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Sumário. Tribunal da Relação de Guimarães Processo nº 876/18.5T8EPS.G1

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Tribunal da Relação de Guimarães Processo nº 876/18.5T8EPS.G1 Relator: ANTÓNIO BARROCA PENHA Sessão: 18 Março 2021

Número: RG

Votação: UNANIMIDADE Meio Processual: APELAÇÃO Decisão: IMPROCEDENTE

RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRA CONTRATUAL

LEI DE BASES GERAIS DA CAÇA DEVER DE VIGILÂNCIA

ÓNUS DA PROVA

Sumário

Sumário (art. 663º, n.º 7, do C. P. Civil):

I- O art. 114º, n.º 1, do D.L. n.º 202/2004, de 18.08 (que regulamenta a Lei de Bases Gerais da Caça – Lei n.º 173/99, de 21.09), trata-se de uma norma especial, que apenas responsabiliza civilmente as entidades titulares ou

concessionárias de zona de caça pelos danos causados nos terrenos da mesma zona de caça e terrenos vizinhos, que sejam diretamente decorrentes da sua atividade, assim se afastando da responsabilidade (presumida) prevista no n.º 1 do art. 493º, do C. Civil, para as entidades encarregues de vigilância de coisa móvel ou imóvel ou de animal, pelos danos causados pela coisa ou animal.

II- Sendo assim, esta mesma norma especial (art. 114º, n.º 1, do D.L. n.º 202/2004, de 18.08) não opera a inversão do ónus da prova do nexo de causalidade, pelo que sempre competirá ao lesado alegar e provar que os danos sofridos nos seus terrenos foram, direta e necessariamente, causados pela atividade desenvolvida pela ré enquanto concessionária da zona de caça associativa em causa, designadamente por haver iniciado ou incrementado a criação ou povoamento de espécies cinegéticas na zona, causadoras desses mesmos danos.

(2)

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. RELATÓRIO

M. J. propôs a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra Associação de Caça e Pesca ..., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia global de € 5.099,00, acrescida dos juros de mora,

contados à correspondente taxa legal, até efetivo e integral pagamento.

Alega, para tanto e em resumo, que se dedica à agricultura e venda de produtos agrícolas, cultivando três prédios rústicos, que integram a área perimetral da zona de caça associativa de ..., a qual é gerida pela ré. Sucede que a ré iniciou o povoamento da referida zona com coelho bravo, que, tendo- se reproduzido massivamente, começou a invadir e destruir as suas

sementeiras e plantações, o que lhe causou danos patrimoniais no montante peticionado.

A ré apresentou contestação, impugnando o alegado pela autora quanto ao alegado povoamento da referida zona com coelho bravo, impugnando ainda os danos reclamados. Mais alega que tem vindo a levar a cabo ações de correção de densidade da espécie de coelho bravo e que a propagação dos coelhos bravos se fica a dever à sua facilidade de reprodução e ao crescente abandono de terras cultiváveis e à falta de limpeza das florestas e das matas pelos

respetivos proprietários, bem como à ausência e/ou inadequação das vedações existentes nos campos cultivados.

Por despacho proferido em 10.04.2019 (cfr. fls. 52 e verso), foi ordenada a apensação aos presentes autos da ação que correu termos sob o n.º

880/18.3T8EPS, e que agora corre como apenso A, a qual M. E. propôs ação declarativa comum contra Associação de Caça e Pesca ..., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia global de € 2.382,90, acrescida dos juros de mora, contados à correspondente taxa legal, até efetivo e integral

pagamento.

Alega, para tanto e em resumo, que se dedica à agricultura e venda de produtos agrícolas, cultivando dois prédios rústicos que integram a área

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perimetral da zona de caça associativa de ..., a qual é gerida pela ré; sendo que esta iniciou o povoamento da referida zona com coelho bravo, que, tendo- se reproduzido massivamente, começou a invadir e destruir as suas

sementeiras e plantações, o que lhe causou danos no montante peticionado.

A ré veio apresentar contestação, impugnando o alegado pela autora quanto ao povoamento da referida zona com coelho bravo, impugnando ainda os danos reclamados. Mais alega que tem vindo a levar a cabo ações de correção de densidade da espécie de coelho bravo e que a propagação dos coelhos bravos se fica a dever à sua facilidade de reprodução e ao crescente abandono de terras cultiváveis e à falta de limpeza das florestas e das matas pelos

respetivos proprietários, bem como à ausência e/ou inadequação das vedações existentes nos campos cultivados.

Foi dispensada a realização da audiência prévia e proferido despacho

saneador em ambos os processos, tendo-se designado de imediato data para a realização da audiência final.

Procedeu-se à realização da audiência final.

No decurso da mesma, na sessão de 24.06.2020, foi proferido despacho a indeferir a inquirição da testemunha L. C., requerida pelas autoras (cfr. fls.

125 e 126).

Na sequência, por sentença de 30 de Julho de 2020, veio a julgar-se ambas as ações totalmente improcedentes, por não provadas, e, em consequência, foi a ré absolvida dos pedidos.

Inconformada com o assim decidido, veio a autora M. J. interpor recurso de apelação, nele formulando as seguintes

CONCLUSÕES

1. A sessão da audiência de julgamento, realizada no passado dia 24 de Junho de 2020, destinava-se ainda á produção de prova testemunhal.

2. Nesse dia, e à hora designada, a testemunha L. C., arrolada pela Autora, ora Recorrida, encontrava-se presente no Tribunal.

3. A sua inquirição é legítima e processualmente admissível.

4. O douto despacho recorrido que indeferiu a inquirição da testemunha L. C., é destituído de fundamento legal.

5. Tendo violado o disposto nos artigos 604°, n.º 3, alínea d), e, 508°, n.º 5° do

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C.P.C.

6. A douta sentença enferma de erro na apreciação da prova produzida,

designadamente da prova testemunhal (M. M. - jornaleira da Autora, E. V. e G.

