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Academic year: 2022

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1 No ano de 2032, no Brasil, uma família com cinco pessoas: dois adultos, dois adolescentes, de 16 e 12 anos, e uma criança do sexo feminino, com sete anos, sobrevivem a uma terrível explosão que devastou a terra. Em todo o mundo poucas pessoas conseguiram escapar do desastre natural. A terra é formada por gases tóxicos, pouca luz e uma densa camada nublada que impede a sobrevivência. Mesmo assim, em todo o mundo, lugares e pessoas foram “escolhidos a dedo” para permanecerem e possivelmente reconstruírem a civilização, dando a ela uma nova forma de pensar, principalmente no convívio com os recursos naturais. Trataremos de uma delas, aqui no Brasil.

É uma terra seca e aqui já foi a terceira maior reserva subterrânea de água. Mas aconteceu a grande desgraça mundial e poucos espaços com água sobraram no mundo.

Aqui, tem esta pequena mina. Água cristalina, potável e objeto de cuidados eternos.

No local moram Herculano e Vânia, casados há 32 anos. Eles têm dois filhos legítimos, Ana e Tiago. O menino com 16 anos e a garota com 12. Já a pequena Beatriz, de sete anos, eles pegaram para criar, pois os pais morreram num desastre de carro, quando fugiam da cidade de Cristalândia, na época da grande catástrofe.

A tragédia maior foi uma terrível falta de água. No mundo todo, as reservas foram secando devido ao uso descontrolado. Os oceanos passaram a receber esgotos sem tratamento, resíduos de produtos químicos perigosos e suas águas deixaram de ser úteis para a navegação, alimento e lazer. As águas doces, usadas sem controle, foram diminuindo e uma onda de calor assolou a terra. Todos os anos, desde de 2012, a terra sofreu com as alterações climáticas e os incêndios foram ficando cada vez mais intensos e frequentes.

Um dia, no ano de 2027, um terrível tremor sacudiu os quatro cantos da terra e tudo que era conhecido passou a queimar, os mares foram tragados pelas fendas e as águas foram evaporando. Antes disso, em 2009, uma terrível onda gigante já havia invadido um continente e deixou um rastro de destruição. Já era um aviso do que viria pela frente.

Outros fenômenos aconteceram e igualmente foram devastadores.

Neste acidente geológico de 2027, a água que chegou em terra firme rapidamente foi evaporada e não mais provocou chuvas devido ao imenso manto de poluição por gases tóxicos. Tudo secando. Tudo morrendo e a terra entrou em colapso.

No mundo todo, apenas poucos sobreviveram e surgiram pequenas nascentes que garantiam a sobrevivência de quem as cuida. Mas já há registros de povos nômades, que

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2 sobreviveram à catástrofe e perambulam em busca dessas nascentes e de locais com pessoas que eles possam explorar. Por isso, Cristalândia é lugar onde está a família Elpis refugiada. No início, só tinha a água que conseguiam guardar em potes e caixas de polietileno. Depois, milagrosamente, surgiu uma pequena nascente, no alto do morro.

Vigiada dia e noite.

Estão aqui há cinco anos. Saíram da capital, onde havia dois rios, e chegaram até aquela cidadezinha e, ainda, quando tinha água no imenso vale do Gurgueia, já quase consumido por secas. Hoje, e depois de anos de abusos ambientais, nada restou.

Ocuparam a pequena propriedade a convite dos antigos moradores, que sobreviveram ao caos de 2027. Uma casa velha com dois velhos. Ele com 85 e ela com 80. Sem filhos.

Eles já guardavam água desde muito cedo, pois foram criados na seca e no sistema de cisternas do governo. Acolheram e deram à família uma única missão: enterrá-los nos fundos da propriedade.

CAPÍTULO VIII – O fim

“E há esperança quanto ao teu futuro, diz o Senhor, porque teus filhos voltarão para os seus termos.” Jeremias 31:17

A cidade ficava a dois quilômetros da chácara. Está totalmente abandonada e em ruínas as casas e construções. Herculano revive o dia fatal quando ocorreu o grande incêndio na pequena Cristalândia, há três anos, no fim de 2029. No Estado, era ainda uma das poucas cidades que resistiam a grande catástrofe. Sabiam que a qualquer momento ela poderia ser tragada por labaredas. O calor era imenso e a pouca água estava no fim. Não eram raros os casos de pessoas que morriam de inanição. Nos interiores e povoados nada mais restava. Quem estava ali, já vinha fugindo da seca e da fome em suas corruptelas.

No dia do incêndio, pessoas se atiravam no córrego de lama e tentavam apagar as chamas que tomavam seus corpos. Estavam vindo da missa e um casal com uma criança passou por eles em um velho caminhão. Quase jogou o carro de Herculano fora da pista.

Mas eles tombaram e caíram no córrego. Não deu para sair, Vânia viu a criança, então com três anos, e foram ajudar. Outros também corriam e se atiravam na lama, outros se desesperavam e se atiravam de pontos altos. Enfim, uma histeria coletiva e pessoas matavam pessoas e se matavam. Todos podiam ter armas, dede 2019. Retiraram a

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3 criança e o carro deles foi tomado por chamas. Os dois filhos de Vânia e Herculano saíram correndo e se abrigaram próximo a uma barraca. O fogo quase os devorou. Com esforço conseguiram chegar à casa dos velhos. Mas a população não teve a mesma sorte.

Agora, a missão é cuidar da nascente e tentar reconstruir tudo. Vez por outra Herculano vai a cidade destruída para procurar sobreviventes. Nos últimos dois anos após o incêndio, nunca viu uma só pessoa. Sempre que encontra algo de útil, como peças de carros, combustível, ferramentas e até alimentos enlatados, os traz para casa. De peça em peça montou um novo carro e tem até pneus reservas. Já fez uma viagem de 600 km ao norte, em busca de alguma civilização. Mas tudo está destruído. Volta sempre com mais coisas, daí entulham tudo num galpão que construíram. Vivem só, há quase três anos, a espera de um milagre.

Ao sul, onde fica a Bahia, Goiás e o Distrito Federal nunca mais foi. Mas como todos os dias ele desce a ladeira até a velha rodovia e por lá fica umas duas horas esperando passar algo, e jamais passa, acredita que nada restou. Mas lembra que a região de que fala era grande produtora de grãos e gado às custas de enormes desmatamentos e secas de nascentes, rios, riachos, lagos e lagoas. Um caos só.

Avisávamos que um dia isso faltaria. Mas produzir e gerar dinheiro era o mote da época, de 2015 até 2025. Em dez anos produzimos tudo o que queríamos, em cinco anos perdemos tudo.

Assim começa nossa história. Em 2022.

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Próximos dias...

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5 CAPÍTULO I – O sinal

Era um dia quente de estação de seca. A cidade sempre padeceu no segundo semestre do ano, pois os meses são bem mais quentes com temperaturas de 35 a 40 graus. Baixa umidade do ar e sensação térmica acima do suportável. Nesta época, o consumo de água é aumentado em quase 60% e os dois rios, já no fim de suas capacidades, ainda resistiam. Mas algo de estranho aconteceria naquele sábado, 17 de setembro de 2022.

– Hoje o dia vai nos derreter. – Disse Amélia, vendedora de frutas numa movimentada avenida da capital.

– São duas horas da tarde. Os termômetros estão marcando 38 graus. – Concluiu outro vendedor.

A avenida estava tomada. Carros, ônibus, motos, pessoas, sons. Um misto de loucura e frenesi. O calor e abafamento deixavam qualquer um alucinado. De repente, no meio de uma das pistas da avenida uma enorme cratera se abriu. Os edifícios laterais inclinaram, carros foram tragados e dezenas de pessoas caíram no buraco. A correria foi geral e o socorro não conseguia chegar. Alguns telefones pararam e as descargas elétricas iniciaram incêndios diversos.

– O posto de gasolina. - Gritava um homem que fugia correndo.

Outro barulho e outra explosão. Mais uma cratera e mais gente sumindo com seus carros e objetos terra a baixo. Correria, desespero e acidentes por todos os lados. O tumulto levou cerca de quatro horas e no cair da noite os bombeiros e a polícia conseguiram algum controle. A cidade estava tomada pelo desespero e as notícias já corriam o mundo.

Mas o mundo também se viu abalado, em diversas outras cidades, pelo mesmo fenômeno. As explicações vinham dos especialistas, que vagamente tentavam dizer o que se passava. Geólogos, astrônomos, físicos, teólogos todos tinham um veredito. Uma enorme torre de babel em que nada fazia sentido. Apenas o cheiro de morte e dor era, de fato, percebido claramente.

