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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS. LUANA JÉSSIKA DELLA-FLORA. HERANÇAS SILENCIOSAS, HERANÇAS MALDITAS: IMPLICAÇÕES DA SUBALTERNIDADE E DO EMPREGO DOMÉSTICO EM COM ARMAS SONOLENTAS, DE CAROLA SAAVEDRA, E ESTELA SEM DEUS, DE JEFERSON TENÓRIO. SÃO PAULO 2019.

(2) 2. LUANA JÉSSIKA DELLA-FLORA. HERANÇAS SILENCIOSAS, HERANÇAS MALDITAS: IMPLICAÇÕES DA SUBALTERNIDADE E DO EMPREGO DOMÉSTICO EM COM ARMAS SONOLENTAS, DE CAROLA SAAVEDRA, E ESTELA SEM DEUS, DE JEFERSON TENÓRIO. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito para obtenção de título de mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Cristhiano Motta Aguiar. SÃO PAULO 2019.

(3) 3.

(4) 4. IDENTIFICAÇÃO DA AGÊNCIA DE FINANCIAMENTO.

(5) 5.

(6) 6. Para Stella, com quem compartilho as mesmas heranças silenciosas e malditas..

(7) 7. AGRADECIMENTOS Às mulheres do campo, agricultoras e trabalhadoras rurais – em especial, às da Possatto; às mulheres mães, tias, madrinhas, e avós que não podem partir (todas); às empregadas domésticas, faxineiras, diaristas e moças da limpeza – em especial, às que são mães; às escritoras e poetas que enfrentam páginas em branco e portas fechadas (todas); às professoras e orientadoras exaustas que não perdem a ternura – em especial, à Ana Lucia; à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior; às colegas e amigas de trajetória acadêmica que dividem cansaço e desespero – em especial, à Rosana; às amigas de longa data que continuam aqui (todas): Muito obrigada. Aos seres que perdoam com antecedência – em especial, ao Duque; aos professores, igualmente generosos e corajosos, que ensinam, ouvem, inspiram e resistem – em especial, ao meu orientador: Este agradecimento não é o bastante..

(8) 8. Permita que eu fale Não as minhas cicatrizes — Emicida.

(9) 9. RESUMO A partir da percepção de que mudanças políticas e socioeconômicas, ocorridas no Brasil nos últimos anos, afetaram a dinâmica das populações marginalizadas, cuja participação e representação no universo literário nacional sempre refletiu – com raras exceções – a exclusão social a que estavam submetidas, estudamos dois romances escritos por autores brasileiros e publicados em 2018 com o objetivo de analisar como a literatura contemporânea aborda essas populações, concentradas aqui na temática do emprego doméstico, tanto no que diz respeito a construção das personagens e das categorias narrativas, quanto na relação entre esse contexto, a realidade brasileira e o lugar de autoridade ocupado pelo intelectual/escritor. Com armas sonolentas (2018), de Carola Saavedra, e Estela sem Deus (2018), de Jeferson Tenório, apresentam personagens femininas ligadas ao trabalho doméstico – e ligadas umas às outras por laços sanguíneos. O eixo teórico basilar em torno do qual desenvolvemos essas análises é constituído por textos e autores dos Estudos subalternos – escola teórica estabelecida no contexto da pós-colonialidade –, como Gayatri Spivak (2018) e Walter Mignolo (2011, 2017). Além disso, analisamos também os aspectos míticos presentes em cada obra: o realismo maravilhoso, no caso de Saavedra, fundamentado por Eliade (1972, 1992) e Chiampi (1977, 2008), e a religiosidade, no caso de Tenório, fundamentada por Armstrong (2005). Como resultado, desenvolvemos a hipótese da interferência do histórico de formação da sociedade brasileira nessas produções literárias em contraponto a não limitação da obra a uma abordagem realista-naturalista, pois, em literaturas de temática subalterna, o rompimento da lógica racional hegemônica de representação parece trazer ainda mais força à narrativa, considerando que o absurdo da realidade equilibra o absurdo do mito. Identificamos, ainda, que a ascensão social e intelectual das personagens se dá por motivos individuais e específicos, e não por uma transformação das estruturas de poder – fator que agrega ainda mais relevância à literatura contemporânea quando esta aborda a subjetividade do subalterno, com fazem Carola Saavedra e Jeferson Tenório. Palavras-chave: Literatura brasileira contemporânea. Subalternidade. Emprego doméstico..

(10) 10. ABSTRACT From the perception that political and socioeconomic changes in recent years in Brazil have affected the dynamics of marginalized populations, whose participation and representation in the national literary universe has always reflected – with rare exceptions – the social exclusion to which they were subjected, we studied two novels written by Brazilian authors and published in 2018 with the aim of analyzing how contemporary literature approaches these populations, focused here on the theme of domestic labor, both regarding the construction of characters and narrative categories, and the relationship between this context, the Brazilian reality and the place of authority occupied by the intellectual/writer. Com armas sonolentas (2018), by Carola Saavedra, and Estela sem Deus (2018), by Jeferson Tenório, feature female characters linked to domestic labor – and linked to each other by blood ties. The fundamental theoretical axis around which we develop these analyzes consists of texts and authors from Subaltern Studies – theoretical school established in the context of postcoloniality – such as Gayatri Spivak (2018) and Walter Mignolo (2011; 2017). Moreover, we also analyze the mythical aspects present in each work: the magical realism, in Saavedra's case, grounded by Eliade (1972; 1992) and Chiampi (1977; 2008), and the religiosity, in the case of Tenório, grounded by Armstrong (2005). As a result, we developed the hypothesis of the interference of the formation history of Brazilian society in these literary productions as opposed to not limiting the work to a realisticnaturalist approach, because in subaltern thematic literatures, the rupture of the hegemonic rational logic of representation seems to bring further force to the narrative, considering that the absurdity of reality balances the absurdity of myth. We also identified that the social and intellectual rise of the characters occurs for individual and specific reasons, not for a transformation of power structures – a factor that adds even more relevance to contemporary literature when it addresses the subjectivity of the subaltern characters, as Carola Saavedra and Jeferson Tenório do. Keywords: Contemporary Brazilian Literature. Subalternity. Domestic labor..

(11) 11. LISTA DE SIGLAS AGES. Associação Gaúcha de Escritores. APCA. Associação Paulista de Críticos de Arte. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. FGTS. Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. FUNAI. Fundação Nacional do Índio. GM/C. Grupo Modernidade/Colonialidade. OIT. Organização Internacional do Trabalho. PEC. Proposta de Emenda Constitucional. PUC-Rio. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. UCLA. University of California, Los Angeles. UERJ. Universidade Estadual do Rio de Janeiro. UFBA. Universidade Federal da Bahia. UNB. Universidade de Brasília. USP. Universidade de São Paulo.

(12) 12. LISTA DE ILUSTRAÇÕES. Figura 1. Representação da genealogia das personagens de Com armas sonolentas________________________________________179. Figura 2. Esquema da comunicação narrativa _________________________________96.

