• Nenhum resultado encontrado

Desvendando o nó : a experiência de auto-organização das mulheres catadoras de materiais recicláveis do Estado de São Paulo

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Desvendando o nó : a experiência de auto-organização das mulheres catadoras de materiais recicláveis do Estado de São Paulo"

Copied!
197
0
0

Texto

(1)

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DANIELE CORDEIRO MOTTA

DESVENDANDO O NÓ: A EXPERIÊNCIA DE AUTO-ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES CATADORAS DE MATERIAIS RECICLÁVEIS DO ESTADO DE SÃO

PAULO.

CAMPINAS 2017

(2)
(3)

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Motta, Daniele Cordeiro,

1986-M858d MotDesvendando o nó : a experiência de auto-organização das mulheres catadoras de materiais recicláveis do Estado de São Paulo / Daniele Cordeiro Motta. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

MotOrientador: Angela Maria Carneiro Araujo.

MotTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Mot1. Relações de gênero. 2. Catadores de materiais recicláveis. 3. Classe social - Brasil. 4. Raça - Brasil. I. Araujo, Angela Maria Carneiro,1952-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Unraveling the knot: : the experience of self-organization of women collectors of recyclable materials of the State of São Paulo

Palavras-chave em inglês: Gender relations

Collectors of recyclable materials Social class - Brazil

Race - Brazil

Área de concentração:Ciências Sociais Titulação: Doutora em Ciências Sociais Banca examinadora:

Angela Maria Carneiro Araujo [Orientador] Marcia de Paula Leite

Barbara Geraldo de Castro

Magda Maria Bello de Almeida Neves Renata Cristina Gonçalves dos Santos Data de defesa: 10-08-2017

(4)

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelas Professoras Doutoras a seguir descritos, em sessão pública realizada em 10 de agosto de 2017, considerou a candidata Daniele Cordeiro Motta aprovada.

Prof(a). Dra. Angela Maria Carneiro Araujo Prof(a). Dra. Marcia de Paula Leite

Prof(a). Dra. Barbara Geraldo de Castro

Prof(a). Dra. Magda Maria Bello de Almeida Neves Prof(a). Dra. Renata Cristina Gonçalves dos Santos

A ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

(5)

Passados mais de quatro anos de pesquisa, é difícil relembrar todas as transformações, rupturas e aprendizados que passei. Por isso não sei se será possível fazer todos os agradecimentos necessários. Gostaria de agradecer à CAPES pelo financiamento dessa pesquisa, que permitiu maior dedicação. À Angela Araujo pelos anos de orientação e conversas que muito influenciaram no caminho que foi trilhado. Agradeço também as professoras Marcia Leite e Bárbara Castro, pela leitura atenciosa que fizeram do meu trabalho na qualificação, importante para pensar a continuidade da pesquisa. Ainda aceitaram participar novamente dessa banca.

Às professoras Renata Gonçalves e Magda Neves, por aceitarem estar na banca de defesa.

O trabalho escrito nas páginas que seguem foi se alterando conforme o tempo, as relações que estabelecia, como tudo afetava meu pensamento e sentimento. Essa pesquisa é fruto da mistura de tudo isso.

As relações que estabeleci com as catadoras de materiais recicláveis de todas as cidades que conheci foram fundamentais para que eu pudesse perceber meus privilégios enquanto pessoa branca, jovem, classe média e universitária. Foi junto delas que me questionei sobre o meu lugar de fala. Essas conversas reverberaram na pesquisa aqui apresentada. Dessa forma espero que essa tese explicite não uma voz dada às catadoras por mim através da pesquisa, mas um olhar sobre as suas lutas e dificuldades que não seja estereotipado, estigmatizado e fetichizado. Espero que não se sintam em nenhum momento desrespeitadas por qualquer palavra aqui empregada. Foi ao lado de vocês que aprendi sobre o feminismo de base popular e a dialogar com as mulheres do povo sobre a necessidade da luta. E aprendi a me calar também, para que pudesse ouvir mais. Obrigada por todos os momentos que passamos juntas e que pude me inspirar na vida e na luta de vocês para traçar o meu caminho. Essas relações estabelecidas me trouxeram uma noção prática do que é a educação popular, o compartilhar de ideias e experiências.

Essa experiência com as catadoras não teria se realizado se eu não tivesse ido trabalhar na ITCP, onde conheci uma equipe e uma forma coletiva de trabalho que sou muito grata. Agradeço ao Du, Fê, Nara e Bruninha pelos dias de trabalho na Equipe Rede.

À Nara, por ter me apresentado a experiência das(os) catadoras(es) do Oeste Paulista, me ensinando muito sobre a catação e compartilhado muitos momentos tanto na vida pessoal quanto no trabalho. Com certeza todas essas relações ao seu lado foram de muito aprendizado.

À Bruninha, parceira de trabalho na ITCP, companheira de vadiagem. As reuniões ao seu lado eram sempre mais desenhadas, coloridas e alegres. Ao seu lado aprendi a alimentar um pouco mais a criatividade.

Durante o trabalho na ITCP conhecer a Cinthia, parceira de Quilombinho e GEPES de gênero, foi maravilhoso. Ao seu lado aprendi a dar vazão pro sentir e adentrar reflexões deixando o sentimento

(6)

sem medo de ser hostilizada. Muito obrigada pela amizade, pelos estudos, pelas conversas.

Agradeço também aos vários coletivos que participei nesse período. Ao Coletivo Babado, foi fundamental colorir essa Unicamp, fazendo todas nós “enviadecer” nosso cotidiano, lesbicando universidade afora.