– É o fim do mundo. – Gritou um pastor a plenos pulmões.

– Pois se você acredita nisso, para de gritar e vá para casa. Saia daqui. – Mandou, com voz áspera, um policial que fazia o isolamento da área.

Neste dia, Herculano não tinha ido trabalhar. Ficara em casa cuidando dos filhos, que estudavam pela manhã, mas que não tinham tido aula especial naquele sábado. Com as altas temperaturas, os dias de vida das pessoas eram alterados. Ficou instituído que dependendo da temperatura no meio da semana o trabalho, aula ou qualquer atividade

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6 podia ser substituído por outro dia, sábado ou domingo ou feriado. Naquele sábado teria aula, mas novamente o calor não permitiu.

– Meu Deus! O que está acontecendo?

Herculano desceu até o playground do condomínio e chamou os filhos para casa. As crianças ainda não sabiam do ocorrido, mas afirmaram terem ouvido um estrondo.

– O que houve, papai? - Indagou Ana, com apenas dois anos de idade.

– Nada, filha. Vamos entrar.

– Tudo tremeu. – Concluiu a criança.

Thiago, o mais velho, de seis anos, estava assustado e apressou em pegar a mão do pai e da irmãzinha e rumou para casa. Depois do banho tomado, ficaram à espera de mais notícias e de como estava a cidade e os outros locais atingidos.

– Mamãe está demorando. – Disse Thiago.

– Ela já vem. Acalme-se.

– Ligue para ela, pai.

– Os telefones não estão com sinal. Alguma torre deve ter sido atingida.

Os três ficaram no apartamento à espera da mãe, que ainda estava na rua. Vânia trabalhava num banco privado e sempre chegava em casa por volta das 17 horas. Mas naquele sábado, por conta dos dias quentes na semana, teve mais trabalho que de costume e do alto do prédio, no centro da cidade, nem se deu conta do ocorrido.

Trabalhou até as 19 horas e na saída foi surpreendida pelo caos. Disse a uma colega ter percebido uma movimentação diferente, mas não ligou por saber que a cidade tinha sempre suas características de tumulto.

– Desta vez não foi trivial. Um terremoto abalou a avenida Principal. Carros caíram em buracos, pessoas morreram, vários incêndios aconteceram. – Disse Lúcia, outra colega de trabalho.

– Meu Deus! Preciso ligar para meus filhos, meu marido.

– Mulher, não tem sinal de celular. Você não viu que a internet tinha caído?

– Não. Estava com planilhas e arquivos, não entrei na web hoje.

– Pois estamos à moda antiga. Incomunicáveis.

Vânia pegou o carro na garagem do prédio e rumou para casa. Sabendo do ocorrido, buscou uma rota alternativa e a cidade parecia enlouquecida, ainda, pois todo o trânsito fora desviado.

– Meu Deus! Meu Deus!

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7 Vânia dirigiu até quase meia-noite para poder chegar em casa. Fez todos os desvios possíveis e imagináveis que tinha em mente. Sem o GPS, ela seguia por ruas e avenidas buscando apenas o que tinha na memória. Entrou no apartamento e recebeu um forte abraço do marido.

– Como vocês estão?

– Bem, e você?

– Meu amor eu não vi nada, acredita? Só me dei conta do ocorrido às sete horas, vindo embora. Isso porque a Lúcia me falou. Estava distraída com o trabalho atrasado.

– Foi horrível. Horrível.

– Sim, imagino.

– Venha. Tire a roupa. Tome um banho.

– E as crianças?

– Estão assustadas, mas estão bem. Já dormiram.

Ficaram por um tempo na sala vendo se a TV mostrava algo, mas as emissoras estavam com problemas nas transmissões e a programação não era constante. Aos poucos, foram tomando conta do ocorrido e perceberam, nas imagens fragmentadas que chegavam, a dimensão do caos de 17 de setembro de 2022.

– Vamos ter de repensar nossos hábitos.

– Herculano, penso que não temos mais tempo.

– Falo dos nossos hábitos.

– Como assim?

– Meu amor, hoje tivemos um exemplo do que nos aguarda. Precisamos procurar um lugar menos tenso para viver.

– Onde?

– Não sei, mas deve haver.

– O mundo está em colapso. Onde fica este lugar?

– Deve existir. Algum lugar.

– Isso parece música do Roberto Carlos.

– Falo sério.

Vânia sorriu, abraçou o marido o trouxe para perto de si.

– Tá bem. Mas vamos deitar. Estou exausta e você também. Amanhã falaremos disso.

Saíram em direção ao quarto. A noite seria longa e aquele dia jamais seria esquecido.

A vida continuou seu curso. Os dias que se seguiram foram para reformar as casas destruídas ao redor do mundo e promover um ciclo de palestras, debates e afirmações

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8 sobre os rumos da humanidade. Nunca se falou tanto em cuidar da natureza, das florestas, dos rios, mares etc. Um discurso velho, datado de 1960 e que agora vinha à tona, com todo o povo imaginando que o mundo não passaria daquela década. Mas ele duraria ainda alguns longos anos.

– Mais um dia quente. – Profetizou Armando, vendedor de lanches numa barraca da Universidade Federal.

– Certamente, Armando. Certamente.

– Professor Herculano, desde o tremor de terra, naquele sábado, vejo o senhor mais pensativo, mais distante. O que está havendo?

– Meu caro, Armando, estou querendo me refugiar numa cidade mais ao sul. Talvez no vale do Gurgueia, talvez na divisa.

– Por que tão longe?

– Porque sinto que iremos sucumbir a este mundo em breve. Você viu que o aconteceu aqui na nossa cidade se repetiu, no mesmo dia e hora em outros lugares do mundo?

– Vi. Vi, sim senhor.

– Pois é. É preciso achar um lugar seguro. E rápido. E falo isso para você também.

Disse isso e entrou na sala de aula, onde ministrava disciplina de Sociologia a estudantes do primeiro e segundo semestre nos cursos de humanas. Uma disciplina já perseguida em tantos outros tempos, mas que agora parecia repousar como um conforto aos discentes, vez que estes não viveram no País em outras épocas e que agora somente a história e a sociologia poderiam explicar os motivos de estarem em situação tão desgraçadamente degradante.

– Vocês já leram sobre o clima hoje?

– Não senhor. – Responderam quase em coro os alunos de Direito.

– Pois sugiro que leiam. Daqui a alguns anos vocês não precisaram mais existir enquanto juristas. Pois necessitarão não de tribunais, mas de confessionários.

– Como assim, professor? – Quis saber Bianca, do segundo semestre de Direito.

– Somos os responsáveis por tudo o que nos cerca. Desde o início a sociedade, buscou duas formas de vida: o progresso e a liberdade. E em nome dos dois ousou destruir valores e criações, agora amarga sua involução.

– Mas nós não criamos isso. – Rebateu a moça.

– De fato. Mas nada fazem para mudar uma realidade.

– E o que poderemos fazer?

– Imagino que uma campanha para um mundo melhor.

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9 – Vocês fazem isso a vida toda e ninguém os ouviu. O que o faz pensar que nos ouvirão?

– A realidade é outra. Antes apenas cogitávamos. Vocês estão vivendo o caos.

– Hum. Pode ser, mas as pessoas estão mais preocupadas em garantir seus sustentos nestes tempos.

– Antes também. A questão era que ninguém cria que os recursos acabariam. Brigavam por empregos, status, riquezas. Hoje, vocês precisam lutar também por água, por exemplo.

– O senhor acha que vai piorar?

– Tenho total convicção. E muito em breve.

– Professor, isso parece assustador.

– E é. Viram o tremor que arrasou a avenida Principal? Os incêndios? As casas destruídas? O desespero das pessoas? Viram as mortes?

– Foi triste.

– Foi um sinal. Um sinal de que estamos no fim.

– Será?!

– Sim. Acredite.

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10 CAPÍTULO II – 2025

As festas do fim do ano de 2025 não foram realizadas no planeta. Pelo pacto de colaboração mundial em preservar a terra, os recursos de todos os países para eventos como copa do mundo, natal, réveillon, carnaval e outras comemorações, mundo afora, foram deixadas de lado e o dinheiro guardado para um projeto audacioso de reconstrução de áreas atingidas. O grande problema dessa ideia é que o dinheiro não bastava, vez que todo ano um local diferente era atingido por uma coisa, por um fenômeno natural.