B. - agricultoras e vizinhas da Autora nos campos cultivados), e das

declarações de parte da Autora, ora Recorrida (os quais foram integralmente transcritos).

7. A Autora, ora Recorrente, dedica-se ao cultivo e comercialização de

produtos agrícolas em feiras semanais e mercados, fazendo disso profissão.

8. Da análise crítica dos elementos de prova supra identificados, conjugados com as regras da experiência comum, impõe-se aditar aos factos considerados provados a seguinte factualidade:

"O coelho bravo, espécie cinegética, existente na zona de caça

associativa de ..., concelho de Esposende, reproduziu-se de tal forma que começou a invadir sistematicamente e a destruir constantemente as sementeiras e plantações de natureza hortícola nos terrenos que integram a referida zona de caça a poente da estrada nacional 13 em ..., concelho de Esposende."

"Em consequência da factualidade supra descrita, a Autora, ora

Recorrente, desde Junho de 2017 a Agosto de 2018, sofreu prejuízos de 5.099,00€ correspondente ao valor do couvão, cebolo, pés de penca, cenoura, couve coração, couve lombarda, couve galega, couve nabiça, pés de brócolos e batata que a mesma havia semeado/plantado nos prédios rústicos referidos em 2 (dos factos provados), e que foram destruídos pelos coelhos bravos."

9. Nos presentes autos, as declarações de parte da Autora, ora Recorrente, revestem-se de uma relevância crucial, e devem merecer uma atenção e valorização especial do Tribunal, na medida em que comprovam factos que, pela sua natureza estritamente doméstica e pessoal, do foro privado, só por este meio de prova se demonstram, e consequentemente se logram provar.

10. A Ré, ora Recorrida, é a entidade gestora da zona de caça associativa de ..., concelho de Esposende.

11. No exercício da sua atividade está incluída a gestão e a exploração dos recursos/espécies cinegéticas aí existentes.

12. A Ré, ora Recorrida, está, também, obrigada à gestão sustentada dos mencionados recursos cinegéticos, nos termos dos artigos 6°, 7° e 8° do D.L.

202/2004, de 18 de Agosto.

13. Gerir, administrar, explorar implica exercer direitos e cumprir deveres e obrigações.

14. De forma que, impende sobre a Ré, ora Recorrida, o dever especial de vigilância e cuidado sobre todas as espécies cinegéticas existentes na área

(5)

perimetral da zona de caça associativa de ..., que se encontra sob a sua gestão e administração, designadamente o coelho bravo.

15. Para que não causem danos/prejuízos aos proprietários dos terrenos agrícolas que integram a área perimetral da zona de caça associativa de ..., concelho de Esposende.

16. Os danos e os prejuízos sofridos pela Autora, ora Recorrente, foram causados pelo coelho bravo e em prédios rústicos que integram a área perimetral da referida zona de caça associativa de ....

17. O coelho bravo é uma das espécies cinegéticas exploradas pela Ré, anormalmente abundante, na área perimetral da zona sob a gestão e administração da Ré, ora Recorrida.

18. A Ré, ora Recorrida, não cumpriu, com o cuidado e diligência devida, os deveres de vigilância a que está obrigada, enquanto entidade responsável pela gestão e exploração de recursos cinegéticos que integram a área perimetral que constitui a zona de caça associativa de ..., concelho de Esposende.

19. Pelo que, é da exclusiva responsabilidade da Ré, ora Recorrida, indemnizar a Autora, no montante de € 5.099,00, pelos danos e prejuízos sofridos e

provocados pelo coelho bravo, nos termos legais.

20. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 6°, 7°, 8° e 114°, n.º 1, do D.L. 202/2004, de 18 de Agosto, e 493°, nº 1° do Código Civil.

*

A ré não apresentou contra-alegações.

*

Por despacho proferido pelo ora relator, a 08.02.2021 (cfr. ref.ª citius 7365063), foi a autora recorrente notificada para se pronunciar sobre a tempestividade do recurso de apelação em causa no que se refere à decisão interlocutória proferida em sessão de audiência de julgamento, realizada a 24.06.2020, referente à rejeição de prova testemunhal requerida pelas autoras.

*

Após os vistos legais, cumpre decidir.

*

II. DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2 e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.

663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil).

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No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objeto dos recursos interpostos.

Neste âmbito, as questões decidendas traduzem-se nas seguintes:

- Como questão prévia, saber se é admissível o recurso interposto da decisão interlocutória, proferida a 24.06.2020, que indeferiu a inquirição de uma testemunha, requerida pelas autoras.

- Saber se cumpre proceder à alteração da factualidade dada como provada e não provada pelo tribunal a quo nos moldes preconizados pela recorrente.

- Na sequência, saber se deverá ser realizada outra nova interpretação e aplicação do Direito à nova factualidade apurada, devendo ser alterada a decisão de mérito proferida.

*

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

FACTOS PROVADOS

O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1. As autoras dedicam-se ao cultivo e comercialização de produtos agrícolas em feiras semanais e mercados, fazendo disso profissão;

2. A autora M. J. cultiva os seguintes prédios rústicos sitos na freguesia de ..., concelho de Esposende:

a. Prédio rústico de cultura de regadio, localizado no sítio do ..., com a área de 1700 m2, que confronta de norte com J. G., de sul com M. E., de nascente com caminho, de poente com E. L., inscrito na matriz rústica sob o artigo … da união de freguesias de ... e …;

b. Prédio rústico de cultura de regadio, localizado no sítio …, com a área de 2150 m2, que confronta de norte com L. M., de sul com J. R., de nascente com E. L., de poente com herdeiros de M. M., inscrito na matriz rústica sob o

artigo … da união de freguesias de ... e ..;

c. Prédio rústico de cultura de regadio, localizado no sítio do ..., com a área de 2050 m2, que confronta de norte e de sul com caminho, de nascente com M.

