por
Sílvia Palma Sampaio Cíccu
Dissertação apresentada ao Departamento de Teoria Li terária do InsU .. tu·to de Es tudos da Linguagem da Uni versidade Estadual de Campi nas como reguisito parcial para obtençao do título de Mestre em Letras.
CAMPINAS - 1985
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COMISSÃO JULGADORA
Jesus Antonio Durigan (Orientador) Marisa Philbert Lajolo
Carlos Alberto Vogt
AGRADEÇO
a meu orientador
Jesus Antonio Durigan
pela disponibilidade responsável e apoio amigo.
aos professores do curso de pós-graduação aos demais professores e funcionários do Instituto de Estudos da Linguagem
aos primeiros mestres
Maria LÚcia Santaella Braga Flávio R. Kothe
- à
amigaMaria Luisa Coelho Dal Rio
a quem devo a leitura interessada e valio sas sugestões para a redação final.
a CAPES
a Moacyr Scliar
em especial aos meus pais e peço perdão pela falta das palavras;
e ao Eugenio Giuliana
Nino
que tão bem compreenderam as minhas au
"Bem aventurados os tempos que p~
dem ler no céu estrelado o mapa dos caminhos que lhes estão aber ·tos e que têm de seguir~ Bem aven turados os 'b~Inpos cujos caminhos' são iluminados pela luz das estre las! Para eles tudo
é
novo e toda via tudo lhes pertence. Oé
vasto e contudo nele semundo encon tram
ã
vontade, porque o fogo que arde na sua almaé
da mesma natu reza que as estrelas."Lukacs
r.
I.1. I. 2.II.
Il.l. I I. 2. I I. 3. III. INTRODUÇÃO • o • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • O UNIVERSO DA PERSONAGEM . . . • . . . • .o papel social das personagens . . . .
o sentimento de mundo e a discriminação PERSONAGEM E MITO . . . . , , , . . . , , , , , ,
As personagens e seus mitos . . . .
O mito degradado
As imagens recorrentes . . . • . . .
MI'TO, MEMÚRIA E PERSONAGEM •••• , •••• , • ,
Página 1 13 l3 25 37 40 45 63 77 III.l. O universo demoníaco , . , . . .. . .. .. .. . . .. 82 III.2. O humor • . . .
7... ...
94 IV. IV .l. IV.2. IV. 3.v.
VI. VII. A ORGANIZAÇÃO NARRATIVA ,, . . . , , ,, . . . . O foco narrativo • • • • • • • • • • • • • • o • • • • • • •O tempo e o nexo causal . . . • . , O espaço . . . . CONCLUSÃO GERAL
.
... .
BIBLIOGRAFIA...
NOTAS ••••••••••••••••••••••••••••••••• 101 101 108 117 124 135 144RESDr-10
Este trabalho tem por objeto as obras de Moacyr Scliar produzidas de 1970 a 1980 cujo tema
é
a imigração j~ daica em Porto Alegre.Dos vários elementos que as compoem, tomamos em particular o mito que
é
um dos seus aspectos predominantes. Buscamos assinalar como se comporta, o que revela, o que si:;J:_ nifica e qual o seu papel no texto sclir iano. "Desarticula-mos"a narrativa destacando todos os outros elementos prese~tes em sua ficção, com a finalidade de ressaltá-los,para de pois relacioná-los e assim não perder o dinamismo próprio do, universo ficcional do autor.
Grosso modo, o nosso propósito é verificar co mo se articula o seu texto, o que reflete e instaura1 quais os procedimentos utilizados na sua elaboração; enfim, preten demos verificar como e por que este modo particularíssimo de organização narrativa guarda afinidade com o nosso tempo, e desempenha um papel na Literat.ura Brasileira.
Autor: Silvia Palma Sampaio Ciccu Orientador: Jesus Antonio Durigan
INTRODUÇÃO
Moacyr Scliar é escritor gaúcho cuja produção se compoe de crônicas, contos, novelas e romances.
Tendo publicado seu primeiro livro em 1962 as Histórias de um Médico em Formação, foi na década se guinte que produziu a maior parte de sua obra de ficção. Das dezessete obras elaboradas até 1980, apenas três
o
foram antes de 1970.
A crítica tem se ocupado da sua produção. Em 1979, o Departamento de Estudos da Linguagem, da UNICAMP,
- (l)
lança a coleçao Remate de Males . Dentre os artigos pu blicados encontra-se "A Solidão dos SÍmbolos: (uma leitu ra da obra de Moacyr Scliar) "de Carlos Vogt (2), que con sidera que "a singularidade de Moacyr Scliar na literatu ra brasileira deve-se a dois fatores fundamentais: em primeiro lugar
à
qualidade de sua produção1 e, em segundolugar, ao fato
deser ele o único escritor no Brasil
a
trabalhar sistematicamente sobre o fenômeno da imigração e das colônias judaicas, para transformá-lo em temas cons tantes de romances e contos". Carlos Vogt completa, a se guir, que também fatos da vida social e política do pais estão presentes na ficção de Scliar.
Os diferentes grupos de imigrantes desempenh5: raro um importante papel na colonização do Rio Grande do
sul. O escritor, ao tratar da imigração em suas obras, e, então, fiel a um fenômeno regional e sintoniza-se com uma
2.
linhagem da prosa sulina pelo e..mprego literário deste te-ma.
Estes aspectos - a qualidade da ficção
Scliar e sua temática única no Brasil -
é
que nosde
leva ram a trabalhar com os textos deste autor. Acrescente-se a isto o fato de que, apesar de sua projeção nos meios literários, não há um estudo crítico de maior fôlego so bre sua ficção. O presente trabalho representa apenas a tentativa de, revelando aspectos da ficção de Scliar ain-da não aborain-dados em profundiain-dade, abrir um espaço maior para a obra deste escritor nacional reconhecidamente ta lentoso. Naturalmente,
é
necessário relativizar a expres-são, já que abrir espaço efetivo para um escritor implica divulgá-lo, significa levá-lo ao público, enquanto que nosso trabalho é acadêmico. Consideramos, pois, este "es-paço maior" mais no sentido do trabalho representar uma possível fonte de referências e inspiração para outros es tudos sobre Scliar.O objeto da nossa pesquisa é constituido por cinco obras A Guerra no Bom F~, O Exército de um Homem Só, Os deuses de Raquel, (O Ciclo das Águas) e O Centauro no Jardim, que foram publicados de 70 a 80. As suas ou tras obras - romances e novelas - poderão eventualmente ser mencionadas a medida que servirem ao nosso interes-se. ( 3 )
o critério de seleção das obras se justifica pelo fato de todas pertencerem ao mesmo perlodo, isto e, de 70 até 80, além de terem o mesmo tema: a imigração ju-daica em Porto Alegre.
Julgamos que restringir a pesquisa a somente cinco obras não prejudica a visão global sobre o romance
de Scliar,já que, a nosso ver, elas representam um
cami-nho básico para a interpretação scliriana e são, por
is
so mesmo, extremamente representativas. Além disso, gua~
dam certos aspectos recorrentes que transbordam os limi-tes dessas narrativas e nos remetem diretamente as suas demais obras, como veremos logo adiante.
