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Politização ou partidarização dos altos funcionários públicos?

CAPÍTULO III – OS ALTOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS NAS SOCIEDADES MODERNAS

2. Posição relativa dos altos funcionários públicos no sub-sistema político

2.3. Politização ou partidarização dos altos funcionários públicos?

Quando se debate a relação dos altos funcionários públicos com os contextos da política a questão central é a sua politização, conceito que assume forte dimensão junto da opinião pública e do senso-comum, conduzindo a constantes enviesamentos sobre o seu sentido e interpretação. Confunde-se, amiúde, politização com partidarização, dando azo a uma generalização abusiva sobre a relação entre o funcionamento da máquina administrativa e a sua relação com a esfera política. Ao fazerem parte de uma estrutura que operacionaliza as decisões governativas, naturalmente imbuídas de ideologia e interesses políticos, dificilmente se poderá considerar que a elite de funcionários públicos não possua qualquer grau de

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politização. Já a ligação a partidos políticos decorre de dinâmicas simbióticas assentes numa lógica clientelar tendente a relegar para segundo plano os princípios meritocráticos. Neste caso, a pressão dos partidos políticos sobre a máquina administrativa é bastante acentuada e procura, acima de tudo, conquistar votos e apoios de determinados grupos sociais, sobretudo, de importantes lóbis capazes de decidir resultados eleitorais e que, em troca, são recompensados através da distribuição de cargos de topo na administração pública.

Estando consignados ao espaço administrativo, tende-se a inferir que os dirigentes desfrutam de um certo isolamento face a eventuais pressões políticas, ficando, por assim dizer, mais capacitados para tomarem decisões em favor do bem comum. Todavia, como diz Holden Jr. (1997), a administração pública é uma forma de acção sem a qual o poder político não existe, é o seu sangue vital. Assim sendo, caem por terra as convicções weberianas de neutralidade a imparcialidade atribuídas ao “tipo- ideal” burocrático. Suleiman (2003) afirma que não se pode pensar que as estruturas burocráticas não são afectadas pela política. Se esta envolve conflitos e compromissos relacionados com a distribuição do poder, as reformas, as normas ou as propostas de remodelação das instituições buriladas pelos burocratas também possuem um particular sentido político.

A partidarização dos dirigentes da administração púbica não se fica pelo seu recrutamento, pois engloba também a sua manipulação e instrumentalização em nome dos interesses dos partidos. Antes da queda do muro de Berlim, nos países da Europa de Leste, em particular na antiga União Soviética, o partido comunista promovia a formação escolar de alguns dos seus militantes que, posteriormente, haveriam de chegar ao topo dos serviços estatais (Farmer, 1992). Em Cabo Verde, durante o regime partido único entre 1975 e 1990, os dirigentes dos serviços públicos tinham de seguir as directrizes emanadas pelo PAIGC/PAICV (Cardoso, 1993). São claros exemplos da utilização formal da máquina político-administrativa, e dos seus recursos humanos melhor posicionados, em prol dos interesses e objectivos partidários segundo princípios da centralização e concentração do poder. Em regimes democráticos, a influência dos partidos nas atitudes e posições ideológicas dos altos

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funcionários do Estado, surge, não raras vezes, de forma dissimulada através do recurso a mecanismos de controlo das suas práticas, como sejam, o recrutamento dos dirigentes por nomeação directa, a elaboração de pareceres, solicitação de esclarecimentos à apresentação de relatórios de actividades e contas, avaliação das políticas públicas. A profissionalização dos partidos tem vindo a travar o monopólio de especialistas das estruturas burocráticas (Aberbach et al 1981; Mair, 1995; Page e Wright, 1999; Teixeira, 2009), enquanto a elite de funcionários públicos está mais atenta às questões de natureza ideológica.

