realidades determinantes da vida social responsáveis pela satisfação das necessidades dos cidadãos através das políticas públicas. A globalização e os constantes desafios que surgem no quotidiano carecem de uma gestão criteriosa e eficaz das estruturas societais colocando, mais do que nunca, uma enorme responsabilidade sobre quem tem a seu cargo a gestão da “coisa pública”. A politização, a partidarização e a profissionalização dos altos funcionários públicos são igualmente debatidas do ponto de vista conceptual e com contributos de natureza empírica. Avança-se, ainda, com

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uma curta e exploratória discussão que cruza a natureza da fonte do seu poder - a educação - e um eventual estatuto de burguesia cultural.

Uma breve apresentação de Cabo Verde e da sua História fazem parte do quarto capítulo que inclui também uma nota acerca do fenómeno migratório que está no código genético do arquipélago e, por isso, também afecta as suas elites. Tal se torna mais claro e evidente no capítulo cinco, no qual são percorridos os caminhos da instrução escolar, nomeadamente a política de formação de quadros implementada a seguir à independência e que, até hoje, transportou milhares de jovens até ao estrangeiro onde realizaram os seus cursos médios ou superiores. A viabilização da expansão do ensino nas ilhas contou com as remessas de capitais financeiros dos seus emigrantes e também com o seu incentivo à educação das crianças, algo que era banal nos países de destino onde viviam.

O fenómeno elitista no arquipélago, tratado no sexto capítulo, coloca em evidência a sua génese, as lógicas de distribuição do poder e a integração dos cabo-verdianos mulatos e negros nessas estruturas, no decurso do período colonial. A miscigenação e as heranças culturais negra e europeia não são alheias a essas dinâmicas, por isso, também merecem destaque neste ponto. É igualmente contemplada uma abordagem sobre relevância dos espaços sociais promotores de produção cultural, nomeadamente de carácter literário, bem como, o seu papel na definição das posições sociais. O capital cultural da elite pós-independente é apresentado, neste caítulo, como uma importante base explicativa para a sua constituição.

Os capítulos finais incidem sobre os funcionários públicos cabo-verdianos, primeiramente (capítulo oito) numa abordagem meramente descritiva do seu enquadramento na estrutura institucional, tendo em conta a configuração da administração pública do país, com toda a sua orgânica e regulamento estatuídos. Depois é, então, apresentada a pesquisa empírica relativa aos directores-gerais que procura traçar o seu perfil social, institucional e também político, pois enquanto dirigente superior fazem parte de uma elite não governante. Outro foco é o capital

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cultural e o habitus constituídos ao longo da sua trajectória no contexto familiar e escolar. Interessou, sobretudo, contemplar as experiências desenvolvidas durante a formação média ou superior daquele grupo e os dividendos obtidos graças aos diplomas escolares.

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7 CAPÍTULO I – REVISÃO DA LITERATURA

A indiscutível necessidade de conhecer a bibliografia produzida sobre a pesquisa que se pretende realizar visa a identificação das abordagens conceptuais e metodológicas anteriormente seguidas que poderão ser úteis à problemática em estudo. Tendo como ponto de partida a seguinte questão: “De que modo o capital cultural contribui para o perfil social, político e institucional dos directores-gerais cabo-verdianos? ”, a revisão da literatura irá abranger a descrição, a avaliação e a comparação das posições teóricas e dos estudos empíricos (Hill e Hill, 2000, p. 25) desenvolvidos no âmbito da temática em estudo. Serão, por isso, explorados os aspectos relativos ao conceito de capital cultural proposto por Pierre Bourdieu e à sua operacionalização empírica, bem como os estudos relacionados com o recrutamento dos altos funcionários públicos. Embora a temporalidade seja um critério assaz importante, os trabalhos mais recentes não têm qualquer supremacia sobre os mais antigos, prevalecendo, antes, a relevância do tipo de contribuição para a prossecução dos objectivos da presente pesquisa. Neste sentido, serão revisitados alguns autores clássicos cujas primícias reflexões não podem ser descuradas, contudo prócere-se-á igualmente às actualizações críticas acerca das suas perspectivas.

1.Capital Cultural

Desde a sua introdução na Sociologia, por parte de Pierre Bourdieu (1930-2002), a noção de capital cultural tem sido aproveitada, sobretudo, nos estudos relacionados com educação, desigualdades sociais e estratificação social. À semelhança de qualquer outro conceito, existe um intenso debate em torno da sua operacionalização e dos diversos sentidos que poderá assumir. Lamon e Lareau (1988) demonstram a amplitude do seu campo de aplicação ao identificarem uma miríade de domínios nos quais uns quantos autores tentaram tornar operacional a ideia de capital cultural e que vão desde os conhecimentos da chamada “alta cultura” até aos símbolos identificativos de classes sociais, passando pelos currículos das escolas de elite ou, mais vulgarmente, os efeitos da origem social no desempenho escolar. É, contudo, é

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de notar, o facto de o próprio Bourdieu ter deixado em aberto a delimitação formal dos indicadores de capital cultural nas três formas por ele proposto: objetivado, institucionalizada e incorporada.