– O governo anunciou a construção de um abrigo subterrâneo na região Leste.

– Justo lá. É para beneficiar os ricos?

– Pare com isso, ranzinza.

– Sei. Eu é que sou o ranzinza.

– Claro. Tudo reclama.

A bronca era devido ao privilégio em que poucos viviam naquele momento. Os mais ricos, os que mais gastavam as riquezas naturais, eram os mais beneficiados. Uma grande massa da população sofria com ausências de médicos na rede pública, padeciam com o transporte cada vez mais escasso e as escolas públicas estavam sempre na última ação do estado. Tudo era concentrado para garantir que a sociedade (elitizada), tida como produtiva, continuasse a existir, em detrimento dos mais pobres.

Carros, roupas, médicos, instrução, segurança, tudo girava entorno dos mais ricos. Aos menos privilegiados, o governo mantinha o básico. Por exemplo, em bairros pobres a luz era gerada apenas a partir das 16 horas e ia até a duas da manhã. Imagine um calor de 40 graus e no meio da madrugada tudo é desligado. Os alimentos eram mantidos em blocos de gelos, feitos com água poluída, pois precisavam ser guardados devido ao preço. Tudo era muito racionado naqueles tempos. Muitos morriam de fome ou suicidavam-se, tamanho o desespero. Há relatos de chefes de família que ateavam fogo em suas casas com todos dentro. Outros tomavam veneno para ratos, aliás, uma peste comum na época. Enfim, o caos ainda estava no começo, segundo alguns teólogos.

– Imagine isso no auge.

– Meu amor, Deus irá nos reservar algo de bom. Acredite.

– Eu creio. Mas sei também que ele é justo. Devemos ter em mente que causamos tudo isso.

– Deus é justo e misericordioso.

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11 – Mas vamos nos manter vivos, também, à custa da espada.

– Quando chegar a hora lançaremos mão das armas. Por enquanto, vamos no manter firmes na fé e na crença de que o governo vai achar uma solução.

– Construindo abrigo para os ricos?

– Mas nós somos incluídos no programa do governo.

– Isso é que mais me aterroriza. Milhões de pessoas estão fora deste programa.

Mulheres, crianças, idosos. Todos morrendo aos poucos por falta de assistência.

– Não somos o salvador do mundo. Não há que fazer.

Herculano deixou a esposa no trabalho, no Centro da cidade, e seguiu para sua rotina de aulas. Agora tudo era racionado e eles decidiram que trabalhariam no mesmo horário para usar um veículo e com isso reduzir despesas. As crianças iam junto e já ficam em suas escolas. Ao meio dia o caminho de volta. E foi justamente neste caminho que se deu um terrível tremor seguido de explosão que vinham do chão.

– Meu Deus! O que é isso?

– Carro se desgovernou e Herculano quase capota. Conseguiu controlar o veículo e desviando dos buracos que surgiam do nada no asfalto foi dirigindo até a área da Universidade. Entrou no campus e buscou um local para estacionar. Trêmulo, ligou para a esposa e disse o que estava acontecendo.

– Aqui também está tudo tremendo. Já descemos do prédio.

– Ótimo. Fique embaixo.

– Você já ligou na escola?

– Não. Farei isso agora.

– Sim. Ligue e me mantenha informada.

– Está bem.

– Eu te amo.

– Eu também te amo.

Desligou o telefone e foi buscar informações sobre os filhos. A escola era perto do condomínio de apartamentos onde moravam. Por lá, os professores ainda não tinham recebido nenhuma ação da natureza e tudo parecia normal. O telefonema de Herculano pôs todos em alerta.

– Obrigado senhor, pelo aviso.

– Cuide de meus filhos. Assim que conseguir vou buscá-los.

– Fique tranquilo. Ligaremos para outros pais fazerem o mesmo.

– Isso. Façam isso.

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12 Desligou o telefone e começou a pensar em como sairia dali. A Universidade não tinha mais tantos alunos, pois muitos não podiam mais estudar. Os que estavam insistindo em algo eram os privilegiados. A correria começou a tomar conta do local e muitos, no desespero, cometiam acidentes. Herculano observou a movimentação por um instante e se desviando de pessoas e carros e segurando-se para não cair devido aos tremores foi até um local mais afastado. Lá ficava olhando a correria e pensava no fim de tudo. Sua mente caminhava em direção a esposa e aos filhos. Tomou fôlego e foi até o carro. Uma árvore quase o atingiu e entrou no veículo. Ligou e saiu cantando pneu. Dirigiu até o centro da cidade e deixou para trás o desespero e os acidentes. Seu carro fora atingido por outro, mas não foi grave. Encontrou a esposa próximo a uma grade, numa praça se protegendo de galhos e tentando se equilibrar.

– Vânia. Vânia.

A esposa o viu e saiu correndo para o carro. Por pouco não fora atropelada por uma moto.

Entrou no veículo a abraçou o esposo.

– Nossos filhos! Nossos Filhos.

– Acalme-se. Eles estão bem. A escola disse que por lá nada aconteceu, ainda.

– Vamos buscá-los, depressa.

– Sim, vamos.

Seguiram de volta a escola e foram ao encontro dos filhos. Vânia e Herculano, enquanto seguia para a escola das crianças, começaram a repensar a vida na cidade grande.

Estavam há anos em suas atividades. Tinham conseguido juntar dinheiro, tinham casa, carros e as crianças estudavam numa boa escola. No entanto, os últimos acontecimentos deixavam claro que tudo era uma questão de tempo até que o fim do planeta se concretizasse. Várias catástrofes estavam acontecendo em nível mundial e pouco se sabe sobre um ajuste, um conserto.

– Precisamos ir embora da capital.

– Também. Acho. Mas onde vamos, Herculano?

– Vamos seguir para o Sul, já falamos disso antes.

– Sim, já. Mas não definimos nunca um local.

– Penso no vale do Gurgueia. Ainda há água e ar puro.

– Vamos então, vamos agendar nossas vidas e concluir os nossos compromissos.

– Ótimo. Vamos o quanto antes.

Pegaram as crianças e seguiram para casa. O local ainda parecia calmo, pois não tinha sido afetado pelos constantes abalos que aconteciam. Mas a vida, mesmo lá, nunca era

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13 tranquila. Um calor escaldante, constantes faltas de água energia, e tudo estava bem mais difícil a cada dia.

– A vida está perdendo o sentido.

– Não, amor. A vida está se perdendo.

– Herculano, não fique assim. Vamos superar tudo isso.

– Não. Estamos a caminho do fim. Devemos nos preparar para o pior.

– Me recuso, Herculano, a correr em direção ao desespero.

– Não precisará, meu amor, ele virá até nós.

Ficaram por alguns instantes pensando na vida que os unia e em tudo o que tinham. Um misto de saudade e arrependimento começou a trabalhar a cabeças dos dois, quase que simultaneamente, como se os pensamentos estivessem ligados por um único fio condutor de energia. Lembram das matas, rios, aves e peixes. De como a vida era plena e de que a única coisa que tinham que fazer era preservar aquilo tudo. Também lembraram de como as coisas começaram a ruir e de como tudo começou a se alterar. Sabiam que tinham falhado em alguma coisa e de como agora nada mais poderia ser feito.

– Perdemos tudo por ganância.

– Mas nós fizemos o possível, Herculano.

– Que possível? Canções românticas sobre preservar? Poemas sobre a terra? Textos longos sobre os povos indígenas?

– Não fique assim.

– Não fizemos nada. Nada de significante. Ficamos sempre nas campanhas, nas propagandas institucionais, nos ideais de marketing. Nada funcionou, porque na prática destruímos tudo.

Disse isso e recostou-se no sofá. Os olhos no horizonte e pela janela via o cair da tarde.

Um céu avermelhado que irradiava um calor, perto das 18h30, de quase 42 graus. Ajustou a camisa, relaxou os botões de cima e respirou profundamente. Em seus pensamentos a única ideia que o acolhia era a de buscar um lugar longe daquele caos. “Mas para onde ir, como ir e o que fazer? As crianças teriam que mundo? Estamos morrendo e matamos gerações inteiras.”

– Vamos dormir. – Disse Vânia.

– Sim vamos. Sempre acreditamos que deveríamos deixar um mundo melhor para os nossos filhos, mas nunca nos permitimos deixar filhos melhores para o mundo.