(13) 13. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ___________________________________________________________ 14 CAPÍTULO I _____________________________________________________________ 19 Personagens subalternas: espelhos desobrigados, reflexos inescapáveis 1.1 Conflitos atenuados mas nunca resolvidos: a complexidade do equilíbrio entre texto e contexto ................................................................................................... 19 1.2 Desaprender para recomeçar: urgências e desafios dos estudos subalternos pós-coloniais ............................................................................................. 33 1.3 Piscinas esvaziadas, oceanos traiçoeiros: a manutenção da vida do outro no esgotamento de si ..................................................................................... 49 CAPÍTULO II _____________________________________________________________ 56 Filhas da faxina: subalternidade e representação em Carola Saavedra e Jeferson Tenório 2.1 Molduras de um quadro inacabado: vozes e lugares contemporâneos .................. 56 2.2 Leitor, linguagem e composição: a escrita de Carola Saavedra ............................ 58 2.2.1 A fita de Möbius da subalternidade: violência e maternidade como os dois lados de um objeto sem lado ........................................................ 66 2.2.2 Inconsonância, linhagem e tempo: o insólito latino-americano revisitado em Com armas sonolentas................................................................. 81 2.3 Pequenas grandes personagens: a escrita de Jeferson Tenório ............................ 109 2.3.1 Lama, lodo, limo: violência e maternidade como margens de um mesmo rio .................................................................................................... 115 2.3.2 Quando Deus não responde: aspectos da religiosidade em Estela sem Deus ............................................................................................... 141 CONCLUSÃO ___________________________________________________________ 158 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _________________________________________ 165 APÊNDICES ____________________________________________________________ 179.

(14) 14. INTRODUÇÃO Uma população maior que a da Dinamarca: essa foi a conclusão da Organização Internacional do Trabalho (OIT) ao verificar a quantidade de pessoas empregadas no setor de serviços domésticos no Brasil – mais de sete milhões. Segundo esses dados de 2017 (WENTZEL, 2018), existem três empregadas – majoritariamente mulheres negras com baixa escolaridade – para cada grupo de 100 habitantes, o que significa, basicamente, que continuamos a ser um país de senzalas servindo à casa grande. Em 1983, o professor e crítico literário Roberto Schwarz organizou a obra Os pobres na literatura brasileira, cujo compilado de artigos de diferentes autorias aborda a representação literária de personagens marginalizadas socialmente. Apesar do conteúdo diverso e variado, o livro apresenta com certa ênfase e recorrência a figura do vadio – homens pobres e expropriados que, após a abolição do regime escravocrata, tornaram-se livres e sem trabalho. Laura de Mello e Souza chama atenção para a presença dessas figuras na literatura colonial e, ao mesmo tempo, para a supressão sistemática delas nos trabalhos historiográficos do e sobre o período. A partir disso, colocam-se duas questões, que se ligam diretamente ao tema deste trabalho: primeiro, a falta de planejamento e de medidas de inclusão e inserção social voltadas para os negros durante e após a promulgação da Lei Áurea, cujo objetivo de acabar com a escravidão criou, na contramão, uma liberdade inalcançável, uma vez que os ex-escravos se tornaram desempregados sem terra e sem dinheiro, ou seja, “vadios”. Vale ressaltar que essa falta de iniciativas inclusivas para os ex-escravos não é vista como um desleixo ou uma imprecaução da época, mas, sim, como uma das táticas de um amplo projeto estruturalmente racista de povoamento e construção identitária do país. Em segundo lugar, a questão do apagamento dessas figuras marginalizadas na comparação da literatura e da historiografia da época – apagamento que se perpetuaria ao longo da história da literatura brasileira, guardadas as devidas exceções. Devido à essa ausência de ações afirmativas e inclusivas e à aplicação do projeto de branqueamento da população, a escravidão deu lugar à desigualdade, que manteve e mantém os pobres e negros à margem: do espaço social, obrigando-os a ocupar áreas periféricas; da academia, colocando-os, quando muito, como objetos de pesquisa mas não como sujeitos pesquisadores; do trabalho formal, relegando-os a exercerem funções de grande desgaste físico e menor remuneração na informalidade, sem o mínimo de direitos assegurados pela lei. Não à toa, o trabalho doméstico representa, atualmente, a principal ocupação e fonte de renda entre as mulheres brasileiras, segundo a OIT..

(15) 15. Apesar desses números relevantes que pontificam o serviço doméstico e da importância da figura da empregada na estrutura organizacional do cotidiano familiar das classes médias e altas, inclusive como demarcação da própria classe, não há, na literatura brasileira, uma equivalência representativa desses grupos marginalizados. Um bom exemplo desse desequilíbrio é o caso da escritora Maria Carolina de Jesus, empregada doméstica moradora da favela do Canindé que contou em forma de diário seu cotidiano de pobreza e miséria. O sucesso do livro Quarto de despejo permitiu que Maria deixasse a favela e passasse a tentar viver de sua escrita – sem, contudo, manter o sucesso da primeira publicação. Sobre isso, Carlos Vogt escreveu: “[...] morreu triste, abandonada e incompreendida. Ao que parece, sem compreender que os mecanismos sociais que promoveram o seu destaque laboraram também o seu esquecimento” (1983, p. 204). A consciência social de João Cabral de Melo Neto e o conteúdo de verdade de Graciliano Ramos no tratamento dado ao nordestino; a figura do sertanejo valente e indômito da literatura de cordel; a escolha de Lima Barreto de dar aos grupos rejeitados pela sociedade a visão condutora do narrador; a “atitude humilde” de Manuel Bandeira na concepção (tema, linguagem e forma) de seus poemas; a presença da voz da rua, dos párias e dos livres da noite em Mario de Andrade compõem outros exemplos apontados pela obra de Schwarz como mecanismos de subversão e personagens socialmente subalternas que estão representados na literatura brasileira. Nos últimos anos, algumas políticas públicas – e não nos interessa aqui construir análises judicativas acerca de tais políticas –, em conjunto com o elevado grau tecnológico e reticular da sociedade atual, afetaram diretamente esses grupos sociais, principalmente os que atuam no emprego doméstico. A Emenda Constitucional nº 72, aprovada em 2 de abril de 2013, colocou em vigor a proposta nº 66/2012, conhecida como PEC das Domésticas, que estabeleceu a igualdade de direitos trabalhistas entre os empregados domésticos e demais trabalhadores, bem como o cumprimento das obrigações tributárias e sua inclusão na Previdência Social. Programas de bolsas de estudo de ensino superior em universidades particulares destinadas à estudantes de baixa renda e cotistas (afrodescendentes, indígenas e pessoas com deficiência) também impactaram a composição discente das universidades brasileiras: em dez anos, de 2004 – ano da criação do principal programa de acesso ao ensino superior – a 2014, o número de alunos pretos ou pardos subiu de 16,7% para 45,5%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1. Somado a isso, há também a popularização do movimento feminista na. 1 PROPORÇÃO de alunos de 18 a 24 anos no ensino superior aumenta, diz IBGE. O Globo. 4 dez. 2015. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/proporcao-de-alunos-de-18-24-anos-no-ensino-superioraumenta-diz-ibge-18217646. Acesso em: 12 mar. 2019..