A
nossa
leitura da ficção scliriana represe~ ta apenas uma possibilidade de abordagem entre outras .Trataremos os textos sob o ponto de vista da sua
organi-zação, assim como dos seus aspectos sociais e históricos~ Seja corno for, a nossa abordagem pretende apenas ser "9 próprio objeto funcionando". (4) Deste modo, desmontar a obra, isolando os seus elementos, representa uma atitude convencional, talvez didática. Não significa destruí-la: ao contrário, significa colocar em relevo estes mesmos e lementos para que sejam melhor perCebidos em sua
corre-lação dinâmica com os outros aspectos que compoem a nar-rativa, possibilitando o seu entendimento como um todo. No entanto, estamos conscientes de que há elementos que, embora percebidos e intensamente sentidos, resvalam co~
tinuamente e escapam a qualquer tentativa de apreensão. Cumpre, a seguir, registrar a posição de al guns críticos que tendem a enquadrar a ficção de Scliar no gênero fantástico,
já
que seu discurso narrativo pri-vilegia o insõlito eé
marcado pelo gosto do incomum.Poder-se-ia perguntar, de início: como en quadrá-la no gênero fantástico, se, até hoje, nao se en
4 •
controu uma definição definitiva para o próprio fantástico?
Basta, por exemplo, verificar os critérios
desencontradosque sao adotados pelos diversos autores (5) na tentativa de definir o gênero. A diversidade de definições quase sempre acaba sendo condicionada pelo ponto de vista particular ado tado por cada critico ou grupo de críticos. A discussão nao resolvida até hoje sobre a conceituação do gênero, revela, em última instância, o problema fundamental de se tentar de finir definitivamente um gênero que se alimenta de sua pró-pria paralogia. Apesar da sua não resolvida definição julg~ mos que a narrativa de Scliar pode ser considerada fantásti ca, levando-se em consideração, inclusive, a sua natureza , de que trataremos a seguir. Antes, porém, cumpre registrar a este propósito uma oportuna colocação de Todorov. Para este autor, não
há
necessidade de que uma obra encarne per-'feitamente o seu gênero. Aliás, continua, há pouca probab~
lidade de que isto ocorra. Portanto, mesmo que o fantástico fosse um gênero de limites demarcados e as ,textos de Scliar
-se afastas-sem dele sob certos aspectos, este fato nao teria maior importância porque, como bem diz Todorov, não é neces sário que a obra encarne fielmente o seu genero para que a ele pertença.
Por isso julgamos nao haver nada que impeça a inclusão das obras de Scliar no gênero em questão, embora, nosso objetivo maior não seja o fantástico em Scliar, ape-sar de nos ocuparmos dele, como não poderia deixar de ser. Por causa das diversas conotações do vocábulo Fantástico optamos por um outro que - não tão comprometido como este expressa bem a natureza da sua narrativa: é o termo
insóli-to, que retomaremos continuamente no decurso da abordagem. A narrativa de Scliar possui natureza dúbia e
o insólito do seu universo ficcional provém de uma ambigüi
dade básica que se realiza na tensão entre diferentes p~
los. A ambigüidade não se resolve no sentido de se poder optar por uma solução apenas ou por um caminho definido. Por esta razão há uma contradição nunca resolvida em sua ficção, um conflito que se projeta no foco narrativo, no espaço, no tempo, enfim,no n1vel da organização romanesca,
e ainda na personagem, no seu relacionamento com o grupo, e até mesmo na sua vivência rnitica.
Todos estes aspectos apontados acima
serao
desenvolvidos no decorrer da análise. Citá-los, como fare mos a seguir, e assinalar alguns de seus aspectos serve apenas para situar
o
leitor, introduzí-lo na problemática das obras.O foco narrativo (6) é ambíguo.
o
narrador scliriano narra um mundo em que acontecimentos naturais, comuns e corriqueiros se mesclam a acontecimentos insóli tos por nao condizerem com o senso geral de normalidade.T~dos sabemos que homens nao voam, entretanto, em A Guerra no Bom Fim, "quatro sublimes violinistas voadores" cortam os céus de Porto Alegre. Sabemos também que não nascem den
-
-tes na vagina, que macas nao sao barcos e que nao existem centauros.
O narr-ador1 além de apontar fatos insõlitos,as sinala também atitudes insólitas nas personagens,jã que não
obedecem aos parâmetros de normalidade estabelecidos pelas convenções sociais. Assim é que Samuel se atira, com sua e
6.
gua, do alto de um edifício; que Mayer faz palestras para a companheira galinha, a companheira cabra
e
para o
comp~nheiro porco; que Raquel conserva as aparas de suas unhas
em
um pote,
eatravessa
bairros distantes a se desfazer de lenços, de pulseiras e carteiras; e que Esther,velha,
percorre loucamente as ruas de Porto Alegre, com seu velho jipe vermelha, de antena gigantesca, ornado com uma estatueta, a procura de "clientes" sob o sol e sob a chu-va. Não só nos são revelados fatos impossíveis, como tam-bém os próprios personagens são-nos revelados impossibil~ dades - são todos sistematicamente desrnistificados; ne nhum traço de dignidade se mantém, dificultando a identJ_-flcaç~o e a empatia.
Aos fatos e atitudes insólitas, junta-se a estranheza proveniente da fachada desencontrada dos so~
nhos e devaneios das personagens.
Fatos, atitudes insólitas e fantasias se mis-turam de tal soxte, que se torna difícil separá-los. Este conjunto se mescla, por sua vez,a fatos e atitudes perfe1 tamente coerentes com o senso de normalidade ditado pelas convenções sociais. Acabam se nivelando na mesma "natura-lidade", isto é, o narrador não coloca o insólito como in sólito; ao contrário, o banaliza.
-No entanto, o leitor nao consegue sentir o universo romanesco como banal. E
é
rompendo as fronteiras entre o incomum e o comum, nivelando-os, que o narradorfor-ja um mundo ambíguo. Estabelece-se uma oscilação não resol vida entre o normal e o anormal. Este fato implica determ~
Queremos apenas deixar registrados alguns dos aspectos responsáveis pelo insólito em Scliar, criados p~
la ambigüidade.
Depois de focalizá-la no foco
narrativo,trata--la-emos no plano da personagem de Scliar, uma vez que es ta também
é
ambígua e, talvez por isso, se configura insól i ta.
As personagens de Scliar, aparentemente seres comuns, amesquinhados por uma rotina massacrante que dis
solve até as suas mais ínfimas aspirações são, no entanto,
no seu mundo particularíssimo, seres também extraordiná rios. O cotidiano sufocante
é
que os induz ao sonho,é
que os faz inventar seus próprios mitos, feitos de retalhos, que lhes dão forças para se manterem no eixo da história. Se, por um lado, parecem insignificantes na sua vida exte rior, social, são, por outro, iluminados e se sentem toca dos pelo divino, pelo mito, consumidos/consumados na chama do sonho.Vivem o mito do resgate, na busca de um senti do
maior para suas vidas fragilizadas.
Paraisso
se inves tem do poder de heróis e vivem em um duplo universo - o da experiência e o do mito. No entanto~ o mito não sobrevive sem o apoio do real;é
no real e pelo real que a person~gem luta. Afinal, a mola de suas ações se situa no pólo da experiência:
é
seu próprio resgate. Por outro lado, também o real não pode ser suportado por ela, não fosse o mito que vai conferir dignidadeà
sua vida. A convivência rea lidade/mito não é, entretanto, harmoniosa. Estabelecem-se atritos e tensões que vão apenas provar o grau de di sere8.
pância que separa os universos. Ocorre a oscilação entre o real e o m1tico, o descompasso entre o social e o indivi dual.
A oscilação ocorre também no modo como a pers~ nagem vive o seu tempo/espaço. Naturalmente, o tempo/esp~
ço mitico só pode ocorrer dentro de um tempo/espaço reaL são, pois, simultâneos e interdependentes. Porém, a pers~
nagern os sente de modo diverso. O tempo/espaço real e sem pre maldito, ao passo que o tempo/espaço mitico é refúgio da opressão, apesar de não se colocar, de fato, apenas co mo o avesso irreversivel do mundo da experiência. Também ele, sob determinados aspectos que abordaremos no decurso da análise, se revela limitação e dor.