A vertente sociológica do conceito de cultura ganhou maior profundidade e expansão com a perspectiva do autor francês, rebatendo a tendência axiomática do sentido antropológico para explicar os elementos diferenciadores ou particulares do modo de vida de um determinado grupo social que partilha um sistema de símbolos patentes nos seus hábitos, nas suas crenças, nos seus mitos. Williams, para quem a cultura pode ser vista como «cultivo activo da mente» esclarece que o ponto de vista da Sociologia enfatiza o “espírito de um modo de vida global, manifestado por todo o âmbito das actividades sociais, porém mais evidente em actividades especificamente culturais” (1992, p. 11). Estas últimas constituem uma profusão de conhecimentos e interesses de indivíduos a quem se atribui o epíteto de “pessoa” culta (idem, ibidem). A abordagem assenta nas raízes do termo “cultura” indexado à ideia de “cultivo” na agricultura, isto é, um processo que leva a mente a laborar continuamente e a dilatar a sua sensibilidade e emotividade (Edles, 2001; Griswold, 2008 [1994], Williams, 1992) colocando-as ao serviço da produção artística e intelectual. Facto distintivo da condição humana e que constitui um fenómeno social, na medida em que o dito processo não só é partilhado como resulta do envolvimento e participação (directa ou indirecta) de um grupo. Ainda que, como diz Goldman (1956, p. 27), certos indivíduos possam expressar a consciência colectiva de modo mais eficaz e atractivo, através da sua arte ou actividade intelectual, o produto dessa acção cultural não é mais do que uma manifestação sobre formas de olhar a realidade social.

É no estudo etnográfico de 1958 sobre a sociedade argelina Kabila, intitulado Sociologie de l’Algerie, que se detectam as seminais reflexões de Bourdieu relacionadas com a sua análise sobre cultura. Estabelecendo uma ponte entre a Sociologia e a Etnologia, o autor explica o conceito como sendo um instrumento de luta por posições de dominação simbólica no seio de uma estrutura social. A sua abordagem foi pensada a partir da observação dos efeitos da colonização francesa na

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Argélia com a imposição de uma nova ordem social, económica e cultural sobre a população autóctone. Nessa clara situação de dominação, Bourdieu destaca a eficácia do poder simbólico que lhe está associado, pois os sistemas de sentido e de significação são essenciais para a integração social. Diz o autor que “os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) (…)” (Bourdieu, 2001a [1989], 11). Há, então, um reforço das relações de dominação, não raras vezes, com base em pressupostos de ordem natural, meritocrática ou até paternalista.

Recorrendo ao conceito de capital, explorado no âmbito da economia política Bourdieu atribui-lhe diversos sentidos que desembocam na ideia de “posse” e na supremacia daqueles que amealham mais bens de diferentes naturezas. O autor apresenta, então, as noções de capital económico, capital social, capital cultural e capital simbólico justificando o seu nível de importância nas relações sociais. A riqueza económica de um indivíduo não é medida apenas pela quantidade de bens materiais que possui, mas também pelo poder que lhe conferem sobre aqueles que não os possuem. O mesmo se poderá dizer do capital social que se manifesta na sua rede de relações e que pode ser usada em benefício do próprio. Os dividendos colhidos através do capital cultural são consonantes com o valor de mercado (laboral e social) dos recursos intelectuais obtidos na escola ou em contexto familiar. Por fim, há todo um prestígio, uma representação social que se liga a cada um dos capitais atrás referidos e que se constitui como um capital simbólico. É o conjunto de todos esses recursos que irá determinar a posição relativa do indivíduo na estrutura social, ou seja, o lugar que ocupa mediante as relações e interações com os seus pares.

Qualquer destes tipos de capital pressupõe a interiorização de certas disposições por parte dos agentes sociais, os quais estruturam as relações entre si e com o mundo social, ou seja, segundo Bourdieu existe um habitus que é incorporado por todos ao longo da vida e mediantes as experiências que vão sendo acumuladas. O habitus, tradução latina de Tomás de Aquino do termo aristiotélico hexis (Boudon, 1990, p.

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119) é porventura o conceito mais heurístico da obra do sociólogo francês, como diz Dortier (2005, p. 246), e constitui uma reacção crítica ao estruturalismo que apenas reconhecia o papel dos agentes como suporte da estrutura, sem olhar para as suas práticas (Bourdieu, 1989, p. 61). Com efeito, Bourdieu não se conforma com essa visão que coloca o indivíduo numa estrutura estável e de um modo passivo. A sua proposta teórica tem a pretensão de demonstrar que a realidade social não se apresenta através das tradicionais distinções entre indivíduo e sociedade, subjectivismo e objectivismo e acção e estrutura. É preciso atender às conexões entre agentes, grupos e classes mas também à significação que os indivúduos atribuem às suas acções. Inclina-se, pois, para uma análise estrutural que busca um entendimento sobre os sistemas de relações. Bourdieu segue, então, uma abordagem da sociedade distanciada das dicotomias e polarizações frequentes nas reflexões dos mais notáveis fundadores da Sociologia como Durkheim, Marx ou Weber. Encontra na reinterpretação da noção de habitus uma forma de explicar a inevitável conciliação entre as acções individuais (domínio subjectivo) e a estrutura social (domínio objectivo) que as condiciona. Nesse sentido, tem subjacente um princípio mediador.