Abraçados foram para cama, se dormiriam seria outra história.

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14 CAPÍTULO III – Um dia de cão

Depois daquele último acidente geológico, em 2025, as ondas de calor ficaram piores. O racionamento de água, e agora de comida, pois as lavouras e criações de animais que atendem ao consumo humano foi cortado pela metade. A água estocada e utilizada nessas atividades foi radicalmente esgotada em torno de 75%. O ano era de 2027.

– Não temos mais comida. O governo lançou algumas proteínas sintéticas.

– Eu sei. Veio de uma multinacional americana.

– Aquela em que os políticos, do mundo todo, se associaram?

– Esta mesma, Vânia. Esta mesma.

Compraram um bom estoque de sachês contendo as tais proteínas. As embalagens continham compostos químicos, produzidos em laboratórios, que davam, de alguma forma, um tipo de sustento aos corpos e mentes das pessoas nestes tempos de calamidade natural. Os compostos ainda tinham sabores.

– Hum, este é de churrasco. - Disse Herculano rindo.

– Pois estou de dieta e quero peixe.

– O seu será especial.

A família ria enquanto “almoçavam” os compostos, que eram preparados com pouca água e utilizando apenas o aquecimento no micro-ondas. O líquido era precioso, quanto escasso, que numa mesma vasilha todos os saquinhos eram preparados. O método era simples. Bastava um pote plástico cheio de água e o produto mergulhado nele por 3 minutos. Ao final, ficava preparada e todos comiam. Bem diferente dos macarrões instantâneos de épocas anteriores.

– Credo, tem gosto de plástico. – Disse Ana ao degustar o seu delicioso almoço.

– Minha filha, é plástico. – Constatou Herculano.

– Que saudade de um bom frango frito. Uma deliciosa macarronada. Uma salada verde.

– É Vânia, eu também. Eu também.

Enquanto ficavam por ali comendo e conversando, Tiago saiu para a sacada do apartamento. Observava o movimento lento de algumas pessoas que se arriscavam em caminhar pelo condomínio. As temperaturas estavam cada vez mais altas e as poucas árvores que resistiam não tinham uma copa volumosa e com sombras. Caminhar era um exercício por demais puxado.

De repente, Tiago viu ao longe a formação de nuvens escuras e num sobressalto voltou para os pais gritando.

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15 – Vai chover! Vai chover!

Todos saíram correndo para a sacada e maravilhados, e cheios de esperança, olhavam aquela formação pesada de nuvens negras. Uma composição densa, que lembrava as tempestades tropicais em verões memoráveis.

– Afastem-se da janela. Entrem.

– Meu Deus, é chuva. O que houve com você?

– Não é chuva. É ácido.

– O quê?! Como assim?!

– Saiam, vamos. Entrem.

Uma enorme quantidade de “água” caia sobre a cidade inteira e o barulho que fazia era insuportável. As pessoas que caminhavam procuram abrigos e as árvores começam a se quebrar. Via, pelos vidros das janelas, que as gotas ao baterem nas latarias dos carros arrancavam a pintura.

– Vejam, a tinta nos carros. Está escorrendo.

– Meu deu, Herculano. É o fim.

– Sim! o nosso fim.

O vento espalhava o ácido com uma velocidade incrível e tudo parecia ser atingido pelas pesadas gotas. Dento de casa, eles procuravam observar tudo e já matutando alguma forma de buscar ajuda caso algo pior acontecesse. Pio no sentido de serem atingidos, dentro do apartamento, pelo ácido que escorria nas vidraças e paredes. O desespero parecia generalizado e era possível ouvir gritos de pessoas vindos dos outros apartamentos.

– O desespero está invadindo nossas casas.

– Nossos vizinhos estão em pânico. O que vamos fazer?

– Nada. Vamos esperar que passe.

– Só espero que ninguém ouse sair de casa. O ácido pode derretê-los.

De repente, pela janela, a pequena Ana viu um dos vizinhos correndo em direção ao seu carro. Era o velho Timóteo. Um senhor de 65 anos que vivia só no apartamento de baixo.

Correu em direção ao carro, mas antes de conseguir abri a porta suas pernas foram ficando em carne viva. O ácido que caia fez brotar umas pequenas lâminas e ao pisar o produto corroía seus pés. O senhor caiu e diante da presença de muitos agonizou até cessarem os gritos de dor. Timóteo foi um dos milhares que morreram naquele dia, numa chuva ácida que atingiu toda a cidade. Como não havia informações pela TV ou rádio e os

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16 telefones, novamente, emudeceram, só souberam dos estragos quase três dias depois.

Enquanto isso ficaram em casa, até tudo passar. O alimento era o sachê de proteínas.

– É o nosso fim.

– Não, meu amor. Ainda temos muito o que purgar.

– Pode ser, mas se for assim, vamos procurar imediatamente uma nova casa, um novo lugar para viver. Aqui já deu.

– Herculano, onde?

– Já lhe disse. Ao Sul.

Mas aquele dia seria longo. A chuva não diminui e nas ruas próximas ao condomínio começou uma onda de fuga. Vários moradores das casas vivinhas começaram a abandonar as residências e corriam para os carros para fugirem do ácido. Muitos dirigiam em alta velocidade pelas ruas e as colisões eram a rotina. Outros tentavam seguir a pé mas iam ficando pelo caminho corroídos pelo líquido que vinha do céu. Focos de incêndios em todos os lugares, desabamentos, gritos e até tiros.

– As pessoas estão se matando.

– Não querem viver a dor que queima.

– Meu Deus, tende piedade de nós.

– Rezar agora, Vânia, não vai adiantar.

As crianças viam tudo pela janela e como que congeladas não acreditavam em tanta desgraça.

– Estou com medo. – Disse Ana.

– Eu também. Papai, vamos embora daqui.

Abraçaram-se e começaram a consolar um ao outro. A chuva caia, a correria não cessava e os estragos aumentavam. Enquanto participavam inertes de tudo, não se deram conta que as janelas estavam perdendo a esquadria. O ácido que derramava estava levando o alumínio das janelas.

– Herculano, as janelas.

– Meus Deus. Saiam de perto. Saiam!

– O que vamos fazer?

– Estou com medo. - GritoU Ana.

Tiago abraçou a irmã e foi com ela para o quarto. Lá ficaram embaixo da cama e usaram um cobertor como proteção. O calor era imenso e o cobertor parecia sufocá-los. Mas não havia o que fazer. Enquanto isso, Vânia e Herculano estavam vistoriando as esquadrias do apartamento para avaliar o que fazer. Tudo estava derretendo.

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17 – Vamos ter de sair de casa. Aqui não vai aguentar.

– Sair?!

– Agora. Pegue as crianças.

Vânia correu em direção ao quarto de Tiago e de imediato não os viu.

– Tiago, Ana.

As crianças saíram debaixo da cama e correram para a mãe.

– Arrumem uma mochila e coloquem algumas roupas.

– Para onde vamos? - Quis saber Tiago.

– Precisamos sair. O prédio está se desmanchando. Pode ser perigoso.

Neste momento Ana começou a chorar e Vânia a consolou. Tiago pegou uma mochila e começou a colocar algumas roupas. Vânia vai ao outro quarto e faz a mesma coisa para Ana. Juntos, a família começa a descer as escadas do prédio. Os corrimões, em metal, já estão se desgastando, pois os basculantes do hall das escadas cedeu, os vidros caíram e o ácido penetrou.

– Não toquem em nada. Não toquem em Nada.

Desceram o mais rápido que puderam. No caminho alguns corpos foram encontrados.

Uns ainda inteiros e se derretendo, outros já desfigurados.

– Evitem olhar. Caminhem em frente. Depressa.

Seguiram mais uns lances. Chegaram na portaria e era impossível passar. A chuva ácida caia, ainda forte, e ficaram ali parados sem saber o que fazer. De repente, Tiago lembrou de um alçapão que ficava nos fundos da escada.

– É um lugar de manutenção elétrica.

– Como você descobriu isso? - Perguntou Vânia preocupada.

– Brincando, ué.

– Querida, depois você puxa a orelha dele. Vamos descer.

Seguiram por uma escada metálica, quase caindo, e foram para o fundo da caixa de inspeção.

– Cuidado com os cabos.

Sem luz, sem energia e ácido caindo, ali ficaram por alguns instantes.

– Isso tem de dar em algum lugar. Aqui é a entrada para o quadro de energia.

– Eu sei onde fica.