(16) 16. internet, que acendeu o debate sobre o lugar da mulher negra em uma sociedade patriarcal e racista como a brasileira. Em outras palavras, os filhos e filhas (em sua maioria, negros) das empregadas domésticas (também, em sua maioria, negras) chegaram à universidade sabendo que ali também é o lugar deles. Embora, como vimos, a população marginalizada não ocupe a literatura e a academia como protagonista ou sujeito da própria narrativa, ela é, frequentemente, observada e analisada tanto em sua existência e ação reais, quanto em sua representação artística. Nesse sentido, muito já se produziu sobre a profissão da empregada doméstica – relações entre patrão e empregado, opressão e humilhação, questões de gênero, raça e classe etc. –, assim como muito já se produziu sobre a representação da empregada como personagem literária – caso da Félicité, de Gustave Flaubert; da Domingas, de Miltom Hatoum; da Vitória, de Graciliano Ramos; da Belarmina, de José Régio; da Janair, de Clarice Lispector; da D. Plácida, de Machado de Assis; da Juliana, de Eça de Queirós; de Maria da Graça e Quitéria, de Valter Hugo Mãe; da Ponciá, de Conceição Evaristo; da Bertoleza, de Aloísio de Azevedo; da Tia Nastácia, de Monteiro Lobato; da Tizica, de Andréa del Fuego; da Odete, de Lygia Fagundes Telles, entre muitas outras. Inicialmente, essa listagem – superficial e incompleta – de personagens femininas empregadas domésticas criadas por autores nacionais e internacionais consagrados pode parecer contraditória, à medida que só esse apontamento já denota sua existência em grandes obras ficcionais. No entanto, as questões que cercam a subalternidade não dizem respeito apenas à representação como simples existência do subalterno no texto, pelo contrário: é necessário questionar essa representação, observando como ela foi construída, por quem ela foi construída e qual a relação entre essas duas categorias. Quantas dessas personagens empregadas são protagonistas? Quantas são narradoras? Quantas aparecem como sujeito, indivíduos complexos, cuja importância e conflito não se encerram na relação de servidão? Qual o papel que exercem na narrativa, além de compor um cenário de verossimilhança e cumprir estereótipos? O panorama social do grupo formado por mulheres empregadas domésticas majoritariamente negras diante desse cenário que, por um lado, apresenta políticas públicas voltadas especificamente para diminuição das desigualdades que atingem esses estratos da população e, por outro, permite e facilita o diálogo, a troca de informações e o empoderamento coletivo desse grupo, sofreu alterações significativas. A grande virada está justamente no resultado da soma dessas mudanças: o rompimento do ciclo familiar de trabalho doméstico. Nesse sentido, não são mais as mulheres trabalhadoras domésticas, mas, sim, as filhas dessas mulheres – que passam a ter outras possibilidades de atuação no mercado de trabalho – que.

(17) 17. abalam a narrativa tradicional e exigem novas representações, considerando que uma mudança nos estereótipos de raça, gênero e classe já está em andamento. Sendo assim, o objetivo geral desta pesquisa é analisar como a literatura contemporânea aborda a temática do emprego doméstico, tanto no que diz respeito a construção das personagens e das categorias narrativas, quanto na relação entre esse contexto, a realidade brasileira e o lugar de autoridade ocupado pelo intelectual/escritor, a partir da análise de dois romances brasileiros contemporâneos: Com armas sonolentas, de Carola Saavedra, e Estela sem Deus, de Jeferson Tenório, ambos publicados em 2018. A obra de Saavedra narra a história de quatro gerações de mulheres da mesma família cujas trajetórias, muito diferentes entre si, acabam encontrando ressonâncias nas anteriores e retomando papeis aparentemente superados. Já a narrativa de Tenório acompanha o desenvolvimento de Estela, uma adolescente que, devido as condições oriundas da precariedade do trabalho da mãe, é obrigada a se mudar com o irmão mais novo para o Rio de Janeiro, tornando-se responsável pelos dois. A partir da observação de como essas narrativas foram afetadas pelas mudanças sociais ocorridas na época de suas produções, pretende-se, também: a) contextualizar as obras na conjuntura da literatura contemporânea e o momento sócio-histórico brasileiro dos últimos anos com vista para as mudanças das relações de trabalho e de classe, b) analisar a construção e os percursos das principais personagens mulheres em cada obra a partir das noções de “empregada doméstica” e “filha de empregada doméstica”, atentando-se para a maneira como a profissão das mães é descrita, a relação das filhas com o emprego materno e a influência dessa marca social na trajetória de cada personagem, c) comparar os resultados dessas análises, apontando encontros e divergências no corpus e, por fim, d) identificar a distância entre a representação literária e o silenciamento do subalterno, problematizando as condições de representação e os limites representacionais. As reflexões de Antônio Candido (2018) e Beth Brait (2017) sobre a personagem de ficção guiarão as análises acerca das filhas de trabalhadoras domésticas presentes no corpus, assim como alguns textos da extensa obra da pesquisadora Regina Dalcastagnè sobre questões de gênero e raça nas personagens da literatura brasileira contemporânea, e a produção de Sonia Roncador (2008) que trata especificamente das empregadas domésticas. A problematização acerca da representatividade na literatura se baseará em publicações da linha teórica dos Estudos Subalternos pós-coloniais, cuja principal expoente e pioneira é a crítica e teórica indiana Gayatri Chakravorty Spivak, com a obra Pode o subalterno falar? (2018), e também em autores americanos que transportam e repensam esse debate a partir da.

(18) 18. realidade do nosso continente, como John Beverley (2004), Jonathan Warren (2015), Walter Mignolo (2011; 2017), Rita Segato (2019), entre outros. A relevância desta pesquisa situa-se nos mesmos pontos de suas dificuldades, isto é, na análise do contemporâneo cujo caráter de ineditismo dado pelo corpus estabelece, ao mesmo tempo, o teor original do tema e a ausência de referências prévias específicas, além da problematização acerca da representação das subalternidades, tema urgente e necessário, uma vez que questiona “o agenciamento como uma forma de ação validada institucionalmente” (ALMEIDA, 2018, p. 18). No que diz respeito à estrutura e organização, esta dissertação está divida em dois capítulos – “Personagens subalternas: espelhos desobrigados, reflexos inescapáveis” e “As filhas da faxina: subalternidade e representação em Carola Saavedra e Jeferson Tenório” – que acompanham os objetivos propostos pelo trabalho: nas subdivisões do primeiro capítulo, apresentamos uma síntese da longa e complexa discussão sobre a relação entre literatura e realidade, considerando que nossa análise literária se aproxima de uma fronteira sociológica, seguido de uma explanação sobre a trajetória dos Estudos Subalternos e a evolução de suas reflexões e conceitos, buscando introduzir esta linha teórica, ainda pouco explorada no Brasil, somada a uma breve consideração sobre o panorama literário que envolve o tema da empregada doméstica. Além disso, também tratamos brevemente de outras produções artísticas e culturais que abrangem essa temática na contemporaneidade, com ênfase no cinema. O segundo capítulo também possui três subdivisões, sendo a primeira uma contextualização acerca da literatura contemporânea e os outros dois as análises de cada uma das obras, também divididas por categorias gerais temáticas, sendo uma sobre maternidade e violência e a outra sobre o aspecto mítico de cada romance – o realismo maravilhoso em Com armas sonolentas e a religiosidade em Estela sem Deus. Há, também, uma breve investigação acerca da influência da experiência pessoal dos autores no resultado final de suas narrativas, tendo em vista que Carola Saavedra parte de uma perspectiva de mulher latino-americana classe média e Jeferson Tenório possui a vivência de um homem negro filho de empregada doméstica. Antes das análises, ainda, apresentamos o corpus e o histórico literário de cada autor. Na conclusão, retomamos as análises das obras sob um viés comparativo, evidenciando seus pontos de conversão e inversão e suas determinadas justificativas..