Procurando explicar a génese da utilização do conceito, Bordieu (1989, p. 61) afirma tratar-se de disposições que se tornam rotineiras e organizadoras das “práticas e percepção dessas práticas”, por isso, são estruturantes. Ao mesmo tempo o habitus é também apresentado como uma “estrutura estruturada”, na medida em que tais disposições, além de duráveis, transponíveis e flexíveis, são interiorizadas através da acumulação de experiências e servem de guia às formas de agir, de pensar e percepcionar o mundo. Assim sendo, o autor (1997 [1994]) afirma que:

Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas (…). Estabelecem diferenças entre o que é bom e o mau, entre o que está bem e o que está mal, entre o que é distinto e o que é vulgar, etc., mas as diferenças não são as mesmas. Assim, por exemplo, o mesmo comportamento ou o mesmo bem pode parecer distinto a um, pretensioso ou exibicionista a outro, vulgar a um terceiro. (p.9).

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A internalização do habitus resulta de um processo inconsciente, por isso, as disposições que lhe estão associadas definem práticas semelhantes entre pares pertencentes à mesma classe social, tornando-se indispensável para a análise do capital cultural. Segundo o referido sociólogo, “A cada classe de posições corresponde uma classe de habitus (ou de gostos) produzidos pelos condicionamentos sociais associados à condição correspondente” (Bourdieu, 1997 [1994], p. 9). Isto significa que as acções desenvolvidas pelos indivíduos acontecem num campo – outro conceito-chave para o autor – com regras e códigos próprios que resulta numa estrutura de relações objectivas. Nesta, cada agente ocupa uma posição relativa, comporta-se de determinada maneira, estabelece as suas ligações pessoais, define as suas crenças, as suas opções estéticas, as suas convicções políticas próprias dessa mesma posição; em suma, faz valer o seu habitus, gerando microcosmos independentes e correspondentes a diversas facetas da vida social: política, literária, religiosa, artística, educacional, entre outras.

O capital cultural serviu de base a um dos seus grandes empreendimentos teóricos e empíricos de Bordieu que deu à estampa a obra A Distinção – Uma Crítica Social do Fundamento do Juízo, publicada em 1979, sobre a relação entre as posições e disposições das classes sociais e as suas práticas e gostos culturais. Para Dortier (2009), a começar pelo título, o livro aparece como um desafio a um outro texto, o de Kant, intitulado Crítica da Faculdade do Juízo e explica porquê: “Para Kant, o julgamento estético é uma questão de bom ou mau gosto pessoal. Já Bourdieu quer mostrar que o gosto é uma questão de meio social. (…) Gostamos – ou forçamo-nos a gostar – de tal música, tal pintura, tal escritor (…) para marcar «distinção»” (idem, p. 245). Com efeito, o sociólogo francês tenta demonstrar que esse “meio social” determina as condições de apropriação dos bens culturais e está dependente da “educação familiar e da educação propriamente familiar” (Bourdieu, 2010 [1979], p. 44). Nesses dois contextos, o indivíduo adquire os códigos necessários que irão condicioná-lo a apreciar as “obras de arte” e a ter um certo estilo de vida, ou a seguir uma profissão específica; isto é, constituem alicerces fundamentais para a acumulação de capital cultural.

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A referida obra é paradigmática do pensamento de Bourdieu e da sua dimensão académica, ao percorrer uma série de conceitos e ideias que desenvolveu ao longo da sua vida, articulando sempre a teoria com a pesquisa empírica. Nesse trabalho, delimitou como espaço social o contexto francês da década de 1970, tendo explicado posteriormente que essa foi uma escolha consciente e deliberada por estar convicto que “(…) não podemos apreender a lógica mais profunda do mundo social a não ser mergulhando na particularidade de uma realidade empírica, historicamente situada e datada(…)” (Bourdieu, 2001 [1994]). Com o intuito de conhecer as práticas culturais desse contexto específico utilizou técnicas de recolha de dados de natureza quantitativa e qualitativa, nomeadamente, inquérito por questionário, entrevistas em profundidade e observações etnográficas. Recorreu também a informação estatística já existente para complementar o quadro que pretendia explicar, ou seja, a “(…) análise da relação entre as posições sociais (conceito relacional), as disposições (o os habitus) e as tomadas de posição, as “escolhas” que os agentes sociais operam nos mais diferentes domínios da prática, cozinha ou desporto, música ou política, etc. (…)”(Bourdieu, 2001 [1994]). Elaborou uma verdadeira teoria social do gosto, mas acima de tudo, construiu um sistema teórico complexo que remete para o ponto de partida dos seus interesses académicos: a dominação nas sociedades modernas, os seus meandros e ramificações.

A educação e as desigualdades sociais fazem parte da essência da boa parte da obra de Bourdieu, donde se destacam os conceitos de habitus, mas também de capital cultural. Como adiante se verá, os que se interessaram pelo assunto seguiram idêntica tendência com maior ou menor originalidade no uso e aplicação daquele conceito.

