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Altos funcionários públicos do século XXI: uma burguesia cultural ou uma elite política não

CAPÍTULO III – OS ALTOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS NAS SOCIEDADES MODERNAS

3. Altos funcionários públicos do século XXI: uma burguesia cultural ou uma elite política não

O lugar ocupado pelos altos funcionários públicos na estrutura social assume diferentes ângulos de abordagem resultantes das idiossincrasias ligadas ao seu papel e às relações com as estruturas de poder. Formalmente, não constituem uma elite governante- no sentido mosco-paretiano - e não têm sido vistos como uma classe social, mas a verdade é que são um grupo preponderante nos desígnios das sociedades modernas, como vaticinara Max Weber. Olhando para a sua posição na estratificação social poder-se-á questionar até que ponto os altos funcionários públicos serão considerados uma burguesia cultural ou uma elite política não-governante? Vejamos o sentido e a pertinência da questão.

A ideia de burguesia cultural foi explanada por oposição à da burguesia tradicional e proprietária que teria alcançado o poder através da acumulação de riqueza material. Em harmonia com a abordagem marxista, entende-se que o capitalismo, enquanto sistema económico, devia a sua expansão a essa categoria social típica das sociedades modernas, constituída por poderosos banqueiros, donos de indústrias ou de terras, que se servia da mão-de-obra popular para firmar o seu domínio. Nesse óptica economicista, a sociedade ficava dividida em duas classes: a burguesia e o proletariado que se definiam pela sua relação com os meios de produção. Para Marx, eram dois grupos em tensão permanente devido à exploração do segundo por parte do primeiro. Outras teses sobre a burguesia advogam que “O seu domínio não assenta apenas na posse dos meios de produção nem no dinheiro. Os costumes, a educação, o modo de

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vida, distinguem nitidamente os burgueses (…)” (Gresle, 1990, p. 27). Na perspectiva de Guiddens (1973), a estratificação social assenta na posse dos meios de produção, no nível de formação académica e técnica e também na posse de força de trabalho. A aproximação a Bourdieu (1973) e à sua tese em torno do conceito de “capital cultural” é, nestes dois últimos exemplos, mais evidente.

Em 1996, Böröcz e Southworth, concluíram que no século XX, entre o final da Segunda Guerra Mundial e a queda do Muro de Berlim, os Estados socialistas haviam erradicado a burguesia proprietária e, em sua substituição, surgira uma classe de intelectuais com elevado capital cultural que passava a ser a base fundamental das desigualdades sociais nesses países. Os autores desenvolveram uma pesquisa para analisar a especificidade dessa “nova” categoria social na Hungria, através da decomposição do seu capital cultural, para compreenderem a estratificação social naquele país, decorrente da acção redistributiva do Estado socialista, cujo objectivo era equalizar as relações de troca e eliminar a burguesia tradicional. Essa classe de intelectuais dirigia os serviços estatais, tendo-se transformado numa elite político-administrativa cujo poder encontrava a sua génese nas estruturas organizativas do Estado socialista centralizado.

Eyal, Szlelény e Townsley (2000) enfatizam igualmente o crescente papel do conhecimento e da ciência no desenvolvimento das instituições e orientam a sua tese para a formação de um capitalismo, mas sem os capitalistas, isto é, sem detentores de capital económico, numa referência aos Estados socialistas da Europa Central que procuraram afastar as classes formadas a partir da posse de meios de produção. Contrariando as teorias clássicas de Marx ou Adam Smith, preconizam que a elite burocrática e intelectual desses países seguiu uma nova estratégia de promoção e emergência do capitalismo, sem a existência prévia de uma burguesia proprietária. A sua argumentação encontra arrimo no crescimento das organizações corporativas, no maior protagonismo das instituições financeiras e no incremento da importância da ciência, o que, afirmam, relega para segundo plano a posse de capital económico como principal impulsionador do crescimento económico. Explicam que, tais situações