– Tiago, mas o que significa isso. Como você veio brincar aqui.

– Depois conversamos sobre isso, mocinho. – Acrescentou Herculano.

– Mãe, não tem perigo nenhum.

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18 – Agora, pois está desligado. Mas é energia.

Seguiram por uma passagem estreita e saíram na caixa de energia onde ficam os transformadores e todo o circuito. Ali se refugiaram até que a chuva passasse. Mas sabiam que lá fora tudo estava consumado e que se sobrevivessem, deveriam, de fato, sair da cidade.

– Vamos aguardar aqui. A chuva vai passar.

– Estou com medo. – Disse Ana.

– Venha cá, filhota.

Herculano a tomou nos braços e a confortou. Ficaram na caixa escura por longas horas.

As crianças, exaustas, pegaram no sono. Vânia e o marido estavam de prontidão. Como que esperando uma nova ameaça.

– Durma um pouco, querida. Eu fico de vigia.

– Estou morta de cansada.

– Nós estamos. Mas precisamos aguentar.

Vânia se aninhou entre as crianças e começou a cochilar. Herculano, tateando, ficava atento a rachaduras ou ferros se derretendo. O escuro era total e tudo o que podia ser feito era ouvir. Qualquer ruído mais forte era sinônimo de alerta. A noite chegou, mesmo sem noção disso, o cansaço o venceu. Herculano também adormeceu. Era agora esperar um novo dia e torcer para acordarem.

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19 CAPÍTULO IV - Êxodo

Amanheceu depois do dia de cão. Não parecia melhor o ambiente. A caixa de energia escura estava intacta. Mas eles, os Elpis, precisavam caminhar muito para uma nova jornada. Precisavam seguir em direção a um horizonte incerto, porém, na convicção e fé de Herculano, o melhor lugar. Antes, porém, tinham de sair da caixa.

– Acordem. Vamos.

As crianças se entreolharam. Vânia parecia perdida no tempo e no espaço. A dura vida para quem sobrevive a uma catástrofe natural parecer mais difícil do que para quem a vive. Eles estavam nas duas situações.

– Vamos tentar sair daqui.

– Estou com fome. – Disse Ana.

– Sim, meu amor. Acalme-se. Vamos achar algo, está bem?!

Saíram do vão maior e percorreram o pequeno corredor estreito. Subiram na caixa de inspeção e avistaram a superfície. Um cenário desolador. Árvores retorcidas, carros derretendo, vidros em estilhaços e corpos. Muitos corpos. As crianças eram conduzidas pelos pais e todos andavam devagar para não pisar em algo que pudesse conter ácido ou num corpo esquartejado.

– Cuidado. Pisem com cuidado.

Caminharam até a portaria do prédio. Tudo retorcido. Subiram lentamente até o apartamento e entraram. Era como chegar num lugar estranho. Era como estar em outra dimensão. Não reconheciam suas coisas, seus pertences ou até mesmo suas identidades. As crianças foram para cozinha enquanto os adultos pararam na porta principal.

– Meu Deus. Parece que faz anos que deixamos tudo isto para trás.

– Parece mesmo, querida.

– Não sei dimensionar o que sinto agora.

– Eu imagino. Mas temos não muito tempo. Vamos separar umas roupas. Algum dinheiro e sair daqui.

– Claro. Vou ver as crianças e já volto para ajudar você.

Beijou Herculano com carinho e foi para a cozinha. Ele, lentamente, foi até o quarto e começou amontar uma pequena mochila. Camiseta, calças, meias e um par de botas.

Deixou um espaço para as coisas da esposa e colocou pilhas, lanterna e uma pistola.

– Para quê isso?

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20 – Não sabemos o que tem na estrada. Pessoas estão famintas. Podemos ser atacados.

Vânia colocou também algumas peças e uma pequena bolsa contendo joias dadas pelo marido em tempos de calmaria. Abriu o pequeno estojo e contemplou um par de brincos.

Seus olhos fugiram do caos por um momento e sua mente retornou ao dia quando Herculano a pediu em casamento. Deu-lhe um lindo anel e os brincos.

– Quero você linda hoje à noite.

– Por que?! Não sou linda agora?

– Digo. Quero você deslumbrante.

– Hummmm. O que há de tão especial hoje?

– Me espere, e você verá.

Guardou tudo na bolsa e foi buscar as crianças. Tiago pegou a mochila do dia anterior e juntaram-se em saída para o desconhecido.

– Para onde vamos, papai?! – Indagou Ana.

– Para um lindo lugar, querida. Um lindo lugar.

– Lá tem água?

– Sim, tem sim.

Saíram em fila indiana e chegaram até o estacionamento. O que sobrou do carro era impossível de aproveitar. Continuaram caminhando para achar algo que pudesse servir de transporte. Àquela altura, eles pareciam ser as únicas pessoas dentro do condomínio.

Mas não eram. Enquanto caminhavam puderam ouvir uns gemidos.

– Vamos ver o que é.

– Não, pode ser perigoso.

– Querida, pode ser um vizinho nosso em apuros.

Seguiram na direção do som. Acharam um homem deitado embaixo de uma cobertura metálica. O corpo estava quebrado em vários lugares e a carne viva, queimada por ácido, o deixava alucinado.

– Me ajudem. Por favor, me ajudem.

– Meu Deus, o que podemos fazer?

– Não temos remédio. Não há um hospital. Como removê-lo?

– Quero que me livrem destas dores. Desta queimação.

– Como?

– Sacrifiquem… sacrifiquem…

Vânia cobriu a boca em pavor e as crianças começaram a chorar.

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21 – Meu amor, leve as crianças para longe. Sigam na direção das vagas cobertas. Eu chego já.

Ela saiu com os filhos e mal virou a esquina de um dos prédios ouviu o estampido. Olhou e avistou o marido com a pistola na mão caminhando ao seu encontro. Aquele moribundo silenciou os gemidos.

– Meu Deus! - Disse Vânia aterrorizada.

Herculano a abraçou e a confortou. Depois de alguns instantes em silêncio. Deram continuidade do plano de partida. Acharam uma caminhonete e tentaram abrir. Claro, o carro estava trancado. Ele forçou um pouco mais e nada.

– Vamos até o apartamento e tentar achar as chaves. – Disse Tiago.

– Não. Eu vou. Fiquem aqui.

Herculano subiu até o endereço marcado na vaga. A porta do imóvel estava aberta e ele entrou pé ante pé. Foi passando os olhos na estante, na mesa de centro, num criado- mudo e num rack.

– Onde está?

Continuou caminhando até chegar num quarto. Os apartamentos eram iguais, por isso ele se sentia em casa.

– Onde está? Onde está.

De repente, uma mão o tocou por trás. Tomado de susto, Herculano se voltou e socou o que não vira. Acertou em cheio o rosto do dono da casa. O homem caiu e sem esboçar reação ali ficou. Seu corpo bastante machucado não o deixava reagir. Mas sentiu que Herculano talvez procurasse algo. Em gemido perguntou:

– O que você quer?

– Estou fugindo com minha família. Nosso carro foi destruído…

– Ali, ali…

Herculano olhou num móvel de canto e avistou as chaves do carro. Pegou e partiu em retirada sem ao menos olhar para o corpo do vizinho caído no meio da sala. Desceu correndo e encontrou-se com a família. Por um instante pensou em voltar e sacrificar também aquele outro homem, mas conteve-se e apenas disse:

– Entrem. Entrem.

– Tinha alguém lá? Alguém vivo?

– Não. Ninguém.

Arrancaram em disparada e seguiram para o sul. Enquanto dirigiam observavam os estragos da chuva ácida. Um misto de horror e tristeza. Em todos os lugares, carros

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22 batidos, corpos mutilados, casas destruídas e muita dor. Tentaram ouvir gemidos ou perceber se alguém fazia algum movimento, mas nada parecia ter vida naquele lugar. As ruas desertas e somente um cheiro forte de ferro derretido pairava no ar. O dia estava nublado e a estrada era longa.

– Precisamos nos afastar do perímetro urbano.

– Estamos perdidos. Perdidos.

– Ainda há esperança.

Seguiram pela rodovia federal que dava acesso à saída sul da capital. Ao passarem por uma ponte perceberam que o rio estava solidificado. As águas pareciam uma lâmina metálica e já havia correnteza. Este rio era um dos dois, que além de beleza e comida, também irrigavam e matavam a sede dos habitantes. Mas ali, depois da tempestade, apenas calor e sequidão.