1.1. A abordagem de Bourdieu: capital cultural, desempenho escolar e origem social

O desigual desempenho escolar das crianças e jovens impôs-se como preocupação e interesse constantes a partir da democratização e massificação do ensino, captando a

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atenção de cientistas sociais, em particular, sociólogos, psicólogos e antropólogos. Historicamente perspectivada como domínio quase exclusivo da nobreza e do clero, a escola nunca deixou de ser mais conotada com as classes privilegiadas e com recursos económicos capazes de manter os seus filhos no sistema de ensino e durante longos períodos de tempo e com bons resultados. Implicitamente, essas vantagens financeiras pareciam ser a resposta para as diferenças no acesso à educação, até que Pierre Bourdieu propôs demonstrar que o sucesso escolar dependia sobretudo dos hábitos culturais e das disposições herdadas do contexto familiar e não tanto da posse de bens materiais ou das capacidades cognitivas. Com esta assunção, fez sobressair uma dimensão mais sociológica do conceito de “cultura” ao considerar que era um recurso utilizado pelos actores sociais para alcançarem vantagens materiais e simbólicas na sociedade.

Antes de se avançar para uma melhor especificação da tese de Bourdieu, é preciso atender aos três estados distintos do capital cultural que o autor identificou: objectivado, institucionalizado e incorporado.

O capital cultural institucionalizado é aquele que advém da posse de diplomas atribuídos pelas instituições escolares os quais apresentam um certo valor convencional e permitem obter benefícios materiais e simbólicos. Conforme diz Bourdieu (1979) é possível “(…) estabelecer taxas de convertibilidade entre o capital cultural e o capital económico, garantindo o valor em dinheiro de determinado capital escolar”, ou seja, a obtenção do retorno do investimento escolar. À partida, os resultados alcançados estariam em conformidade com o tempo e o esforço aplicados (investimento), todavia, deve-se contar com as mudanças na estrutura social relacionadas, por exemplo, com a massificação do ensino e a banalização dos diplomas que conduzem a uma certa desvalorização destes últimos. É neste ponto que a intersecção com as outras formas de capital – incorporado e objectivado - se torna relevante do ponto de vista da diferenciação social entre os indivíduos, já que, a certificação escolar não é suficiente para demonstrar o valor mercantil do diplomado. Para tal contribui uma profusão de indicadores determinantes para o posicionamento

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do indivíduo no contexto laboral e social. Bourdieu (2010 [1979]) aponta por exemplo a relação ambígua entre a posse do diploma e a competência para o exercício de funções que, intrinsecamente, lhe estão associadas,

(…) na definição tácita do título académico que certifica formalmente uma competência específica (…) que garante realmente a posse de uma «cultura geral» tanto maior e mais lata quanto mais prestigioso for o título e, pelo contrário, que não se pode exigir qualquer garantia real sobre aquilo que garante formal e realmente ou, se preferirmos, sobre o nível a que garante aquilo que garante. (pp. 72-73)

O autor refere os diplomados pelas Grands Écoles, em França, que chegavam, quase de modo automático, aos altos cargos da administração do país graças aos certificados escolares (Bourdieu, 1989). Aceita-se, tacitamente, que os detentores de tais títulos académicos possuem características adequadas, para além da formação de índole unicamente escolar, para o exercício das funções. São os efeitos da denominada imposição simbólica resultantes, por um lado, da acumulação de capital cultural objectivado, traduzido na posse ou consumo de bens culturais – como é o caso dos livros – aos quais os indivíduos acedem através da família ou durante a formação académica, e, por outro, do capital cultural assimilado de forma inconsciente e dissimulada que assenta numa orientação daqueles estudantes para o exercício futuro das suas profissões, nomeadamente, o modo de falar, de vestir ou de se comportar em público. Segundo Bourdieu, estas seriam duas formas de apropriação do capital cultural no seu estado objectivado, uma material, outra simbólica. A material tem a ver com a capacidade económica e financeira para adquirir os bens culturais, podendo ser transmissível, enquanto a simbólica tem a ver com a sua incorporação e pertence exclusivamente ao indivíduo, por isso, é intransmissível.

Para Bourdieu (1979), o capital cultural incorporado acaba por ser um reflexo do modo como o indivíduo percepciona a cultura, em sentido lato, com recurso aos códigos interiorizados ao longo das experiências vividas. Não há uma transmissão hereditária, mas através do contexto familiar surgem as oportunidades para se conhecer o valor atribuído aos “objectos culturais” que, no entender do supra citado autor, são

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representativos de uma certa “violência simbólica”, já que tal valoração não é intrínseca mas socialmente construída pela classe dominante. Para DiMaggio (1992) esse processo cria clivagens entre os grupos sociais, sustentadas pelos hábitos de consumo dos seus elementos, acentuando a estratificação social existente, independentemente de quaisquer discursos alusivos a igualdade de oportunidades. Neste sentido, o capital cultural é mais poderoso na sua forma incorporada do que na sua forma objectivada, pois não basta possuir ou consumir certos bens culturais; o mais importante é compreender o seu valor simbólico, donde resultará uma certa atitude e interesse perante os mesmos. O capital cultural objectivado é observável e, de certo modo, pode ser herdado, contudo, a forma incorporada, que nas palavras de Bourdieu (1979) “está ligado ao corpo”, exige tempo e investimento pessoal, sendo mais difícil de adquirir.