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conduzem ao capitalismo, mas sem a existência de capitalistas a montante. O sentido desta tese não se relaciona propriamente com a teoria de Bourdieu (1979) sobre capital cultural, pois pende para uma reinterpretação das teorias clássicas marxistas e do aparecimento do capitalismo. No entanto, os dirigentes da administração pública da Europa Central pós-comunista são colocados em destaque como uma “nova classe” que deve os seus cargos e o seu poder à educação escolar e ao conhecimento dos processos burocráticos adquiridos durante a experiência profissional na administração pública. Neste caso, o Estado foi o principal promotor da ascensão daquele grupo. Como realça Bertrand Russel (1982),

É óbvio que conforme a sociedade se vai tornando mais orgânica – o que é um resultado das invenções e técnicas modernas – a importância do burocrata vai crescendo continuamente. Por conseguinte é extremamente importante num Estado científico educar correctamente aqueles que vão exercer funções oficiais. (p. 58).

É através do funcionalismo público que os Estados efectivam a prossecução dos seus fins, sendo, por isso, alvo de investimento por forma a garantir resultados satisfatórios. Tem-se visto que quanto melhores as competências dos seus recursos humanos, melhor o desempenho da administração pública, pelo que, a aposta na educação tornou-se num desiderato quase obrigatório para os países. Bourdieu (1982) pensou que um diploma escolar seria insuficiente para promover a ascensão social de classes menos favorecidas, mas muitos dos seus elementos souberam conciliar a formação académica com as oportunidades de carreira na administração pública. Não lhes tendo sido possível acumular grande pecúlio ou adquirir propriedades, conseguiram transformar-se numa burguesia dos tempos actuais, sem bens materiais, mas com considerável capital cultural. Há a ressalvar que seria abusivo generalizar essa ideia, pois a elite burocrática não é um grupo homogéneo, variando com os contextos culturais, sociais e, sobretudo, políticos. Os Estados pós-comunistas da Europa Central parecem ter acolhido bem a noção de burguesia cultural como substituta da antiga burguesia proprietária, com a administração pública como fonte do seu poder, fruto da centralização político-administrativa desses países, o que lhes permitiu controlar os recursos públicos.

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Mesmo assim, Gouldner (1979) prefere avançar com a ideia do aparecimento de uma “nova classe” formada por intelectuais e por uma “intelligentsia técnica” (profissionais com elevada competência técnica) que rivaliza com quem controla o poder nas sociedades modernas. O autor percorre uma série de razões para demonstrar o modo como esse novo grupo emergiu na esfera pública, entre as quais, uma educação escolar mais cosmopolita e a independência dos intelectuais, que passaram a estar integrados num mercado anónimo, destinatário das suas actividades, e sem supervisão e interferência directa por parte dos “patronos”. Puderam, por isso, crescer, autonomizar-se e assumir as suas próprias acções no domínio político. Essa “nova classe”, de acordo com Gouldner, encontrou espaço para se expandir precisamente nos serviços do Estado, daí incluir a jovem elite tecnocrata que, como Treiman e Hanley (2005) também viriam a observar mais tarde, estava em rota de colisão com a antiga elite político-administrativa cujos cargos foram obtidos por fidelização partidária.

Nas democracias ocidentais, o lugar do capital cultural nas estruturas burocráticas e de poder coloca-se de forma diferente, até porque, em alguns países, nomeadamente, França – cujo sistema de estratificação social foi bem explicado por Bourdieu –, Espanha ou Reino Unido, os altos funcionários públicos são tradicionalmente oriundos de classes mais privilegiadas, logo com elevado capital cultural fornecido pela família e pela frequência de escolas de elite. A democratização do acesso ao ensino superior, por toda a Europa, fez crescer a competição no mercado laboral, nomeadamente no acesso à administração pública, em particular, por via do sistema meritocrático de recrutamento e selecção de dirigentes para os serviços do Estado. O sistema clientelar também pode promover a ascensão social de indivíduos oriundos de classes sociais com menor volume de capitais, quando aqueles se tornam verdadeiros “profissionais” da máquina partidária, participando em diversas actividades, aproximando-se das figuras de proa, demonstrando a sua lealdade (Michels, 1966). Tudo isso trará as suas benesses, como sejam, cargos importantes nas estruturas de poder.