A politização, em si, não se desliga naturalmente dos partidos, mas tem carácter menos vinculativo e mais abrangente, pois relaciona-se com as inclinações ideológicas e não particularmente com determinações impostas pelas estruturas partidárias. Um dirigente de um serviço público poderá, hipoteticamente, identificar-se e agir de acordo com princípios liberais ou socialistas, sem ter qualquer filiação a partidos políticos que professam tais princípios. Do ponto de vista conceptual, a ideia de politização não se apresenta de forma clara e inequívoca na literatura, porém, Peters e Pierre (2004) sem quaisquer pretensões heurísticas, referem simplesmente que é identificada quando no processo de recrutamento e selecção o mérito dos candidatos aos lugares de topo da administração pública é preterido em favor de critérios políticos. Essa é, aliás, a abordagem mais comum (Nunes, 2012; Silva e Jalali, 2010) e que escapa ao âmbito analítico de natureza qualitativa e, eventualmente, mais arriscado em termos explicativos.

Matas (1995) distinguiu entre “politização formal” e “politização material”, para se referir ao modo como os altos funcionários públicos são recrutados na Catalunha. A politização formal estaria relacionada com as nomeações formais para os cargos por parte do governo, tendo como indicadores, precisamente o número de posições preenchidas por via concursal e os que foram atribuídos através de opções político- partidárias. Quanto à “politização material”, o autor recorre a uma abordagem qualitativa, ao considerar que também teriam de ser analisados os critérios utilizados no recrutamento político dos altos funcionários, com particular incidência nas suas filiações políticas e na trajectória profissional. Numa lógica semelhante Suleiman

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(2003) propõe aferir a politização pelo número de cargos atribuídos através de nomeação directa, sem qualquer tipo de concurso, e pela análise dos mecanismos informais utilizados para tais escolhas.

Parece-nos também possível identificar uma “politização funcional” adstrita ao cargo de dirigente dos serviços públicos e que resultaria do exercício das suas funções e da sua capacidade para compreender o impacto das políticas públicas do seu sector, mas numa perspectiva holística, do mesmo modo que actualmente os políticos se socorrem de conhecimentos técnicos para melhor sustentarem a sua argumentação ideológica. Os dirigentes das estruturas estatais imaginados por Weber estão desfasados das demandas actuais na maioria dos países, mesmo os que ainda se encontram numa fase menos avançada do seu desenvolvimento. Para além de uma elevada competência técnica e aptidão para dirigir, decidir e coordenar, os altos funcionários do século XXI desempenham as suas funções em contextos políticos complexos, influenciados por lóbis e pelas consequências da globalização, que terão de desconstruir, compreender e analisar antes de poderem levar a cabo a implementação das políticas públicas. De acordo com Adriano Moreira (????)

É justamente para a realização de objectivos fixados pela função governativa que é necessária uma política, isto é, a arte de escolher e aplicar os meios necessários para realizar os interesses da colectividade na ordem interna e internacional, tal como são definidos peso aos detentores do poder político”

Ora, para operacionalizar tais decisões, os altos funcionários públicos têm de conhecer bem a “arte” de que fala o referido autor, analisar as suas diferentes vertentes, mergulhar na sua essência e avaliar os impactos na vida social.

A mera tecnocracia é hoje insuficiente para o cumprimento das funções dos Estados, com a simples determinação de normas de aplicação universal, ancoradas em perspectivas teóricas e abstractas. Quem dirige os serviços públicos não pode ignorar a envolvente política, a conjuntura e as necessidades sociais. Isso não significa que tenha de seguir uma orientação partidária; trata-se de entender os pressupostos e o alcance

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das medidas políticas, para poder participar nas decisões e operacionaliza-las devidamente. Note-se que na Alemanha, 86% dos altos funcionários inquiridos por Aberbach et al (1981) consideraram que era tão importante para um dirigente da administração pública possuir talento para a política como ter competências técnicas gestionárias. Numa outra pesquisa realizada em França por Suleiman (1973), 57,6% dos dirigentes do sector público e 77,6% do privado afirmaram discordar totalmente com a ideia de que “as problemáticas das sociedades modernas eram mais técnicas do que políticas”. É preciso enfatizar que a “politização funcional” não se confunde com o controlo político da administração que é recorrentemente mencionado na literatura (Etzioni-Halevy, 1993; Peters e Pierre, 2004), pois o seu epicentro é o perfil e a competência política dos dirigentes dos serviços e não o seu recrutamento político.