Dissemos anteriormente que as obras por nós analisadas são exemplares do romance scliriano. Para con firmar essa nossa hipótese, cumpre assinalar que todos es ·tes aspectos já registrados se mantêm, guardadas as devi das proporçÕes, em Mês de Cães Danados, Doutor Miragem, Os Voluntários e ainda nas obras pós-80: Cavalos e Obeliscos, A Festa no Castelo e A Estranha Nação de Rafael Mendes. Ca da qual a seu modo mantém a relativização da matéria narr~
da, a fragmentação espaço-temporal, e a ruptura interna da
personagem a oscilar entre o real e a fantasia. Diferen cia-se, no entanto, Doutor Miragem, cujo titulo apesar de sugerir a personagem sonhadora de Scliar, acaba se config~
rando uma obra mais "realista". Isto se deve sobretudo ao fato de a personagem se desenvolver sem graves desequill
( 7 I
b:tios. Embora seja uma personagem "redonda" e, portag to, evolua e se modifique conforme as circunstâncias exte
riores, esta modificação nao
é
radical comonormalmente
acontece com as personagens das obras de Scliar.As circuns tâncias não chegam a afetar o doutor Miragem a ponto de lhe provocar uma reaçao de fuga para outro universo. o dou tor Miragem aproxima-se de Joel adulto, e de Guedali.Há ainda outros aspectos comuns entre estas ou tras obras e as cinco trabalhadas por nos - a frustração e o desengano da personagem, a presença das imagens miticas, os fatos e atitudes insólitos, o humor, o grotesco, etc -que trataremos ainda. Isto se confirma na última obra p~
blicada por Scliar - A Estranha Nação de Rafael Mendes que tem como terna central a busca da identidade. Rafael Mendes vive obsecado pela lembrança de um pai misterioso
-também Rafael Mendes - que o abandonara para ir lutar, se gundo constavar na Guerra Civil da Espanha. Um dia encon tra a oportunidade de desvendar o mistério através da lei tura de certos cadernos escritos por seu pai e que lhe sao oferecidos por um velho adivinho, Samar-Kand. De acordo com Carlos Vogt {S) , a personagem se depara com "dois
dos de aproximação de suas origens: uma, genealógica,
mo e, portanto, mítica e alegórica; a outra, mimética, e, canse qtientemente histórica e circunstancial, no sentido em
é
recortada pela memória e pela experiência pessoaln.que
Esta aproximação mítica e alegórica, através da leitura dos cadernos, acaba sendo frustrante e desmisti ficadora. A história de sua família é rastreada até o seu primeiro ascendente, Jonas, o.· profeta b1blico engolido p~ la baleia.
A história de Jonas juntam-se várias outras, em
um contínuo de absurdos. Curiosamente, elas quase se repelO.
tem, no sentido de conterem sempre personagens
idealistas
e estouvadas. Assistimos ao esvaziamento sistemático de seus mais simples sonhos,
à
luta entre o universo mitico e o da experiência, enfim, assistimosà
continuarepetição
de histórias de desastres - aspectos estes recorrentes nos
textos do autor. O insólito nesta obra, como nas
outras, é
também alcançado pela ambigüidade básica a que já nos refe rimos e desenvolveremos durante o trabalho.
Esta última obra de Scliar, como se pôde notar
pelos breves comentários acima expressos, confirma a
nos
sa proposta de que as obras por nós analisadas são repr~
sentativas do seu romance, são estes traços
recorrentes,
estas tendências básicas que configuram o particularíssimo "estilo scliriano".
o
universo ficcional de Scliar, por causa da ambigtiidade básica que o organiza, parece fragmentar-se.A~sim, o !oco narrativo apresenta um mundo dúbio, oscilante, enviezado e oblíquo, onde o impossível ameaça alcançar o possível e vice-versa. Sua personagem se fragmenta entre degradada e divina. O seu mundo fragmenta-se à medida que oscila permanentemente entre o real e o mítico, rompendo a crença no universo perfeito, uno e íntegro. O tempo e o ~
-~ se fragmentam porque tempo-espaço real e continuamen te atravessado pelo tempo-espaço mítico e vice-versa. Tam bém, a memória e o mito se fragmentam ao cumprirem papel ambíguo.
o
insólito se realiza nesta tensão e atrito. Por este motivo, delimitar fronteiras na tentativa de sis tematizar toda esta ambigüidade é trabalho vão e inútil.Estabelecer o ponto exato em que avesso e direito se encon tram
é
impossível. Os pólos assinalados não são imperme~veis um ao outro.
O objetivo deste nosso trabalho
é
tratar, ju~tarnente, do caráter dialético de sua visão particular do mundo; desta tensão, do processo, do dinamismo de uma nar
rativa "emperrada
11em cujo universo até mesmo o mito-terr..:!:
tório de plenitude - cumpre papel ambíguo, ora como fator de salvação da personagem, ora corno fator de sua própria condenação. E
é
esta articulação do mito em Scliar - alia daà
memória - que realiza a dialética do resgate."Não cessarei a luta da Mente
nem a espada dormirá em minha mão
enquanto nao tiver construido Jerusalém na verde e alegre Inglaterra."
O UNIVERSO DA PERSDNAGEM
A personagem de Scliar é um ser insólito porque, ao mesmo tempo em que incorpora o divino, incorpora também
a mesquinhez. Enquanto personagens do mundo social, encarnam
a mediocridade; são heróis do dia-a-dia, senão anti-heróis , no sentido da perda do estatuto dígnificante e edificante do herói tradicional.
Neste primeiro momento trataremos
particularmen-te da personagem enquanto membro de um grupo, desempenhando seu papel social. De certa forma este nosso procedimento p~
de parecer redutor,
já
que a personagem não tem apenas o seu papel social. Mas a nossa atitude se faz necessáriaà
medida que permite melhor ressaltar os aspectos que configuram sua personagem. Em um segundo momento trataremos da personagem enquanto individuo, com sua visão singular do mundo e dos h~mens, para, finalmente, efe·tivarmos a integração destes as -pectos.
I . l . O PAPEL SOCIAL DAS PERSONAGENS
Joel, de A Guerra no Bom Fim é criança inexpre~
siva, estudante comum que, adulto, torna-se vendedor de jóias. Sem salda, encurralado em uma vida sem grandes pers-pectivas, tenta a escalada social através da conquista de alguma jovem rica.
Mayer Guinzburg, o Capitão Birobidjan de
-14.
cente em que se recusava a estudar, porque o estudo era "só um mecanismo de ascenção social", e a trabalhar, para nao enriquecer algum "porco capítalista11
, acaba se casando, g~
nha a loja do sogro e vê a vida passar, carregada de tédio,
massacrando seus sonhos. Mayer se insurge, às vezes,
oon:-tra esta vida que o consoon:-trange. Acaba por perder a loja, a família,e morre, só, em uma Pensão/Asilo.
Miguel, de Os Deuses de Raguel1 em termos de papel social revelase um ser insigni:ficante e "prescindi -vel1
' . Internado em um hospicio várias vezes, trabalha na
loja de Raquel, alheio a tudo e a todos. Empregado relapso,
passa as horas a rezar e, aos domingos, constrói um templo.