B., de poente com G. A., inscrito na matriz rústica sob o artigo … da união de freguesias de ... e …;

3. A autora M. E. cultiva os seguintes prédios rústicos sitos na freguesia de ..., concelho de Esposende:

a. Prédio rústico de cultura de regadio, localizado no sítio A do ..., com a área

(7)

de 1627 m2, que confronta de norte com M. R., de sul e de nascente com caminho, de poente com M. M., inscrito na matriz rústica sob o artigo … da união de freguesias de ... e …;

b. Prédio rústico de cultura de regadio, localizado no sítio do ..., com a área de 1133 m2, que confronta de norte e de nascente com caminho, de sul com M.

P., de poente com A. G., inscrito na matriz rústica sob o artigo … da união de freguesias de ... e …;

4. A autora M. J. cultiva os prédios referidos em 2. há mais de 10 anos, neles semeando e plantando couvão, couve galega, couve lombarda, couve coração, brócolos, penca, cebolo, cenoura e batatas, colhendo os respetivos frutos;

5. A autora M. E. cultiva os prédios referidos em 3. há mais de 10 anos, neles semeando e plantando couvão, couve coração, cebolo e cenoura, colhendo os respetivos frutos;

6. Os prédios referidos em 2. e 3. integram a área perimetral da zona de caça associativa de ...;

7. A ré é a entidade gestora da zona de caça associativa de ..., por a mesma lhe ter sido concessionada, através do Processo nº 6610-ICNF, por um período de 12 anos, renovável automaticamente por dois períodos iguais;

8. Desde, pelo menos, o ano de 2017, as autoras e outros agricultores da zona de caça associativa de ... têm visto as suas culturas destruídas pelos coelhos bravos;

9. Na sequência de reclamações dos agricultores da zona de caça associativa de ..., a ré solicitou ao ICNF e este autorizou, no período compreendido entre março de 2017 e julho de 2018, quatro pedidos de correção de densidade, com captura de coelhos bravos, no interior da referida zona de caça; nessa

sequência, a ré comunicou ao ICNF a captura e trasfega de coelhos bravos.

*

FACTOS NÃO PROVADOS

Por seu turno, o tribunal a quo considerou que: “Não se provaram quaisquer outros factos dos alegados quer na petição inicial quer na contestação com interesse para a decisão da causa, designadamente que:

a) A ré tenha iniciado o povoamento da zona de caça associativa de ... com espécies cinegéticas, designadamente coelho bravo;

b) O coelho bravo com que a ré povoou a referida zona de caça reproduziu-se de tal forma que começou a invadir e destruir as sementeiras e plantações de natureza hortícola nos terrenos agrícolas que integram a referida zona;

c) Em consequência do descrito em a) e b), a autora M. J., desde junho de 2017 e novembro de 2018, sofreu um prejuízo de € 5.099,00, correspondente

(8)

ao valor do couvão, cebolo, pés de penca, cenoura, couve coração, couve

lombarda, couve galega, couve nabiça, pés de brócolos e batatas que a mesma havia semeado/plantado nos prédios referidos em 2. e que foram destruídos pelos coelhos bravos;

d) Em consequência do descrito em a) e b), a autora M. E., desde setembro de 2017 e novembro de 2018, sofreu um prejuízo de € 2.382,90, correspondente ao valor do couvão, cebolo, pés de penca, cenoura, couve coração e couve lombarda, que a mesma havia semeado/plantado nos prédios referidos em 3. e que foram destruídos pelos coelhos bravos.

*

*

IV) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A) Questão prévia – admissibilidade do recurso de apelação no que se refere à decisão interlocutória proferida, a 24.06.2020, que indeferiu a produção de prova testemunhal requerida pelas autoras.

No âmbito do presente recurso de apelação, para além da decisão final proferida a 30.07.2020, a autora recorrente veio ainda interpor recurso da decisão interlocutória proferida em sessão de audiência de julgamento, realizada a 24.06.2020, nos termos da qual o tribunal a quo indeferiu a inquirição da testemunha L. C., arrolada pela autora recorrente.

Defende a recorrente que a sua inquirição é legítima e processualmente admissível, sendo que tal despacho recorrido, que indeferiu a inquirição da mesma testemunha, é destituído de fundamento legal.

A recorrente foi ouvida sobre a possibilidade de o recurso de apelação

interposto neste âmbito ser inadmissível, porque extemporâneo (art. 655º, n.º 1, do C. P. Civil).

Aqui chegados, dúvidas não nos podem suscitar que o despacho recorrido (de indeferimento da inquirição da testemunha arrolada pela autora recorrente) trata-se de uma decisão que rejeita um meio de prova (neste caso prova testemunhal), independentemente de tal testemunha arrolada pela autora recorrente já ter sido tabelarmente admitida anteriormente.

Na realidade, verifica-se que na sessão de audiência de julgamento foi

requerida a inquirição da indicada testemunha, o que não veio a ser admitido pelo tribunal a quo.

Sentindo-se prejudicada por tal decisão de rejeição de meio de prova

(inquirição da testemunha L. C.), mormente porque já antes o tribunal a havia admitido, competia à autora recorrente interpor recurso de apelação

(9)

autónomo, no prazo de 15 dias, a contar da data da notificação de tal decisão (arts. 638º, n.º 1, 2ª parte e 644º, n.º 2, al. d), do C. P. Civil).

Nesta medida, tendo em atenção que a autora recorrente foi notificada da referida decisão interlocutória na sessão de audiência de julgamento realizada em 24.06.2020 e o recurso de apelação em presença apenas foi interposto 12.10.2020, forçoso é concluir, sem necessidade de maiores delongas, que o recurso de apelação incidente sobre a referida decisão interlocutória se deverá considerar extemporâneo e, como tal, deverá ser rejeitado neste âmbito.

*

*

B) Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

A questão que importa agora dirimir, em função das conclusões do recurso apresentadas pela recorrente, refere-se à impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da decisão recorrida.

Ora, a possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está, como é consabido, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjetiva impõe ao recorrente.

Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com, toda a precisão, dos concretos pontos da

decisão que pretende questionar, os meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objeto da impugnação (1), sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera

manifestação de inconsequente inconformismo”. (2)

Neste sentido, preceitua, sob a epígrafe «Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto», dispõe o n.º 1 do art. 640º do C. P. Civil, que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou

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gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

Deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com precisão os concretos pontos da decisão que pretende

questionar, motivar ainda o seu recurso através da indicação meios

probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados

diversa da que foi proferida sobre a matéria de facto.

Os aspetos fundamentais que o recorrente deve assegurar neste particular prendem-se, pois, com a definição clara do objeto da impugnação (clara enunciação dos pontos de facto em causa); com a seriedade da impugnação (meios de prova indicados ou meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido (indicação da decisão da matéria de facto diversa da decisão recorrida).

Porém, importa que não se sobrevalorizem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a

reapreciação da decisão da matéria de facto com a invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.

Assim, como salienta Abrantes Geraldes (3), o Supremo Tribunal de Justiça “ vem batalhando precisamente no sentido de evitar os efeitos de um excessivo formalismo que ainda marca alguns acórdãos das Relações, promovendo que o esforço que é aplicável na justificação de soluções que exponenciam aspectos de natureza meramente formal sem suficiente tradução na letra da lei, nem no espírito do sistema, seja canalizado para a efectiva apreciação das

impugnações de matéria de facto.” (4)

Por outro lado, na fase da admissão formal do recurso de apelação em que é impugnada a decisão da matéria de facto, importa que se estabeleça uma clara separação entre os requisitos formais e os ligados ao mérito ou demérito da pretensão que será avaliado em momento posterior.

Deste modo, havendo “sérios motivos para a rejeição do recurso sobre a matéria de facto (maxime quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto, quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos

segmentos afectados, não colidindo com a admissibilidade do recurso quanto aos demais aspectos. (5)

(11)

Tendo, assim, presente este enquadramento legal, cumpre decidir.

No caso em apreço, a recorrente, cumprindo, muito deficientemente (como infra iremos considerar), os apontados requisitos formais, pretende a

alteração da decisão recorrida que incidiu sobre a matéria de facto, de modo que que se acrescente à factualidade dada como provada, determinada

facticidade, mais concretamente, que:

"O coelho bravo, espécie cinegética, existente na zona de caça

associativa de ..., concelho de Esposende, reproduziu-se de tal forma que começou a invadir sistematicamente e a destruir constantemente as sementeiras e plantações de natureza hortícola nos terrenos que integram a referida zona de caça a poente da estrada nacional 13 em ..., concelho de Esposende."

"Em consequência da factualidade supra descrita, a Autora, ora

Recorrente, desde Junho de 2017 a Agosto de 2018, sofreu prejuízos de 5.099,00€ correspondente ao valor do couvão, cebolo, pés de penca, cenoura, couve coração, couve lombarda, couve galega, couve nabiça, pés de brócolos e batata que a mesma havia semeado/plantado nos prédios rústicos referidos em 2 (dos factos provados), e que foram destruídos pelos coelhos bravos."

Como se depreende com facilidade, tal factualidade foi julgada como não provada pelo tribunal recorrido (cfr. als. a), b) e c)), pelo que se conclui que, na procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto

apresentada pela recorrente, tal facticidade deverá deixar de fazer parte dos factos não provados.

A recorrente defende, no essencial, que o tribunal a quo não cuidou de valorar convenientemente as suas próprias declarações de parte, assim como os

depoimentos das testemunhas M. M., E. V. e G. B., concluindo pela demonstração da referida factualidade ora objeto de impugnação.

Tendo presente, assim, a fundamentação convocada pelo tribunal recorrido e a impugnação deduzida pelo recorrente, importa saber se, procedendo este tribunal superior à reanálise dos meios probatórios convocados, a sua própria e autónoma convicção é coincidente ou não com a convicção evidenciada, em sede de fundamentação, pelo tribunal recorrido e, por inerência, se se impõe uma decisão de facto diversa da proferida por este último, nos concretos

(12)

pontos de facto postos em crise.

Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar de forma crítica as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, sujeito às mesmas regras de direito probatório a que se encontrava sujeito o tribunal recorrido, sem

prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos, incluindo, naturalmente, os que

tenham servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária

segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

O tribunal a quo, na sua motivação da decisão que incidiu sobre a matéria de facto dada como não provada, salientou o seguinte (que aqui se transcreve na íntegra):

“Quanto aos factos não provados, há que explanar o seguinte.

Dos vários depoimentos testemunhais e declarações de parte prestados em audiência - exaustivos, quer na duração, quer na descrição da matéria que está na origem do conflito das partes – não resultou, de forma consistente, que o aparecimento de mais coelhos que destruíam as culturas dos agricultores daquela zona de caça de ... se deu com o início da atividade da ré enquanto entidade gestora da referida zona de caça.

Com efeito, foram múltiplas as referências à existência de coelhos na zona, umas no sentido de que sempre existiram e até já houve muitos mais antes de existir a ré – referência esta feita, em uníssono, pelas testemunhas arroladas pela ré, e pela testemunha das autoras E. V. –, e outras no sentido de que houve um aumento de coelhos a partir da existência da ré, isto porque se ouvia dizer que os membros da ré largavam coelhos – esta referência foi feita, em uníssono, pelas testemunhas das autora, com exceção da referida E. V..

Saliente-se, contudo, que estas referências – num sentido e noutro – foram todas feitas pelas testemunhas das partes que – diga-se – não foram capazes de manter o distanciamento necessário à causa ou à parte, preocupando-se em veicular a informação que mais lhes convinha, denotando envolvimento no conflito da freguesia causado pela destruição dos coelhos (note-se, a este respeito, a referência espontânea da testemunha E. V. “por causa de meia dúzia de coelhos não vou ficar de mal com a freguesia, metade são

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caçadores”).

