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CAPÍTULO I – REVISÃO DA LITERATURA

1.2. Estudos empíricos

As pesquisas sobre o capital cultural com interesse para o presente trabalho partem, do sistema teórico-empírico de Bourdieu, pelo que, na sua maioria gravitam em torno de questões relacionadas com educação e com estratificação social, replicando, por vezes, os modelos desenvolvidos pelo autor.

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Um dos primeiros obstáculos encontrados é a mensuração daquele conceito, mas como observaram Lareau e Weininger (2003) diversos estudos não vão muito além da apresentação de indicadores como diplomas escolares ou posse e consumo de bens culturais; ou seja, comportamentos dos agentes sociais mais facilmente observáveis. As formas objectivada e institucionalizada de capital cultural parecem oferecer menos reservas e dúvidas na sua utilização empírica. Mais difícil é descortinar ao certo os ganhos efectivos dos indivíduos nessas suas experiências, como por exemplo, a quantidade e a estrutura do capital cultural incorporado. Determinar o número de livros adquiridos, de concertos de música clássica assistidos ou de idas a galerias de arte ou museus tem uma tangibilidade que não é possível aferir com a mesma facilidade quando se trata de perceber o grau de conhecimento, a atitude dos indivíduos perante os bens ou actividades culturais ou a sua internalização.

Quando em 1982 Paul DiMaggio tentou operacionalizar aquele conceito, também teve de lidar com esse constrangimento, acabando por se ocupar somente da participação de estudantes em actividades culturais, deixando de lado a complexidade associada à forma incorporada de capital cultural. Na altura, inquiriu 2096 indivíduos (1427 homens e 1479 mulheres) a quem pediu para indicarem o seu envolvimento nas artes, na música e na literatura, quando frequentavam o ensino secundário. Também construiu uma escala de três indicadores para medir o capital cultural, composta por atitudes, actividades e informação. O primeiro determinava o grau de interesse que as actividades culturais mencionadas despertavam nos inquiridos; o segundo media a participação efectiva nas mesmas; e o último analisava o tipo de informação que os indivíduos dispunham sobre as áreas em questão. DiMaggio constatou que os inquiridos que consumiam regularmente bens ligados às artes, à música e à literatura alcançavam melhores resultados académicos. Admitiu a necessidade de serem desenvolvidos outros estudos tendo em vista a ampliação dos indicadores para medir o capital cultural. E assim o fez. Em 1985, numa pesquisa em parceria com Mohr, o autor norte-americano analisou o acesso e as atitudes dos indivíduos face a certos bens culturais. Mais recentemente, em 2004, DiMaggio juntou-se a Mukhtar para tenter peceber se na sociedade norte-americana as artes estavam a perder relevância

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e valor como capital cultural. Os resultados revelaram mudanças nos perfis e padrões de consumo, embora, genericamente, se verificasse um menor interesse por actividades como ballet, concertos de música clássica ou teatro. Em contrapartida, as artes visuais e o jazz despertavam o interesse de pessoas de diferentes grupos etários habilitações académicas e estratos sociais.

Os trabalhos de DiMaggio assinalam o início de um vasto leque de pesquisas que buscam uma aplicação do modelo de análise de Bourdieu com adaptações a diferentes realidades e contextos, para se estudar mecanismos de desigualdade social fora da esfera meramente económica e financeira. A determinação de indicadores de capital cultural tem sido um desafio constante, com contributos de diversa natureza, mas sempre inspirados nas pistas deixadas pelo autor francês, sendo por isso, muito usuais as investigações acerca da reprodução social, com um enfoque particular no papel da família nesse processo. Os consumos e os bens culturais dos pais (Ganzeboom, De Graaf, e Robert, 1990) e os que eles proporcionam aos filhos (De Graaf, 1986; De Graaf, De Graaf e Kraaykamp, 2000; Katsillis e Rubinson, 1990; Sullivan, 2007) são presença regular nos estudos empíricos que recaem sobre a instrução escolar e as desigualdades sociais.