(19) 19. CAPÍTULO I — PERSONAGENS SUBALTERNAS: ESPELHOS DESOBRIGADOS, REFLEXOS INESCAPÁVEIS 1.1 Conflitos atenuados mas nunca resolvidos: a complexidade do equilíbrio entre texto e contexto Para saber o que cada um é, são necessários ao menos dois homens. — Alberto Manguel. Em 1965, ano em que Nelson Rodrigues estreia a polêmica peça Toda nudez será castigada, que revela, por meio da trajetória da personagem Geni, a incongruência e a hipocrisia características da elite tradicional brasileira, Antonio Candido publica Literatura e sociedade, texto visceral na discussão sobre quais elementos são “responsáveis pelo aspecto e significado da obra” (CANDIDO, 1973, p. 5) e devem ser, de fato, considerados na análise crítica. Até ali, dois extremos opostos já haviam conquistado seus momentos de glória: tanto a ideia de que o valor da obra de arte residia na sua capacidade de exprimir a realidade quanto a noção antagônica que proclamava a independência da obra de quaisquer circunstâncias externas. Ao mesmo tempo, as duas versões também já haviam se provado insuficientes e evidenciado a necessidade de se fundir texto e contexto para a construção de uma “interpretação dialeticamente íntegra” (CANDIDO, 1973, p. 4). Para isso, Candido aponta que tudo aquilo que diz respeito ao exterior da obra (o social, cultural etc.) precisa ser considerado, porém a partir do papel que desempenha na “constituição da estrutura” (CANDIDO, 1973, p. 4). Assim, o elemento social é levado em conta como “um fator da própria construção artística”, sendo interpretado no interior do texto: “quando o externo se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica (CANDIDO, 1973, p. 5, grifos do autor). O sociólogo e crítico literário aponta, então, seis tipos diferentes de estudos que relacionam sociologia e crítica: o primeiro deles, considerado o método tradicional (a partir do século XVIII), refere-se a tentativa (frustrada) de demonstrar as relações de uma literatura (um período, um gênero etc.) com as circunstâncias sociais de seu ambiente externo. O segundo tipo diz respeito aos estudos que tentam “estabelecer correlações entre os aspectos reais e os que aparecem no livro” (CANDIDO, 1973, p. 10), isto é, se a obra espelha o que se passa na realidade de seu entorno. No terceiro tipo, é a relação entre a obra e o público que ganha o centro dos estudos. Já o quarto foca na “posição e função social do escritor, procurando relacionar a sua posição com a natureza da sua produção e ambas com a organização da.

(20) 20. sociedade” (CANDIDO, 1973, p. 10-11). Tanto o terceiro quanto o quarto tipo de estudos tendem a permanecer quase que unicamente no campo da sociologia, sem alcançar a crítica literária. No quinto tipo, entram em cena os fatores ideológicos, na tentativa de examinar a função e posição política das obras e seus autores. Candido chama atenção para o fato de que este costuma ser o tipo preferido dos críticos marxistas. E, por fim, no sexto tipo está a análise da genealogia dos textos literários, isto é, “a investigação hipotética das origens, seja da literatura em geral, seja de determinados gêneros” (CANDIDO, 1973, p. 11). Trazemos essa diferenciação de tipos exposta por Antonio Candido para demonstrar os muitos caminhos já percorridos por analistas da linguagem, no decorrer dos últimos séculos, na busca por resolver a questão da forma ideal de se compreender a relação da literatura com a realidade social onde ela está inserida. Vale ressaltar que, ainda nesta obra, Candido reconhece a importância de todos esses tipos de estudos, desde que eles sejam compreendidos a partir dos campos a que pertencem, isto é, que não sejam tomados como crítica literária, mas como sociologia da literatura ou história sociológica da literatura, por exemplo, uma vez que muitos desses aspectos – indispensáveis para historiadores e sociólogos – podem tornar-se secundários ou completamente dispensáveis na crítica literária. De modo geral e simplista, pode-se dizer que o autor estabelece, a partir dessas reflexões, a relação entre o trabalho artístico e a realidade como algo “arbitrário e deformante” (CANDIDO, 1973, p. 12) e conclui que uma análise literária coerente exige que a dimensão social seja assumida como um fator de arte. O desafio de equilibrar, de acordo com as necessidades impostas pela própria obra literária, elementos sociais e estéticos na sua interpretação e análise crítica está, sem dúvidas, colocado nos objetivos deste trabalho, uma vez que as duas obras que compõem o corpus descrevem fenômenos sociais muito característicos do atual momento da sociedade brasileira. No caso de Com armas sonolentas, da escritora Carola Saavedra, acompanhamos a narrativa de cinco gerações de mulheres da mesma família, com foco no tema da maternidade – que cada personagem expõe e experiencia de uma maneira completamente diferente da outra, considerando que cada uma delas lida com os obstáculos oriundos de uma realidade social distinta da personagem anterior. Desde a avó indígena que abandona a aldeia de origem, passando pelas filhas que atuam no emprego doméstico de maneiras muito diferentes, até a menina privilegiada que cresce frequentando as melhores escolas da Alemanha, o elemento social aparece com destaque no decorrer de toda a história. Já na obra de Jeferson Tenório, Estela sem Deus, acompanhamos a trajetória de uma única protagonista, cujas consequências da precariedade do trabalho da mãe – empregada doméstica – ocasionam reviravoltas bastante.

(21) 21. inesperadas. Os diferentes elementos e contextos sociais aparecem na narrativa de Tenório incidindo sobre a mesma personagem, sem a decorrência da passagem do tempo presente em Com armas sonolentas. Estela não chega a cursar a universidade na Alemanha, mas sua história, assim como a escrita por Saavedra, também apresenta contextos sociais bastante diversos. No segundo capítulo, após contextualizarmos todas as contribuições teóricas que guiarão este trabalho, apresentamos, detalhadamente, as análises das duas obras, tentando não perder de vista os ensinamentos de Antonio Candido sobre o – complexo – equilíbrio que deve existir entre o texto e o contexto. Por ora, referenciamos aqui um terceiro livro que, embora não faça parte do corpus dessa dissertação, conversa diretamente com o tema investigado, e cujo contexto apresenta importantes elementos a partir dos quais será possível expor conceitos e contextualizações essenciais para a compreensão do que está presente nas narrativas de Tenório e Saavedra. Tratase da obra Ponciá Vicêncio (2017), cujo excerto abaixo sintetiza questões importantes sobre a formação da sociedade brasileira e da profissão doméstica, detalhadas a seguir. “Era pajem do sinhô-moço. Tinha a obrigação de brincar com ele. [...] Pajem do sinhômoço, escravo do sinhô-moço, tudo do sinhô-moço, nada do sinhô moço” (EVARISTO, 2017, p. 17). É assim que Conceição Evaristo, escritora negra que, em 2018, concorreu a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras2, nos apresenta o pai de uma de suas principais personagens, Ponciá Vicêncio. Logo após essa breve – porém visceral – apresentação do personagem, ainda nas primeiras páginas da obra, o narrador descreve, em detalhes, uma das muitas humilhações e violências do “coronelzinho” sofridas pelo pai da menina distraída e absorta que gostava de olhar o arco-íris desaparecer do céu: depois de ser obrigado a beber a urina do menino, que era filho do patrão de seu pai (avô de Ponciá), o jovem pajem criou coragem para questionar seu progenitor sobre o por quê de eles continuarem se submetendo àquela situação de abusos e aviltamentos, considerando que já eram livres. “Perguntou e a reposta do pai foi uma gargalhada rouca de meio riso e de meio pranto. O homem não encarou o menino” (EVARISTO, 2017, p. 17). Por trás de uma suposta simplicidade na linguagem, encontramos na escrita de Conceição Evaristo a sensibilidade de quem consegue falar da dor de maneira singela e, por isso mesmo, honesta. A oposição tudo-nada que descreve a relação do pai da personagem Ponciá com o filho do patrão sintetiza a complexa realidade da colonização e da escravidão no Brasil, e como seus efeitos ecoaram para muito além desses períodos. O pai de Ponciá Vicêncio era tudo para o 2 BIANCHI, Paula; CAMPOS, Mateus. Conceição Evaristo. The Intercept Brasil. 2018. Disponível em: https://theintercept.com/2018/08/30/conceicao-evaristo-escritora-negra-eleicao-abl/. Acesso em: 28 abr 2019..