Nenhuma das testemunhas afirmou ter presenciado a largada de coelhos por parte de membros da ré. Quanto a tal, apenas a autora M. E. referiu ter assistido a uma situação em que uma carrinha cinzenta, em que seguiam membros da ré, arrancou, tendo ficado coelhos no caminho. Não obstante, atento o seu interesse evidente no desfecho da causa, as suas declarações de parte não podem ditar, por si só e sem corroboração de outro meio de prova, o convencimento do tribunal quanto ao facto de a ré ter feito o povoamento do coelho bravo na zona.

Perante a dúvida imposta na matéria, o tribunal determinou ainda,

oficiosamente, a inquirição da testemunha M. F., por ter sido referido em audiência que o mesmo teria vendido a membros da ré coelhos bravos para fazer o povoamento da zona. Deste depoimento, que se mostrou objetivo, resultou a negação de tal venda ou entrega.

Em face do exposto, das referências, múltiplas e contraditórias, não isentas e insustentadas, feitas à matéria contida no facto a), soçobrando ao tribunal a dúvida sobre a ocorrência do aí descrito, o tribunal resolveu tal dúvida contra as autoras, por ser facto que lhes aproveita, em cumprimento do disposto no artigo 414º, do C.P.C. Assim, deu tal facto como não provado.

A não prova do facto a) acarreta a não prova dos factos b) a d), porquanto aquele era pressuposto destes.

Refira-se, finalmente, que, pese embora as autoras tenham logrado a prova de que os coelhos bravos destruíram as suas culturas (facto provado 8.), a exata dimensão e expressão pecuniária de tal destruição, conforme o descrito nos factos c) e d), não foi relatada em audiência de forma coerente, objetiva e concludente, por nenhuma das autoras e testemunhas por estas arroladas (o que se afigura natural atendendo à matéria em causa). Daí que o tribunal não se tenha convencido dos valores referidos.”

Como é fácil de ver, a exposição dos motivos que levaram o tribunal a quo a decidir pela não verificação da factualidade que resultou não provada é completa, seguindo sempre um raciocínio consistente e estruturado.

Segundo aqueles princípios de imediação, oralidade e livre apreciação da prova, o tribunal a quo retirou a conclusão que não foi feita prova

suficientemente coerente e sustentada, mormente prova testemunhal, tendente a demonstrar a factualidade dada como não assente,

designadamente dando conta que não foi possível estabelecer, de forma segura e objetiva, qualquer nexo de causalidade entre a existência (ou

aumento da existência) de coelhos bravos na zona de caça em causa e o início da atividade da ré, enquanto gestora da referida zona de caça.

(14)

Salientou, neste conspecto, a subjetividade inerente aos depoimentos das testemunhas arroladas pelas autoras, dando conta da sua parcialidade, no que se refere à adesão subjetiva à versão dos factos apresentada pelas autoras.

Realce-se ainda que o tribunal a quo cuidou de determinar a inquirição oficiosa de M. F., porque apontado como vendedor de coelhos bravos à ré, o que, não obstante, foi perentoriamente negado por este.

Perante os depoimentos antagónicos das testemunhas arroladas pelas autoras (com exceção da testemunha E. V.) e das testemunhas apresentadas pela ré, e dúvidas insanáveis daí advenientes, no que se refere à factualidade da al. a) (e consequentemente das als. b) a d)) dos factos não provados, o tribunal

recorrido acabou por concluir pela não verificação dessa mesma factualidade, tal como manda o disposto no art. 414º, do C. P. Civil.

No que se refere à demonstração aos danos sofridos pela autora recorrente, a mesma só foi sustentada na prova resultante das próprias declarações de parte da recorrente, o que não se revelou suficiente, tendo em atenção que não foi minimamente acompanhada por outros meios de prova.

A própria recorrente limita-se a salientar, neste particular, que as declarações de parte da autora recorrente “revestem-se de uma relevância crucial e devem merecer uma atenção e valorização especial do Tribunal, na medida em que comprovam factos que, pela sua natureza estritamente doméstica e pessoal, do foro privado, só por este meio de prova se demonstram, e

consequentemente se logram provar.”

Não obstante, não podemos deixar de ter presente que, no que se refere às declarações de parte, é entendimento maioritário da doutrina e da

jurisprudência, segundo o qual o depoimento de parte e as declarações de parte em que não exista confissão, embora fiquem sujeitas à livre apreciação do julgador (art. 466º, n.º 3, do C. P. Civil), nunca servem, por si só, para

fundamentar que se dê como provada a tese factual sustentada pelo depoente/

declarante em sede de depoimento de parte ou declarações de parte em benefício próprio, tendo antes de ser corroboradas por outros elementos de prova. (6)

Sem que nos possamos olvidar que existe uma outra corrente doutrinal e jurisprudencial mais recente, que sustenta que o depoimento e as declarações de parte, sem valor confessório, podem valer à luz do princípio da livre

convicção do tribunal, em benefício do próprio declarante, ainda que desacompanhados de outros elementos de prova que as corroborem, tudo dependendo do modo como são prestadas e a maior ou menor dificuldade probatória do facto sobre que versam, repudiando a degradação antecipada do respetivo valor probatório, o seu estigma precoce, relembrando que se está perante uma prova autónoma, consagrada em termos amplos, e não apenas

(15)

como mero princípio de prova, em relação à qual deverá valer plenamente a livre convicção do juiz (7), cumpre salientar que os defensores desta corrente não deixam de evidenciar a necessidade de adotar cuidados acrescidos na valoração favorável deste elemento de prova em benefício do próprio depoente ou declarante, sabendo-se que “… não é material e probatoriamente

irrelevante o facto de estarmos a analisar as afirmações de um sujeito

processual claramente interessado no objeto em litígio e que terá um discurso, muito provavelmente, pouco objetivo sobre a sua versão dos factos que,

inclusivamente, já teve oportunidade para expor no articulado.” (8)

Acontece que, como referido, mesmo segundo esta corrente, impõe-se adotar especiais cautelas na valoração deste meio probatório em benefício do próprio depoente ou declarante, nunca podendo o julgador olvidar que as declarações de parte prestadas – no nosso caso pelo legal representante da ré –, são

necessária e naturalmente interessadas.