Foi igualmente a tese de Bourdieu que inspirou Sullivan (2001) a tentar determinar o capital cultural de estudantes e dos seus pais em Inglaterra, para verificar a sua influência na obtenção do diploma do ensino secundário. Era preciso saber, por exemplo, se na verdade havia uma transmissão de pais para filhos e como é que tal acontecia na prática. Encontrou a resposta nas actividades culturais dos jovens, patrocinadass pelos seus progenitores e que variavam segundo a sua posição social e qualificações académicas. Porém, não ficou totalmente demonstrada a perspectiva de reprodução social, porque não era possível descortinar que actividades é que constituíam, de facto, capital cultural. Constatou, por exemplo, que a leitura e o consumo televisivo afectavam o desempenho escolar, mas não existiam indícios de que os hábitos musicais ou de consumo de cultura erudita e formal tivessem o mesmo impacto. A pesquisa da autora colocou, ainda, em evidência a fragilidade e a

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dificuldade em definir com precisão os indicadores de capital cultural, sobretudo a sua dimensão incorporada que, como afirma Bourdieu, é dissimulada e invisível.

A reprodução intergeracional do capital cultural também constituiu foco de interesse de Kraaykamp e Eijck (2010), mas um dos principais méritos da sua investigação é a tentativa de operacionalizar as três formas que foram definidas por Bourdieu. Seleccionaram uma amostra de 4809 holandeses para observarem como a posse daquele tipo de capital por parte de crianças a frequentar a escola era afectado pelo dos seus pais, considerando as diferentes dimensões do conceito. Observaram que o capital cultural institucionalizado dos estudantes dependia do nível de formação académica dos seus progenitores e da atitude destes últimos perante a cultura e as actividades culturais, mas neste caso, com menos expressão. A forma objectivada, ou seja, posse e consumo de bens de cultura por parte dos jovens também era influenciado pelo volume detido pelos pais. Quanto ao capital cultural incorporado, a transmissão intergeracional também dependia do que era acumulado em conjunto com as outras duas formas. Apesar dessa relação positiva entre o capital cultural dos pais e o dos filhos, o que terá surpreendido os investigadores foi a fraqueza da intensidade da maior parte dessas conexões na reprodução entre as gerações. Por exemplo, as habilitações literárias dos progenitores e o seu comportamento e background cultural não afectavam grandemente o desempenho escolar dos seus descendentes, nomeadamente no ensino superior. Todavia, a forma incorporada pareceu-lhes ser a manifestação mais relevante de capital cultural no quadro da transmissão intergeracional e a única que era passada de forma directa e automática, através das interacções no quotidiano.

O conceito de habitus, por vezes ignorado em vários estudos sobre educação, interessou particularmente a Susan Dumais (2002) como variável explicativa das diferenças no sucesso escolar de rapazes e raparigas. Para a autora era essencial ter em conta a perspetiva do indivíduos acerca do mundo para se perceber como é que os estudantes passavamm pelo sistema educativo, pois as formas de pensar, de agir, de sentir condicionam as acções dos indivíduos. A ideia foi partilhada por Gaddis (2013)

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que observou a relevância do habitus no desempenho escolar de jovens oriundos de meios sociais desfavorecidos. A noção funcionava como mediadora da relação entre capital cultural e a obtenção de um diploma e foi operacionalizada como as atitudes dos indiíviduos perante o seu sucesso escolar e a sua crença no valor da escola. As conclusões ampliaram o debate e mostraram, por exemplo, que visitas a museus ou leitura de livros, têm um efeito positivo no modo como os estudantes socialmente mais vulneráveis encaravam a sua capacidade para alcançarem êxito académico.

Nos últimos anos, diversos cientistas sociais têm dado mais relevo ao conceito de habitus, sendo os trabalhos de Dumais e Gaddis dois exemplos da sua aplicação nas pesquisas relativas à educação escolar. Seguindo um caminho diferente, Nowicka (2015) explorou aquela noção no âmbito de um projecto denominado TRANSFORmIG cujo objectivo era analisar a integração de emigrantes polacos na Alemanha e no Reino Unido. Servindo-se da teoria de Bourdieu, a autora observou as “disposições” que esses indivíduos adquiriam no contacto com realidades culturais, étnicas e religiosas distintas das suas.

Em vez de olhar para os instrumentos de mensuração do capital cultural ou o seu reflexo na instituição escolar ou na estratificação social, Stampnitzy (2006) assumiu uma postura mais heurística ao propor explicar o modo como certas disposições culturais se transformam em capital cultural e passam a ser legitimadoras dos princípios de selecção ou de exclusão social em diversos contextos. Recorreu à análise de documentos contendo os critérios utilizados pela Universidade de Harvard na sua política de admissão no período entre 1945 e 1965, dando particular atenção aos factores extra-académicos valorizados no processo de escolha dos candidatos para aquela instituição elitista. As transformações no ensino superior nos Estados Unidos após a segunda Guerra Mundial e a posição de destaque de Harvard nessa fase, serviram de justificação para a pesquisa de Stampnitzy.