Marcos, de (O Ciclo das Águas), ainda sob o mesmo aspecto, se inscreve no universo cinzento do homem sem qualidades. Quer ser médico, mas termina apenas como, professor de História Natural de uma pequena faculdade em situação instável: . . . " não era bem o que eu queria, mas nao consegui coisa melhor; o pouco que pagavam era melhor que nada. Aceitei o emprego de professor numa pequena facul dade particular" {9). Casa-se com uma colega sua, psicÓloga, tem dois filhos, um apartamento e seu Ylolks. Aos domingos visita a mãe no Asilo.
No entanto, difere dessas quatro personagens o protagonista de Q_Centauro no Jardim, o centauro Guedali.Em um primeiro momento, temendo a discriminação, recusa-se a desempenhar qualquer papel na sociedade. Após a operaçao,em
conseqüência da qual alcança a normalidade, inicia a sua escalada no mundo capitalista. Sob o ponto de vista bur guês, Guedali
é
considerado, no final das contas, um bemsucedido homem de negócios.
Como se pôde observar,as personagens das quatro primeiras obras inscrevem-se no quadro social como
comuns, anônimos e obscuros.
seres
Nas personagens secundárias, talvez se possa observar melhor a presença deste t.raço de mediocridade e desvalorização do homem que chega a irromper no trágico~
Grosso Modo, Scliar as define com poucos tra ços, mas os exagera e isso as aproxima da caricatura. As
semelham-se a estranhos seres sem vontade, fantoches sacudi
dos por um indiferente destino que se diverte em manipulá
-~os. MOVem-se obscuramente na narrativa e parecem dançar ma cabra dança cujo tema é a frustração e o desengano.
Shendl, mãe de Joel, de A Guerra no Bom Fim,por
exemplo, faz um elenco de suas alegrias - a bala de café,, o filme "triste e colorido", prêmio de luta e trabalho, o vestido estampado. Todas são desmanchadas por equívocos sem sentido: um tapa nas costas, uma dor de barriga, um esquec! mento. Acaba seus dias em um asilo, a cantar canções em iídiche e a embalar um boneco a quem dera o mesmo nome do seu filho morto, Nathan.
Samuel, seu pai, depois da égua que morre, ape-ga-se a uma gata, consolo dos seus dias vazios de desempre-gado. Ela morre assada no forno do fogão a lenha, por esqu~
cimento de Shendl. Termina seus dias também só, em uma casl nha no distante morro da Velha1 espaço estéril e constrang! do. Morre"assado"por gat.otos alemães.
Em O Exército de um Homem Só, vamos encontrar Léia, mulher de Mayer, gorda, amarga, plena de tiques, a
16.
esfalfar-se no trabalho, sonhando poder um dia ir à praia, e o sonho sempre adiado. Também ela sonhara com uma sacie-dade mais justa, e reconhece que aquilo fora apenas um so-nho impossivel: " ... Era tudo soso-nho, aquilo ... " (p.71)
Também Ferenc e Maria, pais de Raquel de Os Deuses de Raquel, veem seus sonhos esfacelados e anseios desfeitos. Perene jamais pôde ser professor de latim, co mo sonhara. Gastou a sua herança para fundar a "Escola de Altos Estudos da LÍngua Latina", sem se dar conta de que este sonho não podia caber na realidade sócio-cultural em que vivia. E Maria teve, então, que se desfazer de suas
jóias - último vinculo com a familia - para se estabelece
rem como comerciantes em Porto Alegre. Jamais pôde recupe-rá-las. Tiveram que se sujeitar a serem comerciantes, como os "judeus do gueto11
• Perene é a única das personagens se-cundárias que na o
-
-
e muito apegado as tradições, haja vis ta o fato de colocar sua filha em uma escola católica por causa da sua própria obsessão pelo latim.Como ocorre com os demais personagens secundá-rios, a esperança e a realização acenam para Esther de
(O Ciclo das Âguas) que também no limiar de alcançá-las as perde inexplicavelmente. Jamais consegue recuperar os laços com os seus - suas cartas não têm resposta; sonha ser a Rainha da América e não passa da rainha de um prostf bulo; sonha com uma família como a que inventa nas cartas e termina seus dias unida a um vendedor de giletes, até ir para um asilo onde passava o tempo a cantar velhas can çoes em iidiche, cançoes de um espaço/tempo para
perdidos.
Em O Centauro no Jardim, a mae de Guedali, a-pos o seu nascimento, fica prostrada, sem falar, sem co roer. Seu pai, perplexo, não consegue se atribuir pecados suficientemente graves para merece~ o castigo de ter um
filho meio homem e meio cavalo. E vao se descartando
dos
sonhos, suas aspirações vão sendo cortadas. Eles têm que viver em função do pequeno centauro, atados
à
sua condi -çao especial.E assim as personagens de Scliar vao sendo elaboradas como heróis-vítimas de um destino que sistema-ticamente as massacra. Esta impossibilidade sistemática de realização dos sonhos mais banais e os anseios con tinuamente cortados acabam não parecendo possíveis e criam um "inverosslmil" sempre ligado a uma forma variá vel de massacre. Parecem sofrer de um desastre inevitável, corno se estivessem condenadas. O elemento trágico aquis não depende do caráter da personagem, ou de qualquer culpa ostensiva que mereça punição; origina~se de uma situação arbitrária expressa no fato de jamais se encontrar uma explicação plausível para o esfacelamento dos seus sonhos mais medíocres. Por que Shendl perde o filme "triste e
co
lorido" e seu vestido mais bonito? Por que Samuel perde a gata? Por que Léia não consegue ir
à
praia? Por que Maria jamais recupera as jóias?E
Esther jamaisalcança a
resposta às suas cartas? Os nmis simples sonhos feitos de insignificâncias e banalidades, as mais ínfimas aspiraçÕes saG para sempre adiadas.
Em Scliar nota-se, então, o ~1sentimento
trági-co da vida", trági-como sugere o elentrági-co dessas alegrias falhadas
18.
e esperanças abortadas.Trâgico a conta gotas, dissolvido na rotina, consumindo a personagem em paciente morte lenta que
é,
na verdade, um fim adiado. Cumpre registrar adespropor
-çao existente entre a alegria estreita e a profunda frustra çao que acarreta a sua desin·tegração. Tudo
é
tào facilmentealcançável, mas sempre impossível.
Não é apenas a
frustra-ção de uma miudeza, mas sim a soma destas frustrações ras -teiras
é
que provoca o trágico. Porém, talvez paradoxalmen-te, este trágico tem a sua faceta cômica: o leitor acabapor se divertir com este "azar" recorrente e sem sentido e
torna-se joguete de emoções contrastantes.
Ao lado destes pequenos desejos, há um desejo comum a todas estas personagens secundárias - o sonho, o desejo de preservara sua própria identidade étnica através de seus filhos. Mas, como os outros sonhos, também este se' desintegra. A maior cota trágica provém da queda deste dese
jo que significa o risco da perda desta identidade.
os
pais são cumpridores fiéis das normas e preceitos da reli gião judaica e neles a resistência é mecanismo de defesa contra as influências estranhas que ameaçam sua tradição.~ tarefa complexa dizer da diversidade das culturas hebrai-ca e brasileira em contato, porque isso equivale a dizer também da diversidade de seus fins e valores. Sem nos fur tarmos completamente a isso, ater-nos-emas, no entanto,ape-nas aos objetivos e valores mais gerais evidenciados na obra de Scliar.