– Tudo morto. Tudo morto.

A estrada ia deixando para o caos urbanos e à medida que se afastavam a paisagem parecia mudar. Incrivelmente diferente, em alguns pontos parecia que a chuva ácida não tinha caído e era possível ver algum verde. Mas pessoas, gente viva, não se via.

– Como pode estas árvores ainda estarem verdes?

– O outro fica aí ao lado. Acredito que suas águas devam ter encharcado este pedaço de chão e a chuva não deve ter caído aqui com força.

– É incrível.

Seguiram em frente. Poucos eram os espaços com aquele verde de esperança. Era como se de alguma forma Deus lhes guiassem e dissesse a eles que o caminho era por lá.

Assim como em Êxodo de Moisés, os sinais estavam em toda parte. Mas, ao mesmo tempo, o mesmo Deus lhes dava a provação necessária para robustecer a fé. Naquele momento, Herculano só queria seguir em frente. Era como se uma força interior o guiasse o mantivesse firme no rumo sul.

– O que te move a ir para lá?

– Querida, não sei. Mas acho que lá é uma saída.

Buscou na estação de rádio alguma informação, mas apenas um chiado insistente acontecia. Nenhuma voz, nenhum ruído que se aproximasse de alguém tentando contato.

O deserto de gente era grande e grande também o rastro de destruição. Mas havia algum lugar com sobreviventes e aquela chuva não era o grande Armagedom. Algo de mais grave ainda viria. Era uma questão de tempo.

– Vamos seguir em frente. Em algum momento acharemos parada.

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23 Deus te ouça.

As palavras de Vânia eram como uma melodia calma e inspiradora para Herculano.

– Ele quer. Tenho convicção.

CAPÍTULO V – Êxodo II

Dirigiram por mais de doze horas só parando para um breve descanso e comer algumas frutas que trouxeram. A ração do governo era pouca e não tinham como produzir a comida enlatada sem fogo. As crianças estavam abatidas e a pouca água já começava a deixar os menores com sinais de desidratação.

– Tenho sede.

– Calma, Ana. Vou parar em algum posto de gasolina. Deve ter alguma coisa em que podemos nos apoiar.

– Não achamos nada neste trajeto. – Disse Tiago

– Pelo menos combustível ainda tem. – Ponderou Herculano.

– Queremos água. - Insistiu Ana.

De longe viram uma placa de anúncio de abastecimento. Em alguns locais de paradas anteriores não encontraram ninguém e somente ferros retorcidos. Em outros puderam abastecer o carro, mas alimentos e água era impossível. Na fuga pela sobrevivência, os que conseguiram levaram também consigo o estoque de águas e alimentos. Os infelizes caíram pelo caminho. Por todo lado um rastro de morte e destruição.

– Tem alguém ali.

– Não tem ninguém.

– Tem, sim. Eu vi.

– Tiago você está delirando.

– Não, tem. Eu vi.

Pararam o carro e devagar foram até a conveniência. Abriram o que restou de uma porta e lentamente se dirigiram ao balcão. Um enorme freezer ainda mantinhas as luzes acesas e parecia estar refrigerado.

– Como é possível está funcionando?

– É energia solar. As bateias devem estar carregadas.

– Vamos, pegue o necessário em água e ração e vamos para o carro.

De repente, ouviram gritos vindos lá de fora. Vânia e Ana tinham ficado na caminhonete e estavam sendo ameaçadas por um homem estranho. Herculano e Tiago foram em direção

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24 a elas e começaram a atacar o homem na tentativa de defender mãe e filha. Herculano veio pela frente e na distração do agressor, Tiago o chutou as costas. Caiu ferido e depois de observar se estava imobilizado, trataram de prendê-lo com uma corda encontrada por ali.

– Volte lá e pegue o que separamos. Vou vigiá-lo para não reagir.

– Está bem. – Concordou o filho.

Colocaram as coisas no carro e antes de embarcar, Tiago percebeu que o homem queria dizer algo.

– Pai, ele está tentando dizer alguma coisa.

– Vamos embora. – Pediu Vânia.

Herculano desceu e se aproximou do homem. Caído, ele não conseguia falar com clareza e obrigou Herculano a se aproximar de sua boca.

– Diga. O que você quer?

– Ali. Ali.

Disse isso apontando para um quarto mais ao fundo do posto. Herculano disse para Tiago cuidar da mãe e da irmã e foi ver o que tinha no local. Devagar, ele abriu a porta e deixou a luz entrar. Com cautela foi observando tudo e lá tinham caixas e mais caixas. Máquinas de serralheria, pneus e baterias. Olhou com mais cuidado e não conseguia decifrar o que o homem queria mostrar.

“– Droga. O que será?”

Prestou mais atenção, tornou a olhar tudo e avistou uma pequena caixa, quase escondida atrás de uns galões. Era um estojo com mantimentos médicos. Abriu e notou que era remédios controlados para uma doença provocada por radiação. Entendeu então que o homem precisava daquilo para não morrer. Pegou tudo e voltou para o moribundo.

– Por favor. Não me deixe sem o remédio. É uma injeção. Faça a diluição dos frascos. E aplique. Por favor.

Vânia percebeu o que estava acontecendo e desceu para ajudar.

– Deixa. Eu faço isso.

Rapidamente preparou a dose e injetou no homem.

– Obrigado. Deus lhe pague. Me desculpe se pareci agressivo. Mas estava sem poder falar. Há três dias eu não tomo a dose do meu medicamento. Estava quase sem forças.

Agi no desespero.

– Sossegue. – Disse Vânia.

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25 – Não podemos deixar ele aqui. Vamos levá-lo para dentro da loja.

– Não. Eu fico aqui mesmo. Já, já me levanto. Vão embora.

– Mas você está fraco.

– Já disse. Eu consigo. Vão embora daqui. Antes que seja tarde.

– Tarde?! Tarde como?

– Vão embora. Eles podem aparecer a qualquer momento.

– Eles?! Eles quem?

– Salteadores. Um grupo de assaltante que andam em motocicletas roubando tudo que sobrou dessa calamidade toda.

– Quem são essas pessoas?

– São ex-soldados que conhecem os segredos do governo e que se rebelaram. Montaram milícias e agora estão usando o que aprenderam para garantir sua permanência na terra.

– Eu ouvi falar deles. – Disse Vânia.

– Ouviu?!

– Sim. São soldados treinados para catástrofes. Aprenderam as técnicas de sobrevivência em situações graves provocadas por fenômenos naturais. Mas se rebelaram e agora vivem por aí tomando tudo de assaltos.

– E como você ficou sabendo desse grupo treinado pelo governo?

– Os recursos para a preparação deles saiu do nosso banco. Foram capacitados para emergências ambientais. Algo deu errado no projeto. Eles se revoltaram e formaram um grupo paramilitar.

– Por que não me disse isso antes?

– Antes quando?

– Antes. Antes de tudo isso.

– Porque era segredo profissional.

O velho moribundo os interrompeu.

– Vocês precisam ir. - Disse entre tosses e gemidos.

Herculano e Vânia deixaram o homem e saíram dali. Ele pode ver pelo retrovisor quando quatro motos chegaram. Os homens não foram atrás da família, mas executaram o morador do posto e roubaram tudo o que acharam.

– Vamos fugir. Vamos sair da presença deles.

– Calma, querida. Não é nós que eles querem. Estão atrás de alimento e água.

– Pobre homem.

– Viemos uma época de incertezas. Tudo isso tem nos transformado em feras.

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26 – Somos bichos no sentido mais extremo da palavra.

– Concordo. Precisamos, desde agora, ficarmos atentos a esses outros seres.

Seguiram em frente. Rumo sul. Já estava bem tarde e resolveram parar em algum ponto para descansar e no dia seguinte retomar a viagem. O tanque do carro estava quase na reserva e na confusão com o velho do último posto não lembraram de abastecer. Acharam um posto pequeno, desses sem bandeira. Seguiram até o pátio das bombas e viram tudo retorcido.

– Aqui não tem nada.

Mesmo assim pararam para descansar. Pois depois de quatorze horas na estrada, socos e correrias não tinham mais fôlego para nada. As crianças estavam exaustas com fome e sede. Tudo o que tinham conseguido pegar na estrada estava sendo racionalizado. Mas uma coisa que desejavam naquele momento era um banho e uma boa sopa quente.

– Haa, uma sopa!!!!

Vânia riu.

– Quem sabe não achamos uma galinha por ai. Umas verduras e muita água para um banho de banheira….?