A maioria das pesquisas empíricas sobre capital cultural prende-se com uma análise do seu contributo ao nível dos resultados escolares e a relação destes com as

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desigualdades sociais, recorrendo-se, amiúde, aos consumos culturais como indicadores para determinar o modo como é acumulado. É sobretudo no mundo ocidental que os pesquisadores têm desenvolvido os seus estudos, procurando aplicar o modelo de Bourdieu para aferir qual o impacto da educação nas dinâmicas sociais. Naturalmente que noutros contextos como a América do Sul (Coradini, 2010; Salord, 1997; Setton, 2005) ou África também se prestou atenção a Bourdieu e aos seus contributos académicos, com particular enfoque na Sociologia da Educação. Por exemplo, Makita-Makita (1989) analisou o capital escolar e o poder social em África com base nos diplomas universitários para descortinar o peso da formação académica na obtenção de posições de domínio. O autor estudou o caso do antigo Zaire (actual República do Congo) para saber se teriam existido condições políticas favoráveis à implementação de um sistema de estratificação social sustentado nas credenciais escolares ou se tal teria resultado das exigências económicas associadas ao desenvolvimento. O seu trabalho estava integrado numa pesquisa colectiva e multidisciplinar cujo escopo era a realização de um estudo sobre a universidade, a partir dos discursos de todos os seus actores: discentes, docentes, investigadores, diplomados e instituições académicas zairenses. Makita-Makita entrevistou estudantes inscritos no primeiro ano na Univesidade Nacional do Zaire (Unaza) e, em simultâneo, recorreu aos resultados de um questionário sobre as aspirações profissionais dos finalistas da escola secundária de Kisangani. Concluiu existir um “culto da educação” e uma crença na mobilidade social ascendente a partir da posse de um diploma universitário.

Tendo em conta a problemática e os objectivos do presente trabalho, é pertinente considerar a pesquisa desenvolvida na Dinamarca por Munk, Poutvaara e Foged (2013) sobre capital cultural transnacional adquirido em contexto académico fora do país de origem dos estudantes, nomeadamente nos Estados Unidos e no Reino Unido. Os autores sustentam a sua investigação em literatura relacionada com a estratificação social, por um lado, e com as migrações, por outro. Partem da premissa segundo a qual os indivíduos cujos pais possuem um nível académico elevado - por vezes obtido no estrangeiro - e uma posição social prestigiada têm maior possibilidade de virem a

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frequentar o ensino superior quer no seu país, quer no exterior. Nessa circunstância, sugerem que o background familiar pode se visto como uma estratégia reprodutiva inter-geracional promotora da aquisição de uma formação escolar no estrangeiro e com um carácter distinto daquele que é oferecido a nível nacional. O prestígio de diversas universidades dos Estados Unidos e do Reino Unido tornam estes países particularmente atractivos para aqueles que buscam uma formação académica elitista. Como os próprios autores reconhecem, são os indivíduos pertencentes a famílias com posição económica privilegiada que têm possibilidades de investirem numa educação escolar transnacional devido aos elevados custos que tal acarreta. A reprodução social decorrente origina uma nova elite transnacional cuja dimensão internacional do seu capital posiciona-a num mercado laboral global que ultrapassa as fronteiras do seu país de origem (Brown e Lauder, 2009; Ellersgaard, Larsen e Munk, 2012; Weenink, 2008). Um diploma obtido numa universidade de prestígio facilita a colocação em altos cargos, independentemente da região.

Munk, Poutvaara e Foged (2013) usam a abordagem teórica de Bourdieu, mas optam pelo termo “capital cultural transnacional” (ou capital cultural cosmopolita) por entenderem que no actual mundo globalizado os conhecimentos, a linguagem, os diplomas, as disposições ou os bens culturais que garantem uma posição social vantajosa não estão acessíveis apenas à escala nacional, conforme os trabalhos realizados pelo sociólogo francês tentaram demonstrar. Acrescentam, ainda, como elemento essencial para a sua análise, as atitudes dos emigrantes face às estratégias no domínio da educação. Escrevem o seguinte: “Emigrants are investing in capital outsider their national context, which is the reason to have the term trans-national cultural capital”2. Aqui reside a originalidade do seu estudo, pois procuram comparar as atitudes perante o ensino superior por parte de indivíduos que nunca emigraram com aqueles que estiveram, pelo menos, cinco anos fora da Dinamarca. Em 2008, Weenink já havia atestado que as famílias e respectivos descendentes que viveram

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Tradução livre: “Os emigrantes estão a investir em capital fora do seu contexto nacional, razão pela qual se utiliza o termo capital cultural transnacional”.