Ora, no caso em presença, a autora recorrente sequer confirmou que assistiu diretamente à colocação de coelhos bravos na zona em questão, apenas se referindo neste particular, àquilo que lhe terá dito o seu marido, mormente no que se refere a uma compra de coelhos a um Sr. M. F., o que não foi

minimamente confirmado pelas restantes testemunhas, para além de ter sido negado por este, aquando a sua inquirição oficiosa, conforme salientámos supra.

Outrossim, referiu-se a um conjunto de prejuízos que terá dito desde aquela aquisição de coelhos nas suas culturas, sem que lograsse concretizar, de forma objetiva e consistente, o montante de tais prejuízos, tal como deu conta o

tribunal recorrido,

Por outro lado, a autora recorrente convoca em sua defesa os depoimentos das testemunhas M. M., E. V. e G. B..

Enfatize-se, desde já, que incumbindo à recorrente a indicação dos concretos meios probatórios que impunham (e não apenas que permitiam) decisão sobre pontos da matéria de facto impugnados diversos da recorrida, teria que ter contrariado a apreciação crítica da prova realizada pelo tribunal a quo,

demonstrando e justificando porque razão as regras da lógica e da experiência por ele seguidas não se mostrariam razoáveis no caso concreto, conduzindo a um resultado inadmissível, por não sufragado por elas. Ora, a simples

reiteração do conteúdo, e indicação do sentido, da prova pessoal já antes vista e apreciada pelo dito tribunal a quo, nos concretos moldes aqui sindicados, é claramente inidónea para este efeito.

Na realidade, tal como se impõe ao juiz a obrigação de fundamentar as suas

(16)

decisões, também ao recorrente é imposto, como correlativo dos referidos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, assim como da autorresponsabilidade das partes, a obrigação de fundamentar o seu recurso, demonstrando o desacerto em que incorreu o tribunal a quo em decidir a matéria de facto impugnada, em determinado sentido, quando se impunha decisão diversa, devendo no cumprimento desses ónus, indicar não só a matéria de facto que impugna, como a concreta solução que, na sua perspetiva, reclama que tivesse sido proferida, os concretos meios de prova que ancoram esse julgamento diverso que postula, com a respetiva análise crítica, isto é, com a indicação do porquê dessa prova impor decisão diversa daquela que foi julgada pelo tribunal a quo.

Dito por outras palavras, “[n]os termos do n.º 1, da al. b), recai sobre o apelante o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, ónus esse que atua numa dupla vertente: cabe-lhe rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente. Deve o recorrente aduzir argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente.” (9)

Ora, no caso em apreço, a autora recorrente, para além da transcrição integral dos depoimentos gravados em audiência de julgamento, limitou-se, em seguida, a concluir – sem qualquer apreciação crítica dessa mesma prova, nos moldes acima consignados –, que se impunha dar como provada a referida factualidade impugnada pela recorrente.

De qualquer modo, sempre se dirá que, revisitada a prova produzida, em especial os depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de

julgamento, mormente os depoimentos das testemunhas indicadas pela autora recorrente, facilmente concluímos que o tribunal a quo não incorreu em

qualquer infidelidade relativa ao conteúdo dos mesmos depoimentos, sendo certo da mesma não foi possível, de facto, concluir, com a necessária

segurança, pela existência de um erro de apreciação relativamente aos pontos de facto impugnados.

Daqui resulta, em suma, que este tribunal ad quem não possui qualquer elemento idóneo que possa abalar a livre convicção do tribunal recorrido quanto aos fundamentos da decisão sobre a matéria de facto, que se mostra assim inalterável, face à prova produzida.

(17)

Deverá, pois, soçobrar integralmente a pretensão da recorrente, mantendo-se totalmente inalterada a decisão sobre a matéria de facto fixada na sentença recorrida.

*

*

C) Da nova fundamentação de direito

Prima facie, afigura-se-nos linear que o pedido de alteração do decidido na sentença proferida nos autos, por parte da recorrente, no que à interpretação e aplicação do Direito respeita, depende, na sua totalidade, do prévio sucesso da impugnação da decisão sobre a matéria de facto ali consubstanciada, a qual, porém, se mantém inalterada, pelo que tal implica que fique prejudicado o seu conhecimento, o que aqui se declara, nos termos do art. 608º, n.º 2, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil.

De todo modo, sempre se dirá que a sentença recorrida cuidou de efetuar uma correta subsunção jurídica à factualidade dada como assente.

Na verdade, estando-se, no caso em apreço, no domínio da responsabilidade civil extracontratual, a obrigação de indemnizar funda-se no art. 483º, nº 1, do C. Civil, nos termos do qual: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar

ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”

São pressupostos da responsabilidade civil extracontratual ou delitual: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante; d) o dano; e e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano. (10)

No domínio da responsabilidade civil extracontratual ou delitual estabelece-se a regra de que é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão (art.

487º, n.º 1, do C. Civil). Esta norma representa uma mera aplicação das regras gerais de repartição do ónus da prova consagradas no art. 342º, do C. Civil, pelo que sendo a culpa do lesante um elemento constitutivo do direito de

indemnização, a sua prova é, naturalmente, posta a cargo de quem invoca esse direito.

Excetuam-se desse princípio ou regra apenas os casos em que a lei estabelece uma presunção legal de culpa, presunção que tem como resultado, de acordo com o estatuído no n.º 1 do art. 344º, do C. Civil, a inversão do ónus da prova, que deixa, assim, de competir ao lesado, para passar a recair sobre o autor do dano: é este quem terá que provar, para se eximir à responsabilidade, que não teve culpa na produção do facto danoso.

Um dos casos excecionais de presunção legal de culpa é o do citado artigo

(18)

493º, n.º 1, do C. Civil, segundo o qual, quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e quem tiver assumido o encargo de

vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem (culpa in vigilando), salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.