(22) 22. coronelzinho, já que este podia transformá-lo em qualquer coisa e fazer dele qualquer uso: sendo da mesma idade, o menino servia de companhia para brincar; sendo negro filho de escravo, ele servia também de penico para urinar. Mas o jovem pajem era, igualmente, nada: não importa o quanto os dois conviviam nem o tanto que o futuro pai de Ponciá se dedicava a atender os caprichos do menino, se o coronel-mirim podia fazer dele qualquer coisa, isso significa que ele podia, inclusive, desfazer-se dele. Durante os mais de 300 anos que o regime escravocrata imperou oficialmente no País, a vida dos negros escravizados foi transformada na própria negação da vida, em não-vida; uma vez que com eles podia-se fazer tudo que se quisesse, suas vidas valiam nada. Há muito de Evaristo em Ponciá, que carrega no sobrenome – Vicêncio –, herdado do senhor de escravos que fora “dono” de seus avós, o apagamento de suas origens e a marca eterna da vida roubada pelo racismo. Assim como sua personagem, Conceição também encontrou no trabalho doméstico a única opção de emprego e renda durante a juventude. Segundo Maria José Somerlate Barbosa, O texto [de Evaristo] aborda a exploração que ainda existe na zona rural, fala do trabalho em regime de semiescravidão, da exploração do trabalho do campo, do coronelismo, da migração do campo para as cidades, da indiferença da Igreja com os sem-casa, do trabalho das empregadas domésticas, do analfabetismo e da vida nas favelas (2017, p. 116).. O trabalho de empregada doméstica e sua estreita relação com o passado racista e escravocrata da formação da sociedade brasileira são os principais pontos que denotam a afinidade de Evaristo com a protagonista de seu romance Ponciá Vicêncio e de ambas com a proposta deste trabalho, daí a escolha desse romance e dessa autora para abrir nosso primeiro capítulo, que pretende explanar a fundamentação teórica que baseará as análises do corpus. No entanto, essa afinidade autor-personagem não pode – nem deve – ser compreendida como requisito essencial. Apesar de ter embasado, durante muito tempo, as reflexões acerca da personagem de ficção, a tradução do conceito aristotélico de mimesis3 como sendo apenas uma imitação da natureza/realidade foi finalmente superada, uma vez que leituras contemporâneas mais aprofundadas da Poética do teórico grego revelaram sua preocupação com a verossimilhança. 3 O aprofundamento da compreensão do conceito de mimesis como algo além da simples imitação foi proposto, originalmente, por Luiz Costa Lima. O professor e crítico literário maranhense é autor de uma vasta e importante obra sobre o conceito, da qual destacamos Mímesis: desafio ao pensamento (2014) e Mímesis e a reflexão contemporânea (2010)..

(23) 23. interna do texto, para além da visão da “personagem como reflexo da pessoa humana” (BRAIT, 2017, p. 38). Entretanto, até o século XVIII, essa compreensão mais estreita e restrita prevaleceu, servindo de base para a definição de outros conceitos, criados por diferentes pensadores em diferentes épocas. Em A personagem (2017), a professora e crítica Beth Brait cita o poeta latino Horácio como sendo um desses exemplos, pois além de reiterar a concepção aristotélica da semelhança da personagem com o ser humano, ele também adicionou um aspecto moral à essa proposição, criando a definição de personagem como um modelo a ser imitado. Durante a Idade Média, a herança de Aristóteles e Horácio se mantém e a ideia de personagem como fonte de aprimoramento moral ganha força, uma vez que servia perfeitamente aos ideais cristãos, sendo perpetuada nos séculos seguintes. A primeira mudança significativa na compreensão dessa instância narrativa só acontece com o declínio da estética clássica e o desenvolvimento do romance, que, para alguns teóricos4, começa no século XVIII, e alcança seu auge no XIX. Nesse período prevalece uma visão psicologizante da personagem, que passa a ser interpretada como uma projeção das condições psicológicas e sociais do escritor, ou seja, a medida de interpretação continua a ser o homem real (BRAIT, 2017, p. 43-47). O filósofo e historiador literário Georg Lukács (1885-1971) é apontado por Brait como um dos precursores da transformação ocorrida na concepção da narrativa – principalmente do romance e, consequentemente, da personagem – a partir do século XX. Porém, apesar de conseguir se afastar das visões de Aristóteles e Horácio, prevalentes até então, Lukács submete as instâncias narrativas a um certo determinismo social, devido à influência que o marxismo exerce em sua teoria, cuja base da estrutura continua a ser o modelo humano. Outros teóricos também avançam na discussão, como o romancista britânico E. M. Forster (1879-1970) e o poeta e crítico escocês Edwin Muir (1887-1959). Mas é só com o movimento da crítica formalista, a partir de 1916, que a ligação entre personagem ficcional e pessoa humana consegue ser desfeita. Ao ir na contramão dos estudos naturalistas e simbolistas, tentando se afastar das concepções metafísicas e reagir ao materialismo histórico marxista, o formalismo russo contribui decisivamente [...] para que a obra seja encarada como a soma de todos os recursos nela empregados [...] essa nova concepção da obra literária procura na organização intrínseca de seu objeto o material e o procedimento construtivo que conferem à obra seu estatuto de sistema particular (BRAIT, 2017, p. 52). 4 Não existe uma concordância geral acerca do surgimento do romance como gênero textual. Para alguns teóricos, o que o século XVIII marca, na verdade, é o início do romance moderno – fundamentado pela lógica do drama –, mas não do gênero em si. Aguiar (2017a) reflete sobre essa questão em Narrativas e espaços ficcionais: uma introdução (p. 44-58). Ver também Watt (2007)..

(24) 24. Assim, a personagem de ficção passa a ser tratada como um ser de linguagem e deixa de ser vista como um reflexo do ser humano, em geral, ou do escritor, em particular. A partir da década de 1950, essa perspectiva construída pelos formalistas ganha força e passa a ser explorada para além do movimento russo. No mesmo período em que os formalistas construíram sua crítica, por volta de 1920, outro grupo de intelectuais também apresentou reflexões importantes sobre a linguagem, que se afastavam radicalmente da visão formalista. Esse grupo, posteriormente, ficou conhecido como Círculo de Bakhtin, porém, no Ocidente, suas contribuições só ficaram conhecidas a partir da década de 1970, devido a uma série de fatores5. A primeira obra escrita pelo filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin (1895-1975), Para uma filosofia do ato responsável (2017), reflete sobre a incapacidade do conhecimento teórico, quando isolado, fornecer uma compreensão completa da obra de arte. Para ele, a teoria exclui o ato-histórico, único e individual, da realização da criação, e não considera aquilo que a circunda, incluindo a vida real, prática. Por isso, é necessário avaliar não apenas a universalidade, isto é, aquilo que as obras têm de categórico, de genérico – que, portanto, pode ser teorizado –, mas também reconhecer a singularidade, a insubstituibilidade e a unicidade que elas carregam: “Um tal relacionamento recíproco entre pensamento e realidade é muito próximo da verdade” (BAKHTIN, 2017, p. 54), afinal, tudo que existe genericamente – que é abstratamente determinado – apaga a diferença singular, e nenhum sentido é verdadeiramente apreendido se não levar em conta o individual. Ao expor esse problema do teoricismo – a determinação abstrata – e a necessidade de se “reconduzir a teoria em direção [...] ao existir como evento moral, em seu cumprir-se real” (BAKHTIN, 2017, p. 58), Bakhtin analisa a separação existente entre o mundo não-oficial da vida vivida e o mundo oficial da cultura, onde, neste último, a identidade individual é inevitavelmente coletiva e a verdade é composta de “momentos gerais, universais, como algo reiterável e constante” (PONZIO, 2017, p. 17); bem como a urgente necessidade de se ultrapassar essa concepção e considerar também o “mundo da vida vivida”, onde está presente a unicidade do ser e a peculiaridade das relações, pois, para ele, “nenhuma validade de sentido [...] pode ser categórica sem o reconhecimento [...] do singular” (PONZIO, 2017, p. 20). Vale ressaltar, no entanto, que o filósofo não nega a utilidade e a utilização da teoria, mas vê nela. 5. A publicação das obras de Bakhtin não se deu de forma cronológica, além disso, devido a razões políticas, alguns linguistas acreditam que ele tenha publicado textos sob o nome de outros autores que faziam parte do Círculo, para evitar possíveis rejeições – justificadas pelo autor e não pelo conteúdo da obra. No entanto, essa questão não possui ainda uma resposta definitiva (FIORIN, 2016)..