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As duas fórmulas utilizadas para escolher os altos funcionários públicos parecem colocar em pólos opostos o capital cultural e o capital político, grosso modo, a formação escolar e o conhecimento de um lado, e os recursos político-partidários do outro. A análise dessa binariedade, tendo em conta os actuais desafios dos serviços públicos, esbarra na sua compartimentalização e tentativa da sua despartidarização. Não há dúvida que os níveis de governação são muito exigentes, daí a necessidade de recorrer a técnicos e especialistas - em diversas áreas – que não estejam vinculados a partidos políticos. Até nos sistemas que privilegiam o recrutamento e selecção de base política, não é estranho aparecerem indivíduos ideologicamente independentes a assumirem a responsabilidade pela definição e execução de determinadas políticas públicas. O capital cultural confronta-se, assim, com o capital político. Contudo, nem sempre triunfa o conhecimento técnico, pois, conforme Ostrogorski constatou (1970), a máquina partidária pode ter efeito esmagador sobre os indivíduos, engolindo-os, literalmente, quando paira sobre a organização qualquer risco de perda do seu campo de influência.

De regresso à pergunta inicial, é possível afirmar que a análise do perfil dos dirigentes da administração pública pode ser integrada nas teorias de estratificação social, para se explorar a hipótese de constituírem uma “burguesia cultural”, ou ser olhada como uma elite política não governante, segundo as características apontadas no presente capítulo. Em todo o caso, é um grupo com posição privilegiada na sociedade e alvo de críticas constantes de indolência, ineficácia e excessiva partidarização. Existe, pois, um capital simbólico que ajuda a compor o seu perfil e o seu papel social. Possuem um poder formal, adveniente do cargo e estipulado pela lei, e também informal, relacionado com a sua proximidade aos governantes – maior ou menor –, com a ideia de segurança laboral e com a rede de contactos (capital social). Estão, naturalmente, atrelados ao exercício da governação e, em termos sociais, podem possuir um status destacável, elevado nível de instrução e condições remuneratórias acima da média da generalidade dos seus concidadãos. Assim sendo, as duas abordagens aduzidas, não parecem excludentes, desde que devidamente enquadradas, contudo a questão permanece em aberto.

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4. Síntese

A complexidade das sociedades actuais coloca inúmeros desafios a quem está no seu comando, seja do lado da governação ou dos seus mecanismos de suporte, como é o caso da administração pública. É nesta estrutura que os seus dirigentes máximos estão incumbidos de levar avante as medidas que visam a satisfação das demandas sociais. Nesse sentido, têm um certo protagonismo no sub-sistema político, estando em permanente diálogo com quem possui poder governativo. Desde os primeiros escritos de Weber que se entendeu tratar-se de uma relação assaz peculiar, tendo o sociólogo, tal como outros seus contemporâneos, preconizado uma clara separação entre os dois mundos: o administrativo e o político. Todavia, a própria dinâmica social revelou a dificuldade dessa cisão. Diversos autores demonstraram que, embora tenham interesses distintos, as elites burocráticas e as elites políticas cruzam-se regularmente, o que tem alimentado a controvérsia sobre os processos de recrutamento e selecção de quem dirige os serviços públicos e, naturalmente, a sua partidarização e/ou politização.

A grande questão que se coloca prende-se, sobretudo, com o recurso a critérios políticos ou meritocráticos para escolher os altos funcionários públicos. São vários os países que optam pelo clientelismo ou patronage, através do qual trocam fidelização partidária por cargos nas estruturas do Estado. Outros seguem os princípios weberianos e optam por selecionar indivíduos com um currículo técnico de excelência. Em todo o caso, é permanente a conexão com o contexto político, variando apenas o modo como tal se processa, o que determina a posição dos altos funcionários públicos no sub-sistema político, em articulação com o tipo de participação na tomada decisão, a autonomia política e o status político (militância partidária e participação política).

Discute-se também a natureza do poder que os dirigentes dos serviços públicos exercem na sociedade, pois a sua posição foi alcançada no exercício de funções técnicas para as quais se exige uma formação académica adequada. Nesse sentido, há

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quem avance com a hipótese de o grupo em questão constituir uma burguesia cultural devido ao volume de capital cultural amealhado no exercício das suas funções.

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