Constitui, assim, uma exceção à regra do n.º 1 do art. 487º, do C. Civil, sem que, contudo, se altere o princípio do art. 483º, do mesmo Código, de que a responsabilidade depende de culpa, pelo que admite a prova da falta de culpa como causa de exclusão de responsabilidade do agente. (11)

Assim, conforme entendimento pacífico a disposição do art. 493.º, n.º 1, do C.

Civil, estabelece uma modalidade especial de responsabilidade delitual fundada numa presunção de culpa que recai sobre quem tem em seu poder coisa móvel ou imóvel ou animal que, pela sua natureza, estrutura ou

qualidades, tem especial aptidão para causar danos a terceiros, tendo o detentor da coisa ou animal, por essa razão, o dever respetivo de vigilância.

Este dever de vigilância tem um conteúdo indeterminado e dependente das circunstâncias do caso e integra-se num dever geral de prevenção do perigo ou nos deveres de segurança do tráfego. (12)

Tal dever implica, para o sujeito obrigado, a necessidade de evitar uma

situação de perigo ou de atuar sobre uma fonte de risco para impedir a lesão de posições jurídicas alheias, e desempenham “a dupla função de estabelecer os termos da responsabilidade por omissões e por ofensas apenas

mediatamente causadas aos bens delitualmente protegidos.” (13)

Os deveres de segurança do tráfego foram construídos dogmaticamente no contexto da responsabilidade objetiva, mas podem surgir, também, no domínio da responsabilidade subjetiva, conduzindo, contudo, a uma proximidade

crescente desta à responsabilidade pelo risco, e facultando uma “redução da distância da culpa em relação à ilicitude da conduta” (14), tal como sucede nas situações de presunção legal de culpa, em que se tem entendido que esta presunção abrange a ilicitude da conduta.

O legislador quis afastar o princípio segundo o qual é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão (art. 487º, do C. Civil), deslocando o encargo probatório para o lesante, através da técnica das presunções, as quais têm por efeito a inversão do ónus da prova (art. 350.º, n.º 1, do C. Civil).

Assim, as dificuldades de prova do lesante no afastamento das presunções de culpa tornam a obtenção de uma indemnização muito mais segura para o lesado e fazem com que a finalidade reparatória da responsabilidade civil se sobreponha à finalidade sancionatória.

Porém, a responsabilidade baseada em presunções de culpa integra-se no

(19)

âmbito da responsabilidade subjetiva e distingue-se, portanto, da

responsabilidade objetiva ou pelo risco, até porque as presunções são ilidíveis, mediante prova em contrário (art. 350.º, n.º 2).

Em geral, o sujeito obrigado a estes deveres é o proprietário ou o possuidor da coisa ou animal, a pessoa que tem a coisa ou animal à sua guarda e que tem o dever de tomar as providências indispensáveis para evitar a lesão, não tendo necessariamente de ser o proprietário, podendo tratar-se de um depositário, comodatário, locatário ou credor pignoratício. (15)

Por conseguinte, no caso da modalidade de responsabilidade civil delitual, prevista no n.º 1 do art. 493º, do C. Civil, são os seguintes os pressupostos legais da obrigação de indemnizar: a) a coisa móvel ou imóvel ou animal constitui uma fonte específica de perigo; b) atribuição da guarda da coisa móvel ou imóvel ou animal a um sujeito, a título de propriedade, ou outro, por exemplo, locação, depósito, comodato, etc.; c) dever de vigilância do sujeito em relação à coisa ou animal potencialmente perigosos (deveres de segurança no tráfego); d) culpa presumida a cargo do sujeito obrigado à vigilância, sem que este tenha provado a inexistência de culpa ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa (relevância negativa da causa virtual). (16)

Acontece, porém, que, contrariamente ao que é pugnado pela autora

recorrente, não é aplicável, in casu, o regime jurídico previsto no art. 493º, n.º 1, do C. Civil.

É certo que temos como demonstrado que os prédios explorados pelas autoras integram a área perimetral da zona de caça associativa de ...; sendo que a ré é a entidade gestora dessa mesma zona de caça associativa, por a mesma lhe ter sido concessionada, através do Processo nº 6610-ICNF, por um período de 12 anos, renovável automaticamente por dois períodos iguais (cfr. factos

provados nºs 6 e 7).

Mais se demonstrou que, desde, pelo menos, o ano de 2017, as autoras e outros agricultores da zona de caça associativa de ... têm visto as suas culturas destruídas por coelhos bravos (cfr. n.º 8 dos factos provados).

Na opinião da apelante, impende sobre a ré, enquanto gestora da referida zona de caça associativa de ..., o dever de vigilância e cuidado sobre as espécies cinegéticas sob a sua gestão/exploração, designadamente o coelho bravo, para que não causem prejuízos/danos aos proprietários dos terrenos que integram a referida zona de caça.

Porém, tal como fez o tribunal a quo, importa antes chamar à colação o D.L.

n.º 202/2004, de 18.08 – Regulamento da Lei de Bases Gerais da Caça (Lei n.º 173/99, de 21.09) –, o qual veio estabelecer o regime jurídico da conservação,

(20)

fomento e exploração dos recursos cinegéticos, tendo em vista a sua gestão sustentável, bem como os princípios reguladores da atividade cinegética (cfr.

art. 1º).

Mais concretamente, cumpre realçar o n.º 1 do art. 114º, do mesmo diploma legal, no qual se estipula que: “As entidades titulares de zonas de caça, de instalações para a criação de caça em cativeiro e de campos de treino de caça são obrigadas a indemnizar os danos que, por efeitos da sua atividade, forem causados nos terrenos vizinhos e nos próprios terrenos.” (17)

Mais se estabelece no n.º 3 do mesmo preceito legal que: “A obrigação de indemnização referida no n.º 1 do presente artigo não existe nas situações em que os danos não se teriam verificado caso tivessem sido autorizadas pelas autoridades competentes as medidas corretivas requeridas pelas entidades em causa.” (18)

Estamos, pois, perante uma norma especial, que apenas responsabiliza

civilmente as entidades titulares ou concessionárias de zonas de caça – como é o caso da ré na zona de caça associativa de ..., Esposende – pelos danos

causados nos terrenos da mesma zona de caça e terrenos vizinhos, que sejam diretamente decorrentes da sua atividade, assim se afastando da

responsabilidade (presumida) prevista no n.º 1 do art. 493º, do C. Civil, para as entidades encarregues de vigilância de coisa móvel ou imóvel ou de animais pelos danos causados pela coisa ou animais.