Os pais dos heróis sclirianos tentam, inutilmen te, reconduzi-los às suas origens e encontram sempre a sua resistência, irremediavelmente seduzidos pelos "pecados do mundo", pelas tentações da sociedade burguesa. Assim
é
quefazem seus filhos estudarem em escolas hebraicas, que fest~
jam o seu calendário, o Chanuka, o Iom Kipur, participam das comemorações pelo Iam Hagueto, realizam a cerimônia
Shabat, freqÜentam a sinagoga e fazem jejum. Todos
do
os
seus filhos são circuncisados e
passam, na época adequada,
pela cerimônia do Bar Mitzvah. Reagem com mágoa às mudanças
relativas
à
conservação de hábitos e religião judaicos. Re~gem com inconformismo
à resistência que seus filhos
impõem
às suas tentativas de trazê-los de volta a antiga casa.
Samuel, por exemplo, de A Guerra no Bom Fim
abandona o apartamento em que vivia com Joel como forma de
protesto, ao vê-lo no quarto com duas morenas e, ainda por
cima, "goim".
Em Os deuses de Raquel, os pais de Raquel nao aceitam sua união com um "gói" e, por causa disso, Raquel escuta o pranto da mãe "agudo''r "monocórdio" 1 "ui vinho me
lancôlico", "sibilante", que a persegue dia e noite. Asseme lha-se ora
à
uma gata, oraà
distante sirena dos bombeiros, ora ao vento. Este choro constante,ininterrupto1 revela dor também constante e ininterrupta.Em O Exercito de um Homem Só, o pai de Mayer lhe dizia: - "Foste criado para estudar a Torã"; ao gue Mayer lhe dizia: . . . "o essencial não
é
estudar,é
fazer."(p.23). A certa altura o pai continua: "Quando dois homens se reúnem para discutir
a
Torá o Santo Espírito paira so bre eles. ( . . . ) A maior riquezaé
o estudo, a religião", ao que Mayer contesta: - "Não ( . . . ) A maior riquezaé
a posse dos meios de produção, estás ouvindo? Estudo, religião! ~ bem como diz Marx: a religiãoé
o Ópio dos povos~ "(p. 2 420.
E
seu pai
lhe perguntava, então, quem era Marx, fato que revela a total ruptura dos seus mundos. No final, seu pai, inconforrnado e desiludido, balançava a cabeça e lhe predizia muito sofrimento.Esther, de {O Ciclo das Âguas), por sua vez, apesar de prostituta - fato a que nunca se habituou haja vista o grave sentimento de culpa revelado nos seus so nhos em que o pai a apontava, ameaçador, condenando-a
exige a circuncisão do filho mesmo sob os protestos do "Mohel", que acusa Marcos de indigno por ser filho de uma "impura". Exige também a sua iniciação: ... "o senhor vai levá-lo
à
sinagoga para o Bar-Mitzvah. Ah~ isto não:gritou o Mohel indignado. O filho de uma impura! Nunca!
"
(p. 70)
Também o pai de Guedali exigiu a sua
circunci
-sao, mesmo sob os protestos do Mohel, escandalizado por ter que realizar um dos preceitos das leis judaicas em um cavalo. Apesar de sofrer o risco de ver o seu segredo di vtllgado ao mundo - o filho centauro -,aos 13 anos o faz passar
pela
cerimônia do Bar M~tzvah. Ao casar-se comuma
"gói" 1 sua mãe lhe diz - "Ela não é da nossa gente ( ••• )
Nunca vou me acostumar com ela ( ..• ) • Podias ter arranjado uma moça judia. "(p.llS) Lamento e desilusão
é
o que sua fala transmite.Como se pôde observar, estas personagens secu.:2 dãrias - os pais dos protagonistas - preservam os valores da comunidade e reagem sempre com inconformismo face a sua mais grave desilusão: ver no seu herdeiro, perpetuador da tradição e responsável pela sua sobrevivência, a
desin-tegração dos valores que consideram sagrados.
No entanto, se por um lado ocorre o esforço p~
la preservação e transmissão de certos valores de uma g~
ração
à
outra, por outro nota-se também o seu escamotearnen
to e a aquisição de outros valores exclusivos da sociedade brasileira. Isto significa que o imigtante- ou filho de imigrante - já não
é
mais imigrante e, de certa forma, es tâ ocorrendo wn processo de absorção da cultura brasileira, e, em, particular, da cultura sulina. E o herói de Scliar seé
ainda judeu,é
também brasileiro e também gaúcho,con~tituindo uma realidade original.
..
certos traços culturais brasileiros sao udevo-r a dos", 11
digeridos11
e absorvidos pela personagem. Daí te rem o valor d±nâmico de transformação de mentalidade,gosto e sensibilidade. Tal fato ocorre quase que exclusivamente com a personagem principal que toma chimarrão, faz desp~
chos, casa-se com as "goim"; que aprende a dançar o "fox-crot" 1 o maxixe 1 a rumba, o tanqo e a conga; que tem verg.2_
nha do sotaque dos pais; que come carne de porco, xixo, p~
lenta, churrasco e que adota o 11dialeto" gaúcho. Além do emprego do tu que - se não
é
uma caracteristica exclusiva do Sul -,aliado a outros aspectos llngüisticos o reforça, encontramos expressões como:- "Buenas, que aqui me espalho" onde Buenas revela a "con-taminação 11
típica das fronteiras. {O Centauro no Jardim, p.
27) •
Scliar aborda certos problemas da classe média intelectualizada brasileira como,por exemplo, o empecilho burocrático enfrentado por Marcos - {O Ciclo das Âguas)
22.
para ver financiado o seu projeto de saneamento de águas; os valores e os fins que contam para a inserção na elas-se burguesa nacional, notada de modo mais evidente em A Guerra no Bom Fim e O Centauro no Jardim; a submissão
às leis do mercado em A Festa no Castelo; o comprometime~ to, enfim, com a História do Brasil ainda neste último e também em Mês de cães Danados. Aqui ainda se revela, atra vés de Picucha, certo apego às tradições gauchescas, bus cando desmistificá-las. Outro exemplo de ligação com o gaúcho
é
a imagem do Centauro que, transportada para o cenário especifico do Sul, sugere a analogia com o homemdos pampas, tipo humano sempre ligado ao cavalo. De
acor-do com Regina Zilberman, "assuminacor-do o corpo daquele que sintetiza a natureza sulina, Guedali
é
antecipadamente um- h ,(10)
gauc o .
Portanto, se há urna forte atmosfera judaica, há também uma forte atmosfera brasileira e, particularme~
te1 sulina. Ocorrem permutas entre as culturas em contato; nao a sua simples justaposição, mas a interpenetracão de uma por outra. Naturalmente, esta acomodação se faz nao sem atritos, como veremos.
A punição e a culpa surgem em nao raros mo mentes na narrativa de Scliar , Marcos, personagem irrel~
vante de A Guerra no Bom Fim, foi punido porque "abando -nou" seu povo; o arcanjo Gabriel - segundo Joel - casti gou os judeus ricos que não se importavam com seus ir mãos, petrificando-os; Elias, a qualquer momento sofreria o castigo dos céus por ter-se casado com uma "mulata pec~
cado de sexo" com pesadelos terriveis, assim como Esther
de (O Ciclo das Aguas}. Também ocorre na ficção
deScliar a desproporção entre a falta cometida e a punição, e este fato alcança a exacerbação no castigo por faltas não cometidas. Samuel acaba "churrasquinho de judeu11 • E Fritz grita: - "O Gládio de Deus", que o isenta da cul-pa por ter assassinado o judeu. A justiça fez-se pelas mãos de Deus, da qual julga-se apenas instrumento. Neste caso, a culpa de ser judeu já responde pela punição.
Samuel concentra o medo e o ódio dos três ir maos, representa 11
algo que indeniza o pai deles do sofri menta". :E: perseguido e escorraçado - sua captura segue o ritual nazista:
- "Quem
ê? -
pergunta o velho sem abrir a porta.- Policia: Gestapo:"
...