Riram e até as crianças se deixaram esquecer das dores por um minuto e caíram na gargalhada. Mas o fato era sério. Estavam a procura de abrigo e só tinham o carro.

Herculano precisa dormir, Vânia estava acabada e as crianças bem assustadas. Naquele lugar não havia nada, a não ser um pátio com bombas de combustíveis vazias. Um casebre mais ao fundo com as portas escancaradas e lá dentro apenas móveis quebrados e escuridão.

– Aqui não temos nada. Mas não aguento mais dirigir.

– Tudo bem. Descanse.

– Antes vou rondar o local. Verei se não há motoqueiros ou outro perigo.

– Está bem. Mas tenha cuidado.

O marido entregou a pistola para a mulher e saiu em vigilância pelo local.

– Qualquer ruído estranho, aponte a arma e atire.

– Não gosto de armas.

– Mas aqui não é gosto. É necessidade.

Caminhou até o pequeno casebre. Chutou a porta com cuidado e nada aconteceu.

Acionou a lanterna e foi clareando o espaço. Nada além de galões e latas de solventes.

Algumas mangueiras e extintores de incêndios. Nada de útil, para aquele momento, mas uma coisa o despertou. Viu um pequeno fogão a lenha e fósforos. Aqui poderia ajudar.

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27 Mais de perto viu que era uma espécie de cozinha. Tinhas duas panelas, uma leiteira e uma frigideira. Era um bom começo.

“Deve ter água por aqu”.

Olhou com mais cuidado por dentro do lugar e não viu água. Saiu, deu a volta e achou uns tambores lacrados.

– “É isso! Só pode ser água”.

Revirou e viu que tinha realmente água. Provou e lhe pareceu saudável. Não dava para um banho completo, mas daria para afugentar pouco do cansaço deles. O outro restante ele ferveria e todos comeriam uma bela refeição a base de ração.

CAPÍTULO VI – A terra quase prometida

Amanheceu e a família despertou do sono improvisado. Vânia e os filhos dormiram no carro, Herculano se ajeitou sobre uns papelões dentro do pequeno depósito. Com a luz do sol puderam observar a realidade do lugar. Era, sim, a estrutura de um pequeno posto de combustíveis, mais um sem bandeira e que, em tempos remotos, serviam como lavagem de dinheiro de políticos corruptos, o que aliás no nosso País nunca foi novidade.

– Ai, estou todo quebrado.

– Eu acredito. Deve estar moído.

– Sim, mas sempre esperançoso de algo melhor.

– Veja à sua volta, amor. O que pode ter de bom aqui?

De fato, Vânia tinha razão. Tudo em volta era apenas destruição. Algumas construções, casebre e até mesmo ruas de calçamento em bloquetes estavam destruídas. Era como se uma enxurrada tivesse invadido tudo e além de arrastado as casas e o que vira pela frente, também derretera boa parte que encontrara no caminho. Nenhuma alma, nenhum ser para contar a história.

– É um deserto.

– Sim, mais destruição.

Pegaram o resto da água e fizeram um breve asseio. Herculano saiu em busca de mais diesel para o carro e descobriu o corpo de um rapaz, enterrado entre pedras e areia.

– O frentista.

– Meu Deus! Que coisa horrível.

Pegou um galão de 20 litros e garimpou numa das bombas algum óleo. Como não havia energia para fazê-las funcionar, precisou bombear com o improviso, retirando do tanque

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28 pequeno que filtra o combustível. Só consegui o que estava nos dutos. Encheu o galão e depois despejou no tanque da caminhonete.

– Vamos pegar a estrada.

– Que lugar é este?

– Bom Jesus, Vale do Gurgueia. Já foi grande produtora de soja.

– Mas parece que nunca teve nada aqui.

– Mas teve, acredite. Você se lembra quando fomos a Brasília e dormimos num hotel por aqui?

– Nossa. Isso faz muito tempo.

– Sim, faz. Mas saímos à noite e você adorou a cidade.

– Verdade. Lembro de termos jantado num restaurante próximo à matriz.

– Isso mesmo.

– Caramba! Não acredito que só sobrou isso.

– É o preço de nossa ganância.

Herculano olhou mais uma vez o lugar e sua esperança, por um momento, deu lugar ao desespero. Tentou não ser visto naquela situação pela família, mas não se conteve. Um choro escondido, quase sufocado brotou dele e as lágrimas rolaram. Tiago, o maior, deixou-se abraçar pelo pai e também caiu em prantos. Uma mistura de sonhos, frustrações e culpas. O homem ajoelhou-se e olhando fixo para o céu cinzento batia no peito como que a proferir sua culpa e esperar a sentença. Nenhuma palavra, apenas o gesto desesperador de quem via a vida em preto e branco.

– Acalme-se, querido. Você não tem culpa disso. Ninguém tem.

– Temos, sim. Poderíamos ter feito mais.

– Fizemos o que podíamos. Nosso papel era conscientizar, falar, explicar, mostrar para as pessoas que não devíamos ser tão gananciosos.

– Mas não foi o bastante.

– Eles, os poderosos, não ouviram e não quiseram entender.

– Tudo destruído.

– Levante-se. Precisamos de você, da sua coragem.

– Não aguento mais.

– Não diga isso. Sem você nós não conseguiremos.

As crianças o abraçaram e de joelhos todos ficaram por alguns instantes. Herculano precisava recobrar a consciência, os sentidos e pensar de forma racional, por mais que o momento só pedisse desistência. Olhou para os filhos e esposa e no impulso ergue-se.

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29 – Vamos sair daqui.

– Vamos.

Pegaram o rumo do Sul. De Bom Jesus até a fronteira com o estado da Bahia era cerca de 300 quilômetros. O combustível talvez desse para chegar, e não poderia correr o risco de ficar em algum local deserto, no sentido de ermo, pois a seca castigava a região e o aquífero já havia secado. As notícias que chegavam à capital dando conta de que por lá ainda havia água, na verdade eram camufladas pelo governo, talvez para não aterrorizar ainda mais as pessoas. Porém, Vânia se lembrou de alguns amigos que haviam feito a fuga para o lugar bem antes do cataclismo, antes da seca prolongada e do elevado das temperaturas, mas só agora tinha se atentado que nenhum deles mandara notícia desde então.

– É isso!

– Isso o quê, querida?

– Meus colegas falavam da necessidade de ir embora da capital. Muito fugiram bem antes de tudo o que vivemos. No começo das secas e do calor escaldante.

– E o que tem isso? Nós falamos disso várias vezes. Só decidimos tarde demais.

– Eles nunca mandaram notícias. Agora entendo o motivo. Não tinham conseguido. Não sobreviveram. O vale não existia mais.

Herculano contemplou a face da esposa e o terror estava claro em suas feições. A mulher, estarrecida, observa a paisagem árida e pelo espelho do quebra sol fitou os filhos. Eles também observam a tudo e um silêncio profundo dominava o carro naquele momento. Era como se as mentes deles estivessem conectadas numa única resposta, numa única situação. Todos pensavam a mesma coisa e só queriam a mesma coisa: sobreviver.

– Vamos em frente. Em algum lugar havemos de parar e buscar um pouso definitivo.

– Quanto mais longe estivermos do árido, melhor será para nossa sobrevivência.

– Querida, essa tese só serviria se fosse um dilúvio, um tsunami. Na seca, tanto faz.

– Não, mais acima, mais chance de água.

– Será?

– Acredite. Também li sobre o fim do mundo.

Seguiram em frente. O dia já estava acabando e o cansaço parecia dominar. De um lado e outro da estrada só se via a aridez e o desolar. Nenhuma ave, nenhum bicho ou sinal de uma pessoa. Apenas quilômetros e quilômetros de devassidão. Um tom cinza, apagão, morte. Uma paisagem melancólica e triste.

– A esperança aqui foi a primeira a morrer.

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30 – Não, querida. O sertanejo sempre foi um forte. Aqui ela se foi há pouco.

– Como você pode dizer isso?

– Onde paramos, o que vimos. As pessoas ainda resistiam. Lembra?

– É verdade. Mas tinha algum recurso. Já os esquecidos...

– Estes também. Tinham a fé.

– Mas isso não bastou.

– Não percamos a nossa.

Brecaram o carro de repente. Um homem vestido com farrapos surgiu na frente deles.