Ora, é o tempo que consolida a aprendizagem escolar; por isso, importa saber que volume de capital cultural é que os estudantes acumulam durante o período que passam pela escola? Como é que se incorporam os saberes transmitidos? As condições de apropriação serão as mesmas? Estas são apenas algumas das inquietações que povoavam os trabalhos de Bourdieu e a sua tentativa de obter justificações para os desiguais desempenhos escolares das crianças e jovens. Em algumas das suas pesquisas utilizou dados estatísticos para mostrar a relevância da relação entre o sucesso escolar, o perfil da família e a classe social. Num artigo intitulado L’École Conservatrice, publicado em 1966, começou por defender que cada família transfere para os seus descendentes determinado volume de capital cultural e um ethos associados a um sistema de valores implícitos e interiorizados que condicionam a forma como aqueles irão agir perante a instituição escolar e perante a cultura. Observou que, tendencialmente, os estudantes oriundos das classes sociais privilegiadas valorizavam mais os diplomas académicos, além de apresentarem maior à vontade face à cultura erudita e utilizarem uma linguagem mais sofisticada, essencial para os primeiros anos em contexto académico.

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Em suma, a herança cultural familiar constituía uma vantagem, logo à partida, que transformava a escola num dos mecanismos mais eficazes de conservação social. Seriam, então, os factores extra-escolares a determinar o nível de sucesso ou insucesso dos estudantes, isto é, a conjugação do capital económico com o cultural. Todavia, o referido autor sublinha a importância dos instrumentos facilitadores da apropriação dos bens culturais. Por exemplo, uma família poderá comprar muitos livros, por ter recursos que lhe permitam fazê-lo, mas se os seus elementos não souberem ler, não são convertíveis em capital cultural. Bourdieu (1982) sublinha:

(…) a herança de bens de cultura, acumulados e legados pelas gerações anteriores, só pertence realmente (embora seja formalmente pertença de todos) a quem possuir os meios de se apropriar dela. Atendendo a que a apreensão e a posse de bens culturais, considerados como bens simbólicos (juntamente com as satisfações simbólicas que acompanham uma posse deste tipo), só são possíveis para quem possui o código que permite decifrá-los ou, por outras palavras, que a apropriação de bens simbólicos pressupõe a posse de instrumentos de apropriação (…). (p.329).

O sociólogo francês quis provar o quão falível poderia ser o pressuposto de que a educação viabilizava o processo de mobilidade social com base no mérito e no esforço dos indivíduos. Pelo contrário, constatou que tendia a funcionar de modo mais eficaz como instrumento de reprodução social, validando e potenciando o capital cultural detido pelos indivíduos quando ingressavam no sistema de ensino. Pierre Bourdieu desafiou a visão de neutralidade da escola enquanto instituição que estando à disposição de todos garantiria as mesmas hipóteses de progressão e de sucesso; isto é, ultrapassadas as questões financeiras, não seriam justificáveis os desempenhos muito discrepantes, excepto aqueles que resultassem de elevadas capacidades cognitivas.

A tese do referido autor confrontava-se com as perspectivas ligadas ao conceito de “capital humano”, discutidas nas décadas de 1950 e 1960 no seio da economia, e que colocava o indivíduo no mesmo patamar que a maquinaria ou as fábricas, como força produtiva. Por conseguinte, tornava-se útil investir nesse tipo específico de capital,

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pois a melhoria das aptidões e competências da mão-de-obra beneficiaria a produção. A escola seria a principal catalisadora dessa melhoria da qualidade da força de trabalho e, por isso, havia que aumentar substancialmente o investimento nessa área. Um dos defensores da noção de capital humano, Theodore Schultz (1961) pensava que a maior escolaridade da força de trabalho daria lugar a ganhos individuais através de salários mais elevados, mas, simultaneamente, também incrementaria o nível de produtividade em termos nacionais. Desse ponto de vista, os proventos dependeriam do volume do investimento; quanto maior o esforço, maiores os resultados. A ideia relega para segundo plano o background dos indivíduos, ou seja, o capital cultural e o seu habitus. Todavia, desenvolvimentos mais recentes (Heckman, 2000) ampliarem a noção de “capital humano” que, além da primazia dada à formação académica, integrou outras dimensões como a experiência, os talentos individuais, o tipo de aprendizagem incorporado, as atitudes, as competências socio-emocionais. A proximidade à abordagem de Bourdieu torna-se efectiva e ajuda a afastar os pruridos sobre a aplicação do conceito de “capital” às forças de trabalho.