Na situação actual, fortemente marcada por estratégias de governação estribadas em projectos carentes de tecnocratas capazes de viabilizar medidas, a sua capacidade produtiva interna e a resposta às necessidades colectivas, tal como a questão da eficácia e eficiência dos serviços públicos estão em grande destaque. Mais do que nunca, debate-se a politização e a profissionalização dos altos funcionários do Estado, pois deles poderá depender o sucesso ou o insucesso das políticas públicas. Em teoria, deverão estar aptos a determinar os recursos necessários, a compreender os impactos e a prever dificuldades, sendo indispensável a sua familiarização com a área de intervenção e a capacitação técnica para tal. Estes requisitos são obtidos através da profissionalização dos dirigentes da administração pública, com base nos conhecimentos adquiridos ao longo do exercício das suas funções profissionais ou em contextos formativos nos quais tomam contacto com ferramentas técnicas essenciais à sua actividade (Carvalho, 2001). A profissionalização da função de dirigente é associada a resultados mais eficazes dos serviços estatais e distante da partidarização, considerando-se que de outro modo não seria possível a sua isenção e equidistância face às pressões e motivações políticas. Iyer e Mani (2008) verificaram que os Estados indianos onde existia maior influência dos políticos sobre a elite burocrática apresentavam uma performance mais fraca.

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Na generalidade dos países africanos, os altos funcionários públicos estão muito ligados ao poder político e militar numa lógica clientelar, mas também se deve ter em conta que a instabilidade governativa, os conflitos armados, a pobreza extrema, são apenas alguns dos obstáculos que se levantam à organização das próprias administrações públicas. Para Kasfir (1969), em certos casos, essas estruturas, em conjunto com os seus funcionários, impediram o avanço das conquistas liberais e democráticas após as suas independências devido ao seu pendor ideológico e à sua instrumentalização por parte do poder governativo. A administração pública e os seus cargos são amiúde o centro de contendas entre quem está no poder e os partidos políticos da oposição (Adamolekun, 1971; Copans, 2001) gerando tensões nos serviços entre funcionários de diferentes graus hierárquicos. A partidarização pode, nesses casos, ser nociva ao desempenho dos serviços quando, em nome das divergências ideológicas, se criam barreiras à prossecução das funções do Estado e à consolidação das políticas públicas.

A questão da politização/partidarização é muito discutida em Cabo Verde, desde o cidadão comum até aos membros do Governo, passando pelos académicos e demais intelectuais. Em diversas ocasiões, o próprio Primeiro-Ministro do país fez intervenções públicas nas quais realçou a necessidade dos serviços do Estado adoptarem uma postura mais profissional, e proactiva e menos agarrada aos partidos. A comunicação social também tem promovido largamente esse debate, já que, a nomeação política para os cargos de direcção, numa lógica clientelar, é uma prática comum no arquipélago desde a sua independência.

A sua participação dos dirigentes dos serviços estatais nas políticas públicas, quer decidindo sobre as mesmas quer executando-as, não é um exercício somente técnico e administrativo. É muito mais do que isso. Envolve a gestão e o controlo dos recursos públicos, o que, à partida, desperta particular interesse por parte de quem está em posições de comando. O assédio político aos altos funcionários do Estado é elevado e em certos cenários, como ficou demonstrado, as ligações promíscuas com a esfera partidária são banais, com benefícios para ambas as partes, obedecendo aos princípios

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de Georg Simmel (2001 [1917, p. 563] sobre as relações de reciprocidade, visando a satisfação dos seus interesses. Nas sociedades modernas, os assuntos de natureza política têm-se imiscuído visivelmente na esfera da administração pública, sem escapatória para os seus dirigentes, porém, se não forem profissionalmente competentes arriscam-se a ficar reféns das agendas da elite política.

3. Altos funcionários públicos do século XXI: uma burguesia cultural ou uma elite