(25) 25. algo de incompleto que, até então, havia sido ignorado: “a abstração é aceitável; inaceitável é transformá-la no mundo como tal” (FARACO, 2017, p. 151) pois assim não será possível “[...] superar a perniciosa separação e a mútua impenetrabilidade entre cultura e vida” (BAKHTIN, 2017, p. 44). A possibilidade de conexão entre esses dois mundos, do real e do pensamento, da vida vivida e da vida oficial cultural-social reside na soma da singularidade irrepetível do existir de cada um com a validade teórica e a factualidade histórica, à qual Bakhtin dá o nome de ato – ação responsável e responsiva –, pois, através dele, a indiferença ao singular transforma-se em uma não-indiferença ao indivíduo – entendido, agora, como único (BAKHTIN, 2017). É nessa configuração de valorização do singular que o “outro” passa a ser uma categoria central do pensamento bakhtiniano e é a partir dele, do outro, que o filósofo russo elabora o conceito de dialogismo. A unicidade do ser e do evento6 – que só existe em relação ao outro –, a consequente relação entre eu/outro oriunda desse posicionamento do singular-subjetivo-individual como algo indispensável e a dimensão axiológica imbricada em “cada eu” e em “cada outro” são os três eixos que formam a base do conceito de dialogismo. Nesse sentido, o dialogismo é apresentado por Bakhtin como uma característica pertencente a todos os signos: “O signo não é somente uma parte da realidade, mas também reflete e refrata uma outra [...]” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 93), podendo ser entendido, dessa forma, como uma interação de vozes sociais e individuais presente em todo e qualquer discurso [obra] e responsável por darlhe sentido. Os membros do Círculo de Bakhtin, apesar de oriundos de diferentes áreas de pesquisa e de trabalharem a partir de fundamentações diversas, encontraram na linguagem seu principal ponto de convergência, uma vez que, concordantemente, a consideram uma expressão da cultura, que surge a partir da interação – sendo essa realizada sempre dentro de um contexto ideológico, permeado de quadros axiológicos. Daí a definição esmiuçada que Valentín Volóchinov (1895-1936), um dos principais nomes do Círculo, faz em Marxismo e filosofia da linguagem7 (2017) do signo como fenômeno do mundo exterior, isto é, “o signo e sua situação social estão fundidos de modo inseparável” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 135). Nesse sentido, 6. Também utilizado por Bakhtin sob o termo “existir-evento”, esse conceito pode ser compreendido como o momento da existência do sujeito, onde o ato se expressa, se desenvolve; definível “pelas categorias da participação real, [...] do efetivo experimentar operativo e participativo da singularidade concreta do mundo” (BAKHTIN, 2017, p.59). 7 Durante décadas, as autorias dos textos produzidos pelo Círculo foram alvo de especulações e dúvidas. Acreditava-se que muitas estavam trocadas, pelas mais diferentes razões – como é o caso da primeira tradução (do francês para o português) de Marxismo e filosofia da linguagem, que chegou ao Brasil em 1979 atribuída a Mikhail Bakhtin. Posteriormente, a tradução direta do original em russo revelou que a autoria pertence, na verdade, a Volóchinov, como a nova edição da Editora 34, aqui utilizada, já apresenta. Cf. PISTORI, 2018, p. 196..

(26) 26. sendo a ideologia um reflexo das estruturas sociais, todo signo possui um caráter ideológico ou, dito de outra forma, tudo que é ideológico é um signo. E, tendo em vista que tudo que é ideológico remete a algo localizado fora de si mesmo, fica evidente que a formação de uma cadeia ininterrupta de signos é a condição constitutiva da linguagem, da consciência individual do homem e da compreensão: “Todo enunciado, por mais significativo e acabado que seja, é apenas um momento da comunicação discursiva ininterrupta” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 219, grifo nosso). É neste sentido que o conceito bakhtiniano de dialogismo – ligado à linguagem que, por sua vez, é engendrada no signo cuja essência se mostra impreterivelmente referencial – consegue dar conta dos processos de interação presentes em toda produção humana, da literatura ao discurso cotidiano. É importante evidenciar, ainda, que, sendo o dialogismo uma característica constitutiva de toda linguagem, sua ocorrência independe da intencionalidade do autor/criador. Estamos sempre, na condição de seres dotados de linguagem, que se comunicam, que buscam significados, fatalmente em contato, participando de um diálogo com outros discursos, uma vez que “a língua, em sua totalidade concreta, viva, em seu uso real, tem a propriedade de ser dialógica. [...] Isso quer dizer que o enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que está presente no seu” (FIORIN, 2016, p. 21-22), ainda que essa presença não seja conscientemente notada, pois as produções humanas não acontecem no vazio, não se realizam na “pureza” do “nada”. Nenhuma obra literária é construída a partir de si mesma: ela não nasce, sozinha, no interior da consciência individual do artista e parte, também sozinha, em direção a apreensão do leitor: “Todo o interior não basta a si mesmo, está voltado para fora, dialogado, cada vivência interior está na fronteira, encontra-se com outra, e nesse encontro tenso está toda a sua essência” (BAKHTIN, 2003, p. 341). Em Questões de literatura e estética (2002), Bakhtin trata, dentre outros pontos, do tema do artista/criador e a “mútua orientação dialógica” das obras-objeto por ele construídas: O artista-prosador edifica este multidiscurso social em volta do objeto até a conclusão da imagem impregnada pela plenitude das ressonâncias dialógicas, artisticamente calculadas em todas as vozes e entonações essenciais desse plurilinguismo (BAKHTIN, 1998, p. 88).. Nesse sentido, a compatibilidade entre Conceição Evaristo e Ponciá Vicêncio não causa espanto, afinal, a palavra é o “fenômeno ideológico par excellence” (BAKHTIN, 2017, p. 319). Assim, ao desenvolver o conceito de dialogismo e, consequentemente, compreender essa mútua.