Portavam um facão e um porrete. Tinha na cintura algo que parecia uma caneca e levantando o chapéu deixou mostrar o rosto esquálido e escurecido pelo sol. Fitou-os por um instante e sem dizer uma só palavra caminhou na direção de Vânia. As crianças, principalmente o Tiago, estavam atônitas. Fitavam o desconhecido como se ele fosse uma aberração de outro mundo.

– Fiquem calmos. – Disse Herculano.

– Pai, ele vai nos atacar. Bradou o menino, em pânico.

Herculano abriu sua porta devagar e caminhou na direção do homem. Passando pela frente do carro, olhou a volta para ver ser não tinha mais alguém com ele. No entardecer, não pode perceber nada. Buscava consolar o filho mais velho e a pequena Ana. O menino estava em cólicas. Herculano sabia que não criara o filho para sobreviver. O mundo mágico dos smartfones e tablets não deram ao garoto uma chance de pensar na própria vida em perigo. Os joguinhos de videogame não valiam na vida real. Os filhos da geração Y, Z eram penas figurantes naquele cenário.

– Volte para o carro. – Gritou Vânia de dentro da caminhonete.

Herculano seguia na direção do homem que continuado parado, imóvel olhando para o interior do veículo. Tiago, do seu lado, esboçou uma reação para fugir, mas parou. A pequena Ana se encolhia no colo do irmão e Herculano chegava mais perto. De repente...

– Água. Um pouco de água, por favor.

Herculano recuou e esperou que o homem se voltasse para ele.

– Tenho sede. Não quero mais nada. Apenas a água.

– Querido, dê água. Dê água.

Herculano consertou com um aceno e Vânia pegou um pouco de água. Baixou lentamente o vidro e serviu ao estranho, que bebendo em goles longos saiu em direção ao mato.

– Vocês estão bem? – Quis saber Vânia.

(31)

31 Herculano voltou para o carro e com um olhar severo fitou o filho.

– Meu Deus, Tiago. Você precisa se controlar. Seu medo não lhe permite agir.

– Pai, desculpe. Mas não sei reagir a isso. Não fui educado para isso.

– Querido, por favor. Isso não é hora.

– Meu Deus, numa situação maior ele morre e nos mata também.

– Acalme-se.

Debruçou-se sobre o volante e ficou assim por alguns minutos. Ergueu os olhos na direção do retrovisor interno e viu o filho quieto num canto, olhar perdido para o nada.

– Perdão, meu filho. Você tem razão. Criamos vocês numa redoma.

Sem resposta do mais velho, Herculano ligou o carro e seguiu em frente. Seguiu a vida.

Estavam quase na cidade de Cristalândia, onde fincariam moradia, embora disso não tinham sabido, ainda.

– Vamos parar aqui.

– Onde estamos?

CAPÍTILO VII – A cidade e sua história

– “E há esperança quanto ao teu futuro, diz o Senhor, porque teus filhos voltarão para os seus termos. Jeremias 31:17” – Entoou o padre Anselmo, ao fim da missa. O pároco deu a benção e a igreja, com seus míseros paroquianos, iam saindo devagar.

– Herculano, preciso lhe falar. – Disse o padre.

– Pois não, meu caro.

– Estamos numa seca maior do que de costume. A cidade está perdendo sua última capacidade de água. Não chove há três anos e desde que você chegou sua missão tem sido realizar campanhas e expedições nos arredores em busca de água.

– Padre, sinto não ter conseguido nos últimos meses.

– Não é culpa sua. Quero propor uma força tarefa para cavarmos um poço.

– Como? Estes homens não possuem força suficiente. Estamos fracos, desnutridos. Não sequer alimentos básicos, frutas...

– Eu sei. Mas precisamos encontrar forças.

– Temos ferramentas, sim, não temos é vigor físico.

– Eu sei, mas estou disposto a ajudar.

– E quando o senhor pretende chamar o povo?

– Amanhã, depois do terço. Os homens devem estar todos na cidade Aí falamos do plano.

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32 – Como queira.

Herculano deixou a igreja e foi encontrar-se com Vânia e as crianças. A cidade era um fiasco de povoado. Das igrejas evangélicas que existiam, todas fecharam as portas.

Muitos fiéis fugiram para rumos incertos e os que ficaram retornaram ao catolicismo ou a ele se aliaram. Nem todos estavam na igreja de Cristo por convicção, mas a esperança de se agarrarem a algo que os mantivesse vivos. Nos tempos de crise, a igreja Católica foi estocando alimento e água. Todos os dias. Durante os últimos dez anos.

Pelas ruas, casas e casebre se mantinham de pé. Ruas esburacadas, paredes caindo, poucas ainda mantinham um vigo original. A energia elétrica era raríssima e o comércio não sobreviveu. Cada um se virava como podia e a única salvação era o alimento estocado na igreja. A ração do governo, com validade infinita, e a água que conseguiam pegar, em chuvas sem ácido. As praças vazias, o céu sempre sem luz e o cheiro de podre soprando.

– Está quase no fim.

– O que disse, querido?

– O alimento está quase no fim. E nem sinal de água.

– Acredito que teremos uma saída. Tenha fé.

– Eu tenho.

– O que o padre queria com você?

– Organizar uma reunião amanhã, após o terço. Quer cavar um poço.

– Como?!

– Isso mesmo. Cavar um poço.

– Como? Com que forças? Nossos vizinhos mal conseguem se segurar. A ração é pouca.

A água é pouca.

– Precisamos disso. As buscas já não nos dão esperanças. Percorremos longos trechos e nem uma gota. Tudo o que temos vem dos estoques da igreja e de chuvas não ácidas que caem vez por outra.

– Espero que vocês encontrem outra solução. Pois um poço neste solo deve ser muito fundo. Os riscos são enormes.

– E o que temos a perder?

– Eles eu não sei, mas eu tenho você.

– Vamos tentar. É o único jeito.

Herculano saiu da presença da esposa e foi caminhar pelos arredores da chácara.

Gostava de perambular pela terra seca e observar nos galhos retorcidos uma certa

(33)

33 poesia. Contemplava o lugar como se ali fosse Canaã, a terra do leite e do mel.

Conhecedor da história e leitor assíduo de tudo, lembrou-se do enredo que fora criado em torno de Brasília, o sonho de dom Bosco. Pensou que ali também poderia acontecer o mesmo com ele.

_ O que você tanto procura, meu filho? – Quis saber Matias, o velho dono da casa.

– Nada meu amigo, nada. Gosto de pensar que aqui vai acontecer um milagre.

– Sua fé me espanta.

– Por quê?!

– Você a pratica com tanto entusiasmo. Minha Rosa acha isso bonito em você.

_ Bonito são vocês. E a propósito, obrigado pela acolhida. Somos gratos eternamente.

– Nós é que agradecemos. Vocês nos trouxeram luz.

Herculano se afastou e continuou sua caminhada em direção a parte alta da chácara. O caminho era um pedregulho claro, que por aqui chamavam de seixo. Foi subindo a ladeira e foi se afastando cada vez mais da pequena casa. Parou, e olhou para trás como quisesse ser visto ou avistar algo. De longe viu Matias e sua Rosa na varanda e retornou seus pensamentos a dom Bosco. ““Entre os graus 15 e 20 havia uma enseada bastante longa e bastante larga, que partia de um ponto onde se formava um lago. Disse então uma voz repetidamente: – Quando vierem escavar as minas escondidas no meio destes montes, aparecerá aqui a terra prometida, de onde jorrará leite e mel. Será uma riqueza inconcebível.” O ano era 1883, no mês de agosto.

Mas ali, em 2029, Herculano não cria neste milagre e sua caminhada pela terra de Matias terminou ali, no tronco de um angico-branco. Olhou em volta e notou que existia, em tempos remotos, uma pequena poça de água. O solo rachado escondia o que um dia foram palmeiras, talvez de buriti, planta que só brota em nascentes. Herculano verteu uma lágrima e fixou o olhar naquele pequeno espaço circular.

– “Meu Deus, o que será de nós”?

O homem culto e de palavras fáceis sempre tinha uma resposta científica para explicar tudo aos seus alunos e aos seus pares, mas jamais deixou que a ciência inundasse sua fé com fraquezas. Ao mesmo tempo em que cria na explicação científica, atribuía a ela uma manifestação de Deus. E para explicar sua “dicotomia” usava sempre a expressão:

“Deus não é mágico.”

A gota que rolou do seu rosto fez uma marca no solo árido. Um pequeno rosto de mulher, uma pequena silhueta disforme. Rezou e voltou para casa.

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