Sendo assim, tal como igualmente nos afigura ser entendimento maioritário da jurisprudência, esta mesma norma especial (art. 114º, n.º 1, do D.L. n.º

202/2004, de 18.08) não opera a inversão do ónus da prova do nexo de causalidade, pelo que sempre competirá ao lesado alegar e provar que os danos sofridos nos seus terrenos foram, direta e necessariamente, causados pela atividade desenvolvida pela ré enquanto concessionária da zona de caça associativa em causa. (19)

O mesmo é dizer que, face aos factos alegados pelas autoras, competia à autora recorrente demonstrar os apontados pressupostos da responsabilidade civil delitual (art. 483º, n.º 1, do C. Civil), designadamente que a ré tenha iniciado (ou pelo menos incrementado) a criação ou povoamento da zona de caça associativa de ... com espécies cinegéticas, designadamente coelho bravo e, na sequência de tal atividade, tal espécie cinegética reproduziu-se de tal forma, que começou a invadir e destruir as sementeiras e plantações de natureza hortícola nos terrenos agrícolas que exploraram.

Porém, tal prova não foi feita pela autora recorrente, tal como decorre mormente das als. a) e b) dos factos não provados.

(21)

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, se conclui pela improcedência da apelação em presença.

*

V-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:

a) Rejeitar, por extemporaneidade, o recurso interposto da decisão

interlocutória (de indeferimento de requerimento de meio de prova) proferida na sessão de audiência de julgamento realizada a 24.06.2020.

b) No mais, julgar improcedente o recurso de apelação em presença, confirmando-se, pois, a sentença recorrida.

Custas pela apelante (art. 527º, n.º 1, do C. Civil).

*

*

Guimarães, 18.03.2021

Este acórdão contem a assinatura digital eletrónica dos Desembargadores:

Relator: António Barroca Penha.

1º Adjunto: José Manuel Flores.

2º Adjunto: Conceição Sampaio.

1. Por todos, neste sentido, vide Ac. STJ de 01.10.2015, proc.

6626/09.0TVLSB.L1.S1, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, acessível em www.dgsi.pt.

2. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª edição, 2017, pág. 159.

3. Ob. citada, pág. 164.

4. Cfr. ainda diversos Acs. do STJ, aludidos na ob. citada, págs. 161 a 165.

5. Abrantes Geraldes, ob. citada, pág. 166.

6. Neste sentido, cfr. Ac. RP. de 15.09.2014, proc. 216/11.4TUBRG.P1, relator António José Ramos, acessível em www.dgsi.pt, onde se lê que: “As

declarações de parte (art. 466º, do novo CPC) – que divergem do depoimento de parte –, devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado. As mesmas, como meio probatório, não podem olvidar que são declarações interessadas,

(22)

parciais, e não isentas, em quem as produz tem um manifesto interesse na ação. Seria de todo insensato que, sem mais, nomeadamente sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam documentais ou testemunhais, o tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.” No mesmo sentido, vide Ac. RP de 17.12.2014, proc.

2952/12.9TBVCD.P1, relator Pedro Martins; e Ac. RC de 23.06.2015, proc.

1534/09.7TBFIG.C1, relator Henrique Antunes, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

7. Elizabeth Fernandez, Nemo Debet Essse Testis in Propria Causa? Sobre a (in) Coerência do Sistema Processual a Este Propósito, Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, págs. 22 a 37; e Ac. STJ de 05.05.2015, proc.

607/06.2TBPMS.C1.S1, relator Gabriel Catarino; Ac. RE de 12.03.2015, proc.

1/12.6TBPTM.E1, relator Mata Ribeiro; Ac. RG de 02.05.2016, proc.

2745/15.1T8VNF-A.G1, relator António Figueiredo Almeida; e Ac. RL. de 26.04.2017, proc. 18591/15.0T8SNT.L1-7, relator Luís Filipe Pires de Sousa, todos acessíveis em www.dgsi.pt.

8. Carolina Henriques Martins, in Declarações de Parte, Universidade de Coimbra, 2015, pág. 58.

9. Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2018, pág. 770.

10. Vide, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 4ª Edição, pág. 471.

11. Neste particular, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 495.

12. A este propósito, cfr. Antunes Varela, RLJ 114, 1981, pág. 79; Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 832.

13. Cfr. Manuel Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Coleção Teses, Almedina, 2004, págs. 235-236.

14. Manuel Carneiro da Frada, ob. citada, pág. 236 (nota 242).

15. Neste sentido, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. citada, pág. 495.

16. Neste sentido, cfr., por todos, o Ac. STJ de 30.09.2014, proc.

368/04.0TCSNT.L1.S1, relatora Maria Clara Sottomayor, acessível em www.dgsi.pt.

17. Também a citada Lei de Bases Gerais da Caça, estabelece no seu art. 37º, n.º 2, que: “As entidades gestoras de zonas de caça, de instalações de espécies cinegéticas em cativeiro ou de campos de treino são obrigadas a indemnizar os danos que o exercício daquelas atividades cause nos respetivos terrenos e terrenos vizinhos.”

18. Sobre a possibilidade de autorização de tais medidas corretivas, cfr. art.

113º, do mesmo diploma legal.

19. Cfr., neste sentido, Ac. STJ de 17.11.1998, proc. 98A984, relator Afonso de

(23)

Melo; Ac. RG de 23.01.2014, proc. 65/11.0TBAVV.G1, relator Manuel Bargado;

e Ac. RG de 27.02.2020, proc. 2987/18.8T8VNF.G1, relatora Maria Cristina Cerdeira, acessíveis em www.dgsi.pt.

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