-"Te lembras do forno crematório, judeu?"
o
escorraçamento do vilão pode até se justifi car, mas não o de Samuel, Justamente por isso, por essa dor inflígida a uma criatura humana desamparada que " cone-entra o medo e o ódio dos outros homens",
é
que Samuel se configura Pharmakós (ll), bode expiatório. E a grande ironia -é o escorraçamento não do vilão, mas da vitima.Também Leão, (O Centauro no Jardim) sente~se punido por fal~ que
cados
suficie·~~emente
ignora. Não consegue atribuir-se p~
graves para merecer a punição de ter um filho centauro. Estes fatos provocam uma sensaçao
24.
de arbitrariedade, de sem sentido, da fatalidade de que já falamos e tornaremos ainda a falar ,que se abate inexorável mente sobre o destino das personagens de Scliar que, como se pôde notar, configuram-se seres humilhados, lnfimos e mesquinhos. Essa mesquinhez das personagens vem reforçada também pelos motivos grotescos que permeiam a sua ficção.
E assim que Shendl é surrada a golpes de gata assada e que Samuel vira "churrasquinho de judeu11
; é igual mente grotesca a cena de Léia a perseguir Mayer por todo o apartamento, atirando-lhe a batedeira e o liquidificador, batendo-lhe com a antena de TV, tentando afogá-lo na pia, e culminando com a tentativa de fazê-lo engolir sua alian ça. O grotesco (trataremos deste aspecto em tópico
à
paE te, no capitulo III do nosso trabalho) em Scliaré
um as pecto quase que exclusivo das personagens secundárias;ocor re aqui o exagero do ridículo, o ridiculo hiperbólico, que provoca a comicidade e quebra, de certa forma,a tensão trá gica. A personagem se realiza entre cômica e trágica, tal vez mais trágica visto que até mesmo o grotesco/ cômico cumpre função de ame~quinhá-la ainda mais. Por tudo isso, aproximam-se da caricatura, onde a personagem perde sua di mensão humana. Este fato ajuda a criar o insólito.A carica tura representa a redução da personagem, que se revela qu~ se que paródia do próprio ser humano e, se istoé
de certa,/
forma cômico,
é
também trágico. Tr~gico como a solidão e o/
isolamento das personagens que términam seus dias derrota das ou pelo tempo, ou pela doença ou pela fatalidade. ~ as sim que Samuel, Maria e Ferenc terminam suas vidas,
sós,
confinados em apartamentos ou casinhas distantes; Shendl eEsther em Asilos, a cantar velhas cançoes em iídiche, can ções de um tempo/espaço de paz, sem as ameaças do presente em uma terra onde não conseguiram fincar raízes e onde dis solveram os seus ideais.
Acabamos de ver que a personagem principal de Scl.iar, no seu papel social, não apresenta qualquer traço que a distinga do homem comum da massa anônima. Excetua-se, no entanto, Guedali. V.imos que este aspecto de "pegueneza" se acentua nas personagens secundárias, que se
aproximam
da caricatura. Mas será necessário verificar ainda as im plicações deste tipo de caracterização da personagem. Ain da não discutimos estas implicações porque resta assinalar o sentimento de mundo experimentado pela personagem prínc~
pal de scliar e a discriminaçào que sofre. O aspecto da mesquinhez, do aviltamento mesmo, aliado a um tipó especl fico de sentimento de mundo e
à
discriminação,é
que nos permitirá alguma conclusão. Por este motivoé
que nos l.imi tamos, até o momento, a apenas colocar a questão sem, no entanto, discuti-la.I. 2. O SENTIMENTO DE MUNDO E A DISCRIMINACÃO.
As personagens principais de Scliar sentem-se, em geral, presas de uma rotina sufocante que as humilha e degrada, Esta rotina não se manifesta de modo categórico
m
sua primeira obra - ~uerra no Bom Fim. Não há um antag~ nismo absoluto entre Joel, "rei e capitão, terror dos na zistas", e o mundo que o cerca e no qual se integra. Nota--se, inclusive, um tom de empatia em relação a ele. Apenas
26.
o mundo ê vazio, carente de atração e vida. E, se bem que inslpido, Joel não o odeia. Apenas não lhe basta, e tenta, então, preenchê-lo através da vivência mítica. Neste mundo mítico, o nazismo
é
o móvel das açoes de Joel que, para combatê-lo, se investe do poder de um grande herói.No en tanto, este fantasma não se revela uma real fobia, uma cruel obsessão e não o aterra efetivamente.A discriminação existe e
é
apontada freqüent~mente nesta obra. As famílias judias se isolru~ em um mesmo bairro, o Bom Fim, e as crianças estudam em um mesmo colé gio. Todos os contatos que mantêm com 11
0S outros11 se arti culam em tensão, porém esta tensão torna-se rarefeita; a discriminação presente em toda a produção de Sclíar não
é,
aqui, levada a sério pelo narrador. Isolam-se todos os g~
rotos judeus em um mesmo bairro, em um mesmo colégio.O úni' co que ousou sair do clã e ingressar
em
outraescola,
foi punido: Marcosé
humilhado e discriminado no colégio. O fu nileiro polonês, após provocações, gritava à turma: "Ju deus de uma figa ( ... ) estão fazendo sabãozinho de vocês. Estão assando vocês nos fornos, que nem galinhas depenadas. Que nem churrasco~n (p.20); nos jogos de futebol, o time da Rua João Telles provocava a turma de Joel: "Heil,Hitler"(p.56). Rafael é perseguido na sexta-feira da Paixão, gua~ do
"até as
pedras da Rua Fernandes Vieira estavam cheias de ódio contra os judeus" (p. 51) i o cão perseguia os j~deus, os homens os "caçavam11 •
O narrador se utiliza dos verbos 2ersesuir e caçar judeus (p.51), onde caçar
é
revitalizado pela combinaçao inusitada com o objeto. Ironicamente, apesar da
força do verbo, a caça em si acaba se tornando cômica, reve lando-se farsa. A ferocidade
é
de mentira, as tensões sao-mentirosas. Não há tragicidade. Joel e a turma, quando eram agredidos, "se abraçavam uns aos outros e riam-se, se da varo tapas nas costas e riam, rolavam no chão de tanto rir".
(pn. 21, 50, 59, 64).
A seriedade no tratamento do terna acaba dilui da em risos e brincadeiras. A "guerra de bosta" contra os negros da Colônia Africana, por exemplo, foi pior que suas batalhas contra os nazistas! De qualquer forma, a discrimi
nação, apesar de não ser levada muito a sério, existe
e,
muito provavelmente, é um dos fatores responsáveis pela vivência mítica de Joel.
Já adulto, no final da obra, nota-se uma trans formação no procedimento em relação
à
discriminação, que passa a ser efetiva: Joel não mais "se ri, rola no chão de tanto rir" quando Mali o recusa por serem de 11ambientesdi ferentesu. Agora, já adulto, sente a pressão
do
mundo,exp~ rimenta uma vaga sensação de angústia, mas luta, solitá rio, na sua escalada social.Vejamos, a seguir, qual é o sentimento de mun do experimentado por Hayer Guinzburg, o Capitão Birobidjan.
Ao contrário de Joel,o mundo de Maye:r' lhe é insu portável e o oprime. Registra-se agora não mais o tom de mal estar da primeira obra, mas1 de aversão. Esta aversao, a partir desta obra, se firma e se mantém também na próx! ma.