A orientação teórica do autor francês preconiza que, tal como sucede com o capital económico, também o capital cultural está sujeito a princípios de produção, distribuição e investimento, enquadrados num mercado que não escapa ao monopólio de alguns indivíduos e grupos. Não obstante a proximidade entre os dois conceitos existe um distanciamento em pontos essenciais relacionados com a forma como são adquiridos. A desigualdade no acesso ao capital cultural advém do contacto com bens e práticas culturais, interiorizadas pelos indivíduos consoante o seu background familiar e o seu envolvimento particular no processo. Não se regista, como no capital económico, uma acumulação de riqueza que ocorre fora da existência corpórea e psicológica dos agentes. Porém, o capital cultural e o capital económico estão relacionados entre si e contribuem para a diferenciação social com elevado grau de eficiência nos países mais avançados (Bourdieu, 2001b [1994], p. 7). Na sua obra A Distinção, o sociólogo explica que no espaço social, os indivíduos se posicionam em conformidade com duas dimensões de análise: por um lado, o volume global de capital que detêm e, por outro, a estrutura do mesmo, ou seja, o peso relativo do seu capital

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económico e cultural no volume total dos seus diferentes capitais. Sublinha que “(…) os agentes têm tanto mais em comum quanto mais próximos estão nestas duas dimensões, e tanto menos quanto mais afastados” (idem, ibidem). O gráfico nº 1, cuja estrutura foi concebida por Bourdieu, apresenta o modo como se estabelece a relação entre os capitais.

Gráfico nº 1 - Espaço das Posições Sociais (Bourdieu) CAPITAL GLOBAL +

CAPITAL CULTURAL + CAPITAL CULTURAL –

CAPITAL ECONÓMICO - CAPITAL ECONÓMICO +

CAPITAL GLOBAL -

Fonte: Adaptado de Bourdieu (2001b [1994], p. 8)

Aparte a materialização de uma certa quantidade de capital cultural que pode ser transmitido de pais para filhos, Bourdieu (1978) destaca a importância do habitus e dos seus elementos no modo como as famílias se posicionam face à instituição escolar: o ethos, um sistema de valores que estrutura as práticas dos actores sociais, o hexis, que está relacionado com expressão corporal adquirida pela socialização (maneirismo, gestos, formas de falar, de andar, etc.) e o eidos, composto por um «esquema lógico» de apreensão da realidade social. Através da interiorização do ethos e do eidos, os estudantes desenvolvem uma determinada percepção do valor da formação académica, enquanto o hexis pode aproximá-los ou distanciá-los do padrão social escolar dominante.

A proposta de Bourdieu sobre o capital cultural tem a particularidade de ser acompanhada de pesquisas empíricas realizadas pelo próprio autor, contudo, é pertinente a crítica que lhe é apontada algumas vezes segundo a qual a sua

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abordagem e os seus estudos apenas encaixam na perfeição no contexto francês, numa altura em que a indústria cultural e a mediatização da vida social ainda não tinham tomado conta nas nossas sociedades actuais (Lahire, 2004). Referindo-se em particular à Distinção, Lahire afirma mesmo que o estudo que Bourdieu apresenta nessa obra está fincado na oposição entre a cultura erudita e cultura popular e artes maiores e artes menores representativas de uma herança europeia que encontra a sua génese nas civilizações mais antigas, nomeadamente a greco-romana. Alguns dos indicadores culturais mais relevantes utilizados pelo sociólogo francês são aqueles que os grandes mecenas financiavam, como seja, os concertos de música clássica, as artes plásticas, o teatro ou a literatura. Na sequência da queda do Antigo Regime na Europa e o triunfo da Revolução Francesa e dos seus ideários – igualdade, liberdade e fraternidade – iniciou-se um processo de democratização das artes que, gradualmente, passaram a ser parte integrante da esfera pública não se circunscrevendo somente à vida palaciana da aristocracia. Note-se, porém, que Bourdieu defendeu-se dessa crítica de etnocentrismo salientando que o seu trabalho identificava intencionalmente um espaço social peculiar e bem definido, sem pretensões generalistas (2001b [1994], p. 4).

Lamont e Lareau (1988) fazem uma análise detalhada sobre o conceito de Bourdieu e identificam variações no seu uso, nos diferentes trabalho do sociólogo francês , alguns dos quais em parcereia com Passeron. Segundo as autoras, o conceito ora é apresentado como “padrões académicos informais”, ora é um “atributo de classe”, mas também pode visto como um recurso que abre caminho para o acesso ao poder, servindo ainda como instrumento para a selecção social. Propõem, então, uma nova definição do conceito mais abrangente e que inclui as dimensões estipuladas por Bourdieu. Entendem, então, que o capital cultural pode ser um conjunto de sinais culturais de elevado status (atitudes, preferências, conhecimentos formais,

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comportamentos, bens e credenciais escolares) usados para a exclusão cultural e social1.

Também Prieur e Savage (2013) dão a conhecer uma nova reflexão sobre o capital cultural para actualizar a noção clássica de Bourdieu que, na sua perspectiva, se tornou rígida e obsoleta com o declínio da chamada “alta cultura” (highbrow culture). Chegam a essa conclusão na sequência das pesquisas que desenvolveram na Dinamarca e no Reino Unido, que incluííram indivíduos de diferentes idades, classes sociais, origens geográficas e orientações sexuais. Verificaram, por exemplo, que a idade, o género ou a etnicidade influenciavam mais o capital cultural do que a classe social. Comparando com outros trabalhos sobre a Europa, pareceu-lhes não ser tão notório que a “alta cultura” fosse um elemento distintivo da estratificação social. Cientes da necessidade de mais investigação sobre o assunto, Prieur e Savage adiantaram, no entanto, que o consumo cultural e as desigualdades sociais continuavam relacionados entre si, mas as preferências e as práticas já não se manifestavam como no tempo em que Bourdieu fez sua pesquisa para A Distinção.