(27) 27. orientação dialógica dos textos8, Bakhtin e o Círculo resolveram, de certa forma, o paradoxo em torno da personagem narrativa: impossibilitada de ser um espelho do ser humano, ela também não pode ser completamente desvinculada dele. Em A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004, a pesquisadora e crítica literária Regina Dalcastagnè inicia suas reflexões ampliando esta ideia, a partir de uma visão crítica da literatura atual: “O que se coloca hoje não é mais simplesmente o fato de que a literatura fornece determinadas representações da realidade, mas sim que essas representações não são representativas do conjunto das perspectivas sociais” (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 16), ou, em outras palavras: assim como a literatura não é espelho, ela também não é neutra. A partir disso, Dalcastagnè aponta questões importantes e denuncia incoerências graves da literatura, traçando uma investigação profunda sobre a representação de diferentes perspectivas sociais nas obras literárias brasileiras publicadas entre 1990 e 2004 – uma discussão que contribui diretamente para as análises propostas neste trabalho. Considerando as instâncias personagem, narrador, leitor e autor, é possível afirmar que está calcada na própria definição do gênero romance uma certa promessa de pluralidade, a possibilidade de “entender o que é ser o outro” (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 14) e observar intimamente experiências de vida diferentes da sua. Reconhecer-se em uma representação artística, ou reconhecer o outro dentro dela, faz parte de um processo de legitimação de identidades, ainda que elas sejam múltiplas. Daí o estranhamento quando determinados grupos sociais desaparecem dentro de uma expressão artística que se fundaria exatamente na pluralidade de perspectivas (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 14).. A evidente ausência de pobres e negros no universo literário, seja como autores, seja como personagens, motiva a pesquisadora a analisar a produção literária recente, a fim de mostrar, numérica e empiricamente, essa discrepância. Considerando as análises foucaultianas sobre a relação entre poder, discurso e controle, Regina Dalcastagné ressalta a urgência de uma democratização do fazer literário, uma vez em que há uma hierarquia de obstáculos a serem superados, afinal, os grupos marginalizados socialmente não são exceções apenas nas categorias de personagem e autoria: mesmo quando conseguem falar por si e escrever de si, os subalternos ainda precisam encarar o elitismo e o racismo que dominam o campo literário, onde apenas uma forma de expressão é aceita e celebrada: a dos grupos privilegiados. Por isso,. 8 O termo “texto” é empregado aqui como um simples conjunto de significações minimamente organizado, independente da forma como ele se manifesta no plano da expressão..

(28) 28. Dalcastagné traz a diferenciação entre “falar” e “falar com autoridade”, apontada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, onde só a última possui o “reconhecimento social de que o discurso tem valor e, portanto, merece ser ouvido” (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 17). A pesquisadora ressalta, ainda, a importância de se preocupar com essa pluralidade de vozes por dois motivos: o primeiro seria, justamente, cumprir a possibilidade de dar acesso a outras perspectivas e experiências (sociais, históricas, culturais, linguísticas etc.), o que refletiria no espaço público e, o segundo, o enfrentamento da injustiça social no âmbito da cultura, cuja base está no reconhecimento, apoio e divulgação das expressões culturais dos grupos subalternos. Vale ressaltar que a própria exclusão desses grupos dos diversos campos da representação artística compõe um dos elementos que caracterizam a subalternidade – embora alguns setores possuam mais legitimidade que outros, como é o caso do literário. Retomando o paradoxo inicial sobre a personagem, ampliado agora para a literatura como um todo, Dalcastagnè esclarece que sua [...] pesquisa não comunga de nenhuma noção ingênua da mimese literária – que a literatura deve servir como “espelho da realidade”, deve ser o retrato fiel do mundo circundante ou algo semelhante. O problema que se aponta não é o de uma imitação imperfeita do mundo, mas a invisibilização de grupos sociais inteiros e o silenciamento de inúmeras perspectivas sociais. A literatura é um artefato humano e, como todos os outros, participa de jogos de força dentro da sociedade (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 21-22).. Dentre as inúmeras relevantes informações e conclusões que Regina Dalcastagnè nos apresenta a partir dos dados estatísticos que extrai da observação de 2589 romances, publicados por 165 autores diferentes, alguns são mais importantes para nossa análise, por estarem diretamente ligados ao tema de nosso corpus. Destacamos, por exemplo, a esmagadora maioria de autores brancos (93,9%) que compõe o quadro da produção literária brasileira do período observado, bem como a ausência de personagens não-brancas (56,6% dos romances analisados), considerando que, nesse recorte, a maioria das narrativas referenciava-se à realidade brasileira – o que reforça a contradição da falta de representação de determinados grupos, como aponta a pesquisadora. Outros dados dessa pesquisa de Dalcastagnè, apresentados nos próximos subcapítulos, serão relevantes para compreender como a relação colonialismo/escravidão ressoa na sociedade e na literatura brasileira até hoje.. 9 Dalcastagnè apresenta detalhadamente, em seu artigo, a metodologia utilizada para definir as obras analisadas e para realizar a pesquisa como um todo..

(29) 29. Por ora, é interessante que exploremos, ainda que superficialmente, produções acadêmicas prévias a este trabalho que já apresentaram reflexões sobre o tema da representação do empregado doméstico na literatura. A obra da professora e pesquisadora Sônia Roncador é, sem dúvidas, o que temos de mais relevante sobre esse tópico no âmbito nacional. Seu livro A doméstica imaginária, lançado em 2008, apresenta diferentes tipos representacionais da figura da empregada, separados, cronologicamente10, em quatro períodos, desde a abolição da escravatura até o fim do século XX (1889-1999). Antes disso, porém, Roncador chama atenção para uma outra obra, anterior à dela, cujo estudo sobre o empregado doméstico literário no romance inglês coloca a função retórica como elemento sintetizador dessa categoria de personagem. Trata-se de The Servant’s Hand: English Fiction from below (1989), do autor estadunidense Bruce Robbins. Ao imbuir o personagem doméstico de uma função retórica, oposta à realista, Robbins o transforma em “um convite a se trabalhar a questão da representação social, bem como os usos políticos dessa representação” (RONCADOR, 2008, p. 07), daí o espanto da pesquisadora brasileira ao notar que não há, na literatura nacional, um estudo equivalente sobre as funções retóricas da empregada doméstica literária – uma vez que aqui, [...] pela composição genérica, étnica e social de sua categoria – majoritariamente composta por mulheres de baixa renda, negras e mestiças (COSTA, 2007, p. 2), a doméstica foi discursivamente apropriada como signo de alteridade por excelência, servindo como contraponto às senhoras aristocrata e burguesa nos discursos hegemônicos de contestação das transgressões sociais e raciais e de formação das identidades nacional, racial e de gênero (RONCADOR, 2008, p. 8).. A partir dessa constatação, Sônia Roncador busca preencher esse vazio, por meio da recuperação de “um espectro variado e complexo das inclusões literárias dessa categoria social e profissional” (RONCADOR, 2008, p. 8). A pesquisadora identifica a inserção da empregada doméstica na ficção brasileira no período correspondente ao fim do romantismo, quando é possível apontar a presença da mucama – “termo genérico dado a escrava doméstica” (ALENCASTRO, 1997 apud Roncador, 2008, p. 8). Tal período compreende o intervalo entre a abolição da escravatura e o estabelecimento da Belle Époque – cujo fim é marcado pelo estopim da Primeira Guerra Mundial –, quando “as narrativas de conduta dirigidas a um público feminino burguês” (RONCADOR, 2008, p. 9) imperam. Assim, fica evidente a ligação da 10 A cronologia a que nos referimos aqui diz respeito ao elemento diferenciador das quatro categorias identificadas pela pesquisadora, que não equivale, necessariamente, a trajetória desta categoria profissional no país. Cf. RONCADOR, 2008, p. 8..