28.
sacrantes, no paroxismo da recusa a um mundo que o tolhe,e constrange, Mayer sente que nflutua imovel, meio afogado." Nos momentos de maior estreiteza, de corpo e sonhos atados, o narrador diz: 11
Jamais se faria ao largo". 11
Minha vida, d_! zia a Léia-
é
como esta pilula achatada, branca, amarga". {p.Sl) "Minha vidaé
vazia- dizia a Léia" {p.57). Por três vezes se rebela contra er,ta vida ~asmacenta e fundaNova
Birobidjan. A frase "Iniciamos agora a construção de uma
· d d " • 'd
nova socJ.e a e , e constantemente repetl a. Esta frase e a resposta direta a "flutua imóvel, meio afogado", também re corrente, portanto, compensatória de uma intensa frustração.
são
duas frasesque funcionam corno contraponto de
fundo,co~rente subterrânea tensa que percorre a narrativa.
Da rotina aniquiladora, Mayer só escapa através do mito. "Quase afogado", surge a centelha do mito, com a promessa de resgatá-lo. "Quase afogado" nao só pela vida despida de sentido, mas também porque o mundo o estranha e o discrimina, grita: -"Não era sonho, não~ Era um ideal, Léia. Um grande ideal ... " (p.71) e "Iniciamos agora a cons trução de uma nova sociedade".
Se, na primeira obra, a discriminação ocorre en tre o judeu e "os outros", em o Exército de um Homem só occr re entre o próprio grupo. Seu próprio povo - para o qual funda Nova Birobidjan, que representa uo fim das peregrin~
çoes, a redenção do povo judeu11
- o recusa. Este isolamento de Mayer do seu próprio grupo, que
é
também o das person~gens das outras obras, dá a medida da sua própria solidão. Rompidos os laços com seus irmãos a personagem se torna tra gicamente desamparada.
O relacionamento de Mayer com as outras pers~
nagens se pauta absolutamente sempre em equivocas e desni
vel~
Todas o classificam como louco, abobado e
dividem-se
entre as que se apiedam dele e as que riem às suas custas. Curiosamente nós, leitores, também nos dividimos entre a piedade e o riso. E: inegável a nossa solidariedade para com o Capitão Birobidjan, a nossa pena e compreensao. Mas
é
inevitável também o nosso riso diante da sua patética s~ ciedade utópica. Retomando, o filho o estranha: ••• "Para que eu quero livros? Para ficar abobado como tu e fugir p~ra o mato'?" (p.l06) J.Goldman pergunta: - 11
Serã que ele está louco?" (p.90) E Marc Friedman - "Sempre tão louco; tão impulsivo" (p.91). E Santinha - "Sempre acheti que fos ses louco (p.97). Outros lhe diziam: uTu és louco1 Mayer. Tens que ir para o hoseicio" (p.l31) Os sobrinhos "debocha vam dele11 {p.48); Georgía ri às suas custas.
Âs vezes Mayer .•• "queria falar; queria contar sobre Nova Birobidjan, sobre os companheiros Animais, o Pa lácio da cultura, as plantações; sobre Nova Birobidjan"
(p.l03). Mas não podia, nao conseguia, não o deixavam. Lo go que vai para o Asilo tem os gestos tolhidos, as pal~
vras trancadas no mais absoluto mutismo. Como contar seu sonho? Para quem? "Melhor calar e rezar. Mayer Guinzburg
( ••• ) rezava, rezava muito ( ••• ) não tinha forças •.. pref~
rível rezar." (p.l55) E quando fale., os seus companheiros sao incapazes de entenderem a "grandiosídade" de pertenc:: rem a esta nova sociedade. O equívoco
é
a tônica na comuni çaçao entre eles: "Iniciamos neste momento a construção de uma nova sociedade ( ••• ) Octávio e Davi Benvenisteouvem-30.
-no sem entender nada;Ana Sousa ronca sonoramente". (p.l60). Benveniste, o judeu egípcio, quer mudar de pensao pois o considera um"11
anti-semita sujo:" o Capitão inicia um discur so sobre o trabalho, "mas ninguém parece interessado".
{p.l68). Rebelde solitário, Mayer busca forças na
utopiapara dar sentido ao próprio banimento. Seu discurso utópico
acaba sendo, ironicamente, como estamos vendo, um falso diã
logo, ou seja, um monólogo.
Se Joel vive uma vida despida de sentido, e o
sentido está no mito, também com Mayer acontece o mesmo e o
mesmo acontece ainda com Miguel de Os deuses de Raguel.Este
havia sido internado algumas vezes no hospício e
todos
o
consideravam louco. Dai também ele, como Mayer, ser discri minado. No entanto, nao há conflito como em O Exército de um Homem Só, porque Miguel não incomoda a ninguém. Aliás, muito pouco se conhece de Miguel, personagem desprezada do mundo dos homens e do universo do narrador. Apenas no final da obra esta personagem avulta e a identificamos, então,com o deus-narrador. ~ o momento da epifania, da revelação. Sa bemos, porém, que Miguel vive trancado em si mesmo, afasta do de todos, alheio aos próprios clientes da loja onde tra
lha. Dai seu sentimento de inadequação.
r•Haguel reorganizou a loja ( . . . ) Bem que teria mandado Miguel embora; o homem não se adaptava ao novo sis terna, confundia tudo." (p.l07) "A loja está cheia de fregue ses ( . . . ).Miguel está sentado num tamborete, atrás do bal cão. Balança o corpo para frente e para trás, murmurando qualquer coisa." (p .117) "Encontra a loja em grande balbúr
dia. Miguel fez confusões inc~1veis - dizem os empregados. Pior, nos Últimos dias sumiu. Ninguém sabe dele. No
Hosp1
cio não está ( ... ) 11
-
"t:
a última, Miguel~ A última,te? Mais uma, e vais para a rua~"(pp.l21-122).
ouvis
A palavra do ser absolutamente solitário
é
o monólogo. Assimé
que Miguel, tanto quanto Mayer, acabam falando apenas consigo próprios em um divórcio permanente com os outros homens, lacerados entre seu universo interior e o exterior. Estes dois heróis realizam a experiência do ihsulamento com seu modo estéril de vida social e de seu distanciamento do mundo.E no final da obra que descobrimos que, se Mi
guel é alheio a tudo, não o é a Raquel. Ele é o olho
que
observa, do alt.o, todos os seus atos. Ela e o templo, que constrói nos fins de semana, dão significado a sua insign~
ficante vida.
Marcos, de (O Ciclo das Aguas), cOmo as outras personagens de Scliar, sente também o mundo corno peso. Vi vendo em espaços degradantes - o apartamento sufocante, a maloca e o laboratório povoado de ratazanas, invadido pelo odor fétido de um riacho/esgoto vizinho, Marcos sente a
sua existência corno um fardo. Também ele ~ive uma vida tran cada. "Minha mulher entra no quarto. Que houve, Marcos? -Inquieta-se por mim, por meus silêncios"; (p .19) .