A visão economicista de David Thorsby (1999) explora um ângulo bastante diferente da ideia de capital cultural integrada na tese de Bourdieu. Para começar, o conceito é tido como uma quarta forma de capital para além do físico ou manufacturado, natural e humano. O primeiro engloba equipamentos, máquinas, edifícios, etc.; o segundo está relacionado com recursos renováveis e não renováveis fornecidos pela natureza; o terceiro representa as capacidades e experiências incorporadas pelas pessoas que poderiam ser utilizadas para produzir outputs a nível económico. Quanto ao capital cultural, é considerado um activo que origina valor cultural, além de qualquer valor económico que possa conter. Thorsby defende que pode existir sob duas formas: uma tangível, outra intangível. A forma tangível abrange obras de arte, como pinturas ou esculturas, e património material, como edifícios. Do capital cultural intangível fariam

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Tradução livre: “high status cultural signals (attittudes, preferences, formal knowledge, behaviors, goods and credentials) used for social and cultural exclusion” (Lamon e Lareau, 1988).

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parte formas puras de bens públicos que incluem música e literatura, tradições, crenças, valores, representativos da cultura de um grupo. O autor conclui que as duas formas proporcionam um aumento do fluxo de serviços e bens com valor cultural e económico. Nesta conceptualização, a ideia de “capital” está ancorada numa interpretação mais literal da sua dimensão economicista e materialista.

Berks e Folke (1994) seguem um caminho que se afasta da teoria de capital cultural definido por Bourdieu, atribuindo-lhe uma faceta distinta. Para eles não se trata de um recurso, mas antes de uma capacidade envidenciada pelos indivíduos para actuarem sobre o ambiente natural segundo valores e regras existentes na sociedade. Retomam a noção antropológica de “cultura” para compreenderem os distintos sentimentos, crenças e perspectivas face ao mundo natural ou os códigos éticos de cada grupo social no modo como lida com o meio ambiente.

Além das reinterpretações, a perspectiva de Bourdieu também tem sido alvo de diversas críticas. Num artigo publicado em 2001 Paul Kingston procura identificar lacunas naquela abordagem, frisando a ausência de uma análise empírica relacional entre privilégios sociais dos estudantes e o nível do seu sucesso académico, bem como uma falta de clareza na determinação dos indicadores de “capital cultural” que, de facto, contribuem para os resultados escolares. Este, aliás, parece ser uma das fraquezas mais evidentes da aplicação empírica daquele conceito.

Para Böröcz e Southworth (1996) a noção de capital cultural de Bourdieu é uma simples reinterpretação da abordagem de Max Weber sobre o status de grupo e que substitui a propriedade económica como factor de estratificação social. O posicionamento teórico dos autores é bastante sintomático da dificuldade de transposição da tese do sociólogo francês para outros contextos socio-culturais distintos como o húngaro, alvo da sua pesquisa, onde o Estado socialista tinha uma função redistributiva que atenuava os efeitos das desigualdades sociais. Nesse caso, a argumentação e os elementos usados por Bourdieu para identificar as classes sociais com certo capital cultural não teriam acolhimento naquele caso particular.

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Pode-se dizer que falta à tese de Bourdieu, sobre educação e estratificação social, uma análise do modo como o contexto académico influencia o indivíduo na constituição do seu habitus secundário. Todo o trabalho do sociólogo francês aponta para a teoria reprodutiva na qual o espaço para a ascensão social está directamente ligado ao volume de capitais detidos a montante do ingresso no sistema educativo. Este não seria mais do que um instrumento, cujos contornos, contribuiriam para a reprodução classista dos seus estudantes. A escola é perspectivada como uma instituição gerada pelos grupos sociais dominantes, os quais estabelecem todos os seus códigos e padrões à imagem e semelhança do seu capital simbólico, cultural e até económico, em alguns casos. A possibilidade de um indivíduo oriundo das classes sociais mais desfavorecidas incorporar um elevado nível de capital cultural institucionalizado não lhe parecia viável, precisamente porque as desigualdades herdadas dificilmente seriam ultrapassadas.

A questão é que o autor francês não chegou a estudar em detalhe a vida académica para verificar o peso da socialização secundária dos estudantes no seu sucesso escolar. Bourdieu preocupou-se, sobretudo, com o antes e o depois, e relegou para segundo plano o durante, isto é, tratou de aferir qual era o capital cultural familiar dos indivíduos e relacionou-o com os resultados escolares e o posicionamento social e habitus após a passagem pela escola, mas não olhou para as dinâmicas nas instituições de ensino que podem incrementar os recursos daqueles que são oriundos das classes sociais mais baixas.