(30) 30. profissão do empregado doméstico com a escravidão, uma vez que ela surge como a opção possível dentro das novas regras de um país “livre”. A maneira como essa figura é retratada nesses textos também carrega muitas evidências de sua conexão com o sistema escravista. Ao analisar a obra da escritora carioca Julia Lopes de Almeida (1862-1934), Roncador constata que a empregada, nesse período, era apresentada como um signo de contaminação: como se ela fosse portadora de doenças contagiosas e/ou vícios morais e representasse uma ameaça real à família burguesa. Esse discurso médico-higienista era uma clara continuação das políticas eugenistas do período escravocrata, além de ter servido também ao projeto modernizador que objetivava impor à dona de casa “uma rotina de trabalho hiper-racionalizada, no controle higiênico do ambiente físico da casa, na ênfase à missão maternal educadora, ou civilizadora” (RONCADOR, 2008, p. 10). Julia Lopes de Almeida apostou no medo e na histeria burguesa para conquistar seu público leitor: reforçando as ideias absurdas de risco de contágio e de inidoneidade dos serviçais, suas narrativas engendram o ideal burguês da mulher do lar. “Adicionalmente, [...] ela [Júlia Almeida] se alia à campanha contra o emprego da amade-leite e, em segunda instância, das lavadeiras – ambas residentes nos espaços ‘contaminados’ dos cortiços” (RONCADOR, 2008, p. 11), que abrigavam uma parte considerável da população negra deixada ao relento após 1888, como mostrou Aluísio de Azevedo (1857-1913) com a personagem Bertoleza e sua triste trajetória de escrava fugida à suicida em O cortiço (1890). No primeiro capítulo de A doméstica imaginária, Sônia Roncador dedica-se a analisar os manuais domésticos, folhetins, narrativas literárias de conduta etc. escritos por Julia Lopes de Almeida e alguns outros autores, onde constata, baseada também no trabalho da historiadora Sandra Lauderdale Graham – House and Street: The Domestic World of Servants and Masters in Nineteenth-Century Rio de Janeiro (1988) – que “com o fim da escravidão, rompe-se em vários lares brasileiros o pacto ‘proteção-obediência’ que caracterizara a relação entre amos e escravos” (RONCADOR, 2008, p. 17) até ali e inaugura-se um discurso preconceituoso e racista que prega a incompetência, o desleixo, a sujeira e o perigo “‘próprios’ dessa categoria” (RONCADOR, 2008, p. 18) dos serviçais. Muitos autores, segundo Roncador, consideram que a literatura de Julia Lopes de Almeida fazia parte do processo de modernização do Brasil, que [...] consistia em cultivar, por meio do texto literário, novos hábitos e valores em uma sociedade até então marcada pelo arcaísmo da monarquia e a brutalidade da escravidão, pelo paternalismo nas relações sociais, pela debilidade de certas instituições modernas (escolas, hospitais), pela “promiscuidade” das relações inter-raciais, por doenças epidêmicas (RONCADOR, 2008, p. 20)..

(31) 31. A construção do ideal da mulher doméstica11, apoiada por textos como os de Julia Almeida, que, ao mesmo tempo, demonizam a figura da empregada, é, de certa forma, interrompida pelo contexto da Primeira Guerra (1914-1918). E a partir dos anos 1920, começa uma nova fase na representação dessa categoria de personagem, segundo a análise de Roncador. O discurso socioantropológico, que tem na figura de Gilberto Freyre um de seus principais nomes, toma o lugar do pensamento eugenista que predominou durante a Belle Époque. Recupera-se, da literatura oitocentista pré-abolicionista, os “mitos patriarcais da fiel mãe-preta e da cordial e sedutora mulata (normalmente uma doméstica)” (RONCADOR, 2008, p. 11), que haviam desaparecido das produções culturais pós-abolicionistas. Analisando as memórias de infância modernistas de José Lins do Rego (principalmente as memórias ficcionais) e de Carlos Drummond de Andrade (em particular os poemas autobiográficos), e colocando ambos em diálogo com o pensamento de Gilberto Freyre, a pesquisadora brasileira conclui que essas memórias “revelam a um só tempo o gesto modernista de valorização das culturas afrobrasileiras e as contradições inerentes a esse gesto – um gesto de “legitimação” mas não necessariamente de “mobilização” dessas culturas (BORGES, 1995, p. 71 apud RONCADOR, 2008, p. 12): Por certo, a evocação nostálgica dos habitantes dos fundos da casa patriarcal, mediada pela ideologia da transculturação e de uma falsa retórica de parentesco, revela um mecanismo, recorrente no modernismo, de conversão do outro (social, racial) em objeto desejável e de fácil consumo. Em outras palavras, o outro evocado, celebrado, é confortavelmente consumido por adquirir uma dimensão que é muito mais mitológica do que histórica. [...] Contudo, esses relatos autobiográficos não lograram superar os estereótipos negativos associados às mulheres negras e mulatas, ou seja, sua tendência “natural” ao servilismo (mãe-preta) e à sexualidade (mucama mulata) (RONCADOR, 2008, p. 12).. O retorno da figura da ama-de-leite nas famílias burguesas a partir da década de 1920, representada nos textos memoriais dos escritores da época, movidos pelo sentimento nostálgico de uma aristocracia perdida, é o grande símbolo da suposta confraternização entre raças e da celebração da mestiçagem em voga no período. No entanto, a evocação das amas, das jovens mucamas, dos moleques no memorialismo em prosa ou verso não passa de uma falsa promessa, gesto meramente aparente de aproximação ao universo das domésticas [...] que permanece 11 Roncador elucida que, embora essa construção possa parecer bastante conservadora aos olhos de leitores contemporâneos, não se pode desconsiderar o contexto patriarcal da realidade que a autora estava inserida. Cf. RONCADOR, 2008, p. 22..

(32) 32. excluída do discurso literário das primeiras décadas do século XX (RONCADOR, 2008, p. 79).. Nesta segunda fase representacional da doméstica literária, identificada por Sônia Roncador, já surgem questões relacionadas a um importante conflito que os Estudos Subalternos colocarão em evidência: a tênue relação entre falar do outro e falar pelo outro – mantendo-o fora do debate. A discussão sobre esse conflito está esmiuçada no subcapítulo 1.2. No terceiro período observado por Roncador, duas representações diferentes da doméstica literária são apresentadas, a partir da análise de textos que Clarice Lispector escreveu exercendo seu ofício de jornalista. A primeira representação encontra-se nas colunas de páginas femininas escritas por Lispector durante a década de 1950 (1952; 1959-1961). Nesta fase, os conflitos e dificuldades da relação patroa-empregada são “justificados” pelos defeitos de personalidade e pelos serviços mal executados da empregada: Correspondendo às expectativas da imprensa feminina do pós-guerra, e escudada por diferentes pseudônimos, Lispector se utiliza dos estereótipos da doméstica dispendiosa, ineficiente, preguiçosa, perigosa, vulgar e fisicamente degradada pelo serviço braçal, para revalidar o “culto à domesticidade”, assim como o cultivo (moderado, quer dizer, feminino) da moda e da beleza (RONCADOR, 2008, p. 139).. Ao contrapor o cultivo da beleza e o serviço doméstico, onde um impossibilitaria a concretização do outro, a imprensa feminina atuava para manter um “estado conservador das coisas”, uma vez que a modernização dos costumes poderia incitar transgressões de gênero, de raça e de classe. Já na segunda fase, nas crônicas semanais escritas para o Jornal do Brasil (1967-1973), Clarice associa os conflitos da relação patroa-empregada à condição servil da doméstica – o que revela uma realidade de culpas e constrangimentos para os patrões. Apesar desse “avanço”, porém, as crônicas também trazem estratégias de diminuição dessas diferenças – e, consequentemente, de redução dessas culpas –, que circunscrevem as empregadas domésticas a alguns tipos (a cômica, a criativa, a inconsciente etc.), isto é, ao mesmo tempo em que liberta as empregadas de alguns estereótipos negativos, a escritora brasileira “fixa suas domésticas em uma nova taxionomia de personalidades e manias”, sem nunca “alterar a condição de humilhação delas” (RONCADOR, 2008, p. 14). Por fim, o último período identificado e analisado por Sônia Roncador diz respeito a literatura de testemunho das empregadas domésticas, que começa a ser publicada a partir de 1980. Esses testemunhos desafiavam os discursos que, até ali, haviam se “auto instituído seus.

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