Marcos, como os outros, sofre a discriminação que,
no seu
caso particular, provem do fato dele ser filho de uma prostituta.O sentimento de mundo vivido por Gueda l i de O Centauro no Jardim
ê
análogo ao das outras person~ gens ..• " a sensação de diferença, de bizarria me impregna,3 2.
se incorpora ao meu modo de ser". E lhe traz angústia; " •.. angústia que cris-talizará, que se depositará para se~
pre na medula dos meus ossos, nos germes dos meus dentes, na raiz dos meus cabelos." (p.35}. Enquanto centauro, sen tia a "vida miserável de monstro encurralado." (p.59). Era aquele que causa horror, do qual todos fogem, aquele que nao se compreende, o absurdo, o inconcebível. "Em prantos, atirei-me ao chão: ai, mãe, ai, pai, eu queria tanto ser gente, eu queria tanto ser normal" (p. 61). Seus irmãos que.:!:, xavam-se: "nunca poderei trazer em casa um cliente, um ami go, uma namorada, tudo por causa daquele bicho horroroso (, •. ) . - Não vais poder ir
à
festa, Guedal.1.: - gemeu - Ele nem sabe de ti, não tive coragem de contar." (p.62).A amputação da parte eqüina lhe assegura o trânsito entre as pessoas normais. De excluído que fora, passa a integrar a classe dominante. E a discrim.1.nação d(-2
saparece. No entanto, apesar de aceito, Guedali continua a sentir o mundo como um fardo. "Eu não queria mais a 'l'ita, nem os meus filhos, nem o trabalho, nem os amigos, nem o condomlnio horizontal, nada n. (p.l82) A discriminação nao é mais a causa do seu sentimento de tédio e frustração.Iro nicamente, o menino-centauro contemplava o sonho de tor nar-se blpede; agora, completamente humano, contemplava o seu próprio fantasma, o sonho de ser novamente centauro.
Mas isso
é
irreversível.Vimos, a-té o momento, que a personagem de Scliar na sua função social encarna a mediocridade. Exce-tua-se, como se pôde notar, Guedali. Vimos que a rotina
tende, a dissolver os seus sonhos mais banais, e configuram-se heróis-vítimas de um destino inescru tãvel. Vimos que o sentimento de mundo experimentado pelas suas personagens se articula nas obras irrompendo como um sentimento de mal estar em Joel, intensifica-se através da aversão, recusa e crispação em Mayer, mantém-se em Miguel, para, enfim, diluir-se em Harcos, através do desencanto e da nostalgia.
Já
o sentimento de pânico vivido por Guedaliem um primeiro momento, transmuda-se, depois, em intensa frustração. As personagens sentem o mundo como peso. Alg~
mas, como Mayer e Miguel, se rebelam efetivamente contra a rotina que as entorpece. Outras, como Joel e Marcos, embo
ra também rebeldes, aceitam melhor o fardo, como inevitá vel cont.ingênc.ia. Porém, afinam-se todas no mesmo sentimen to de impotência e confinamento. Vimos também que a discri minação está presente em todas as obras de Scliar. Em A
Guerra No Bom Fim, rarefeita em um primeiro momento, e mais intensa em um segundo momento, quando a personagem
passa a sentir-se de fato agredida, sobretudo pela discri minação sócio-econômica que sofre. Esta discriminação so cio-econômica expressa pelo autor revela a mentalidade t l pica da sociedade capitalista cujo valor essencial e o di nheiro. Outro aspecto social tratado por Scliar e a reve rência de Joel a estes valores e regras, como único modo de garantir seu espaço na sociedade. Em O Exército de um Homem SÓ a discriminação torna-se exasperada, assim como em Os Deuses de Raquel onde Mayer e Miguel se antagonizam
com absolutamente todas as outras personagens.
Já
em elo das Águas) efetua-se de modo indíreto,por Harcos3 4.
O Ci-ser filho de uma "impura". Mas não há um confronto direto entre Marcos e os outros. Es-ta exacerbação da segunda e terceira obras, sobretudo, explica-se, talvez, de um lado1 pela inc~ pacidade das personagens entenderem o mundo - dai a person2. gem discriminar o mundo - e, de outro, pela impossibilidade de serem entendidas e,aceitas pelo mundo - dai o mundo também discriminar a personagem. Esta
é
urna das tensões pr~ sentes da obra de Scliar. Em O Centauro no Jardim, por sua vez, a discriminação, profunda no inicio, vai-se diluindoà
medida que a personagem conquista o seu espaco social no contexto urbano brasileiro, e que presta tributo ao seu va lor maior, o dinheiro. Como JOel, Guedali submete-se ao j~go do poder econômico como única forma de ascensão social.
A conjugação destes três aspectos por nós abor-dados - função social inexpressiva, sentimento de mundo e discriminação revela, em última instância, o social como pólo maldito: o desempenho social da personagem
é
sempre inexpressivo. A personagem nunca sente o seu trabalho, a sua função na sociedade como algo, de fato, importante. F. despida de ambicões de sucesso e de glória. Algumas persona>
-gens, inclusive, abandonam seu trabalho, como Mayer e Miguel. Para outras ele é uma contingência, uma obrigação apenas, mas frus·tante, como ocorre com Nan~os. Joel e Guedali, no entanto, se distinguem por razoes que tratare mos mais tarde. Retomando, a personagem de Scliar sente um
grave sentimento de mal estar e confinamento em relação ao pólo social porque não o entende e não é entendido por ele.
~ justamente nesta relação que se csta,_belece um forte atri t.o e as relações sociais tornam-se invariavelmente reifica dor as.
Um aspecto acaba interferindo no outro e int-en sificando-o. A discriminação reforça o mal estar e vice--versa. E o desprezo da personagem pelo seu papel na socie dade, aliado ao sentimento de mal estar, aliado, por sua vez1
ã
discrim.inacão, dão a medida da sua inadequação ao mundo em que se circunscreve. Esta inadequaçãoé
social:pa rece ser a do homem contemporâneo em geral na sua luta de adaptação ã sociedade e sugere, em particular, o sentimen to experimentado também pelo imigrante no confronto com ou tra cultura. Em Scliar, o at.rito existente revela que a adaptação do imigrante - ou filho de imigrante - está e.rn processo.As personagens, marginalizadas ,e impotentes diante do contexto opressor, têm no universo mitico uma
d as poucas sal as possJ-Vels. Todas as personagens de 'd < ' Scli~
vivem o mito do resgate à medida que buscam salvar-se de uma rotina entorpecida que sistematicamente as massacra. Combatem este sentimento de frustraqão pela vivência miti ca. Parece que quanto maior a pressão social,maior é a for ça do mito, que se manifesta, então, como reaçao ao mundo exterior. Ao que tudo indica, ele se origina, embora como sua negaçao, da própria rotina estéril e para esta mesma rotina regressa, na tentativa de modificá-la, de ~econs truir o mundo e resolver a tnjustiça. No capitulo que se segue trataremos deste universo mitico do protagonista de
"EIS QUE ES1'0U PARA CRIAR
NOVOS CJlUS E NOVA TERRA. "
I I
PERSONAGEM E MITO
Torna-se tarefa difícil senao impossível, uma Única e objetiva conceituação da palavra mito, capaz de cobrir todos os tipos e funções dos mitos em todas as so ciedades. Este
é
um problema também levantado por Mircea Eliade em sua conhecida obra Mito e Realidade: 110 mito
-
e
uma realidade cultural extremamen-te complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares". (p.ll)
O mito ê presença constante em todos os prot~
gon.istas de Scliar. Por esta razão cumpre acompanhar "par..:.~
passu" a sua traj e·tór ia na obra do auto r.
Naturalmente uma posição definida sobre o mito, sua origem e implicações, exigiria uma outra tese.'-. Conhec.:=_ mos nossos 1 tmi tes e nosso int.eresse imediato. Portanto, u2:. trapassa de muito nosso objetivo discutir este problema. Por outro lado, também não podemos desprezá-lo. Cumpre1 e~ tão, ressaltar apenas alguns aspectos básicos do conceito de mito, que se ligam mais diretamente ao nosso trabalho.
Os autores consultados ( 12 I reconhecem hoje a existência de "resíduos míticos" 1
"comportamentos míti
cos", "representações míticas" que não são senão exterior2:_ zações, manifestações e/ou expressoes de um processo ps:!:,
cológico que constitui traço essencial ou vital da civili zação hurnana. De acordo com Jung (13) estas