1.2. Estudos empíricos

As pesquisas sobre o capital cultural com interesse para o presente trabalho partem, do sistema teórico-empírico de Bourdieu, pelo que, na sua maioria gravitam em torno de questões relacionadas com educação e com estratificação social, replicando, por vezes, os modelos desenvolvidos pelo autor.

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Um dos primeiros obstáculos encontrados é a mensuração daquele conceito, mas como observaram Lareau e Weininger (2003) diversos estudos não vão muito além da apresentação de indicadores como diplomas escolares ou posse e consumo de bens culturais; ou seja, comportamentos dos agentes sociais mais facilmente observáveis. As formas objectivada e institucionalizada de capital cultural parecem oferecer menos reservas e dúvidas na sua utilização empírica. Mais difícil é descortinar ao certo os ganhos efectivos dos indivíduos nessas suas experiências, como por exemplo, a quantidade e a estrutura do capital cultural incorporado. Determinar o número de livros adquiridos, de concertos de música clássica assistidos ou de idas a galerias de arte ou museus tem uma tangibilidade que não é possível aferir com a mesma facilidade quando se trata de perceber o grau de conhecimento, a atitude dos indivíduos perante os bens ou actividades culturais ou a sua internalização.

Quando em 1982 Paul DiMaggio tentou operacionalizar aquele conceito, também teve de lidar com esse constrangimento, acabando por se ocupar somente da participação de estudantes em actividades culturais, deixando de lado a complexidade associada à forma incorporada de capital cultural. Na altura, inquiriu 2096 indivíduos (1427 homens e 1479 mulheres) a quem pediu para indicarem o seu envolvimento nas artes, na música e na literatura, quando frequentavam o ensino secundário. Também construiu uma escala de três indicadores para medir o capital cultural, composta por atitudes, actividades e informação. O primeiro determinava o grau de interesse que as actividades culturais mencionadas despertavam nos inquiridos; o segundo media a participação efectiva nas mesmas; e o último analisava o tipo de informação que os indivíduos dispunham sobre as áreas em questão. DiMaggio constatou que os inquiridos que consumiam regularmente bens ligados às artes, à música e à literatura alcançavam melhores resultados académicos. Admitiu a necessidade de serem desenvolvidos outros estudos tendo em vista a ampliação dos indicadores para medir o capital cultural. E assim o fez. Em 1985, numa pesquisa em parceria com Mohr, o autor norte-americano analisou o acesso e as atitudes dos indivíduos face a certos bens culturais. Mais recentemente, em 2004, DiMaggio juntou-se a Mukhtar para tenter peceber se na sociedade norte-americana as artes estavam a perder relevância

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e valor como capital cultural. Os resultados revelaram mudanças nos perfis e padrões de consumo, embora, genericamente, se verificasse um menor interesse por actividades como ballet, concertos de música clássica ou teatro. Em contrapartida, as artes visuais e o jazz despertavam o interesse de pessoas de diferentes grupos etários habilitações académicas e estratos sociais.

Os trabalhos de DiMaggio assinalam o início de um vasto leque de pesquisas que buscam uma aplicação do modelo de análise de Bourdieu com adaptações a diferentes realidades e contextos, para se estudar mecanismos de desigualdade social fora da esfera meramente económica e financeira. A determinação de indicadores de capital cultural tem sido um desafio constante, com contributos de diversa natureza, mas sempre inspirados nas pistas deixadas pelo autor francês, sendo por isso, muito usuais as investigações acerca da reprodução social, com um enfoque particular no papel da família nesse processo. Os consumos e os bens culturais dos pais (Ganzeboom, De Graaf, e Robert, 1990) e os que eles proporcionam aos filhos (De Graaf, 1986; De Graaf, De Graaf e Kraaykamp, 2000; Katsillis e Rubinson, 1990; Sullivan, 2007) são presença regular nos estudos empíricos que recaem sobre a instrução escolar e as desigualdades sociais.

Foi igualmente a tese de Bourdieu que inspirou Sullivan (2001) a tentar determinar o capital cultural de estudantes e dos seus pais em Inglaterra, para verificar a sua influência na obtenção do diploma do ensino secundário. Era preciso saber, por exemplo, se na verdade havia uma transmissão de pais para filhos e como é que tal acontecia na prática. Encontrou a resposta nas actividades culturais dos jovens, patrocinadass pelos seus progenitores e que variavam segundo a sua posição social e qualificações académicas. Porém, não ficou totalmente demonstrada a perspectiva de reprodução social, porque não era possível descortinar que actividades é que constituíam, de facto, capital cultural. Constatou, por exemplo, que a leitura e o consumo televisivo afectavam o desempenho escolar, mas não existiam indícios de que os hábitos musicais ou de consumo de cultura erudita e formal tivessem o mesmo impacto. A pesquisa da autora colocou, ainda, em evidência a fragilidade e a

Imagem

Gráfico nº 1 - Espaço das Posições Sociais (Bourdieu )  CAPITAL GLOBAL +
Gráfico nº 2 - Tipologia de Burocracias
Gráfico nº 3 - Variáveis determinantes da posição dos altos funcionários públicos
Gráfico nº 4 - Evolução da taxa de desemprego em Cabo Verde (%)
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Referências

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