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algum tempo fora do país apresentavam uma maior probabilidade de investir num curso superior no estrangeiro.

Uma equipa de investigadores coordenados por Ana Bénard da Costa tem estado a proceder a uma avaliação do retorno do investimento na educação por parte dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa no âmbito da cooperação com Portugal e Brasil. Não se trata, directamente, de uma típica pesquisa sobre o capital cultural, todavia, o objectivo é averiguar o modo como se desenrolou a formação dos quadros e o contributo para o desenvolvimento desses Estados. Por exemplo, Ermelinda Liberto (2012) preocupou-se essencialmente com o processo em si, ou seja, as motivações dos estudantes angolanos, a integração no estrangeiro e o regresso ao seu país. Um das suas conclusões aponta para o esforço das famílias, que viram na educação um mecanismo de mobilidade social que permitia obter bons empregos. É também a formação no exterior que, segundo Costa (2009) legitima a ascensão social dos diplomados moçambicanos, nomeadamente o acesso às elites, mas ao mesmo tempo tem servido de pretexto para a fuga de cérebros. O país aumentou a sua oferta educativa no ensino superior, mas não consegue travar a emigração dos seus quadros que buscam outros mercados onde consigam obter maiores dividendos com os seus créditos escolares. Os dois estudos, exploram o impacto do diploma universitário em dois contextos diferenciados, mas economicamente vulneráveis, onde a formação académica superior é determinante da posição social dos agentes.

A visão de Bourdieu está na base da pesquisa de Coutinho e Anjos (2010) que analisaram o perfil dos 117 cabo-verdianos que realizaram um Mestrado em Gestão Global (Master Business Administration, MBA) resultante da parceria entre uma instituição de ensino do arquipélago e outra de Portugal. Atendendo ao elevado custo do mesmo, conforme evidenciado pelos autores, estes assumiram que se tratava de uma formação avançada destinada aos detentores de um volume considerável de capital económico, no contexto das ilhas. A sua hipótese assentou na ideia de que o referido MBA seria, então, um espaço de consagração, não só do ponto de vista da titulação escolar, mas sobretudo, sublinham, da vinculação “a redes relacionais que

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permitiriam aos seus integrantes serem chamados para cargos de prestígio e/ou situarem-se nos postos que permitem a redefinição da esfera económica empresarial”. Entrecruzavam-se, desse modo, os capitais cultural e social, no sentido em que, o convívio no espaço académico poderia ajudar a estabelecer parcerias e importantes contactos que contribuiriam para o acesso a carreiras profissionais, porventura, mais desafiantes e compensadoras em termos económicos e de prestígio. Não obstante a posse de um capital cultural familiar assente na baixa escolaridade dos seus progenitores, estes últimos valorizavam a escola e integravam uma rede social prestigiada, do ponto de vista dos valores morais. Mais do que possuir um determinado diploma, concluem Coutinho e Anjos (2010), as relações sociais geradas pela pertença a um grupo privilegiado aparecem como factor decisivo que faz incrementar o capital social dos indivíduos que realizaram o MBA.

A utilização do conceito de Bourdieu vai para além da educação escolar e da estratificação social, ainda que indirectamente estes domínios possam estar presentes. Um exemplo a ter em conta é estudo de Thomas Abel (2008) no qual mostrou que o capital cultural é uma variável explicativa da correspondência entre desigualdade social e desigualdade no acesso aos cuidados de saúde, não só devido ao capital cultural institucionalizado, mas também pela conversão deste último em capital económico que permite suportar as despesas.

Na presente investigação procura-se compreender o impacto do capital cultural no acesso à elite e na definição do perfil dos seus membros. Embora o trabalho de Bourdieu sirva como elemento impulsionador, importa sublinhar o seu distanciamento cultural, social e económico face à realidade cabo-verdiana. A Europa, em particular França, apresenta uma herança cultural vasta e altamente enraizada na sua configuração social, cuja rigidez foi bastante acentuada até à queda do Antigo Regime no final do século XVIII. Cabo Verde, por seu lado, é um Estado jovem com uma história de colonização da qual resultou a formação do seu povo que mescla elementos culturais portugueses com os dos escravos africanos levados para o território. O desafio será, precisamente, observar essa incursão do conceito de

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Bourdieu num tempo e num espaço distinto daquele que alimentou a sua reflexão teórica e os seus estudos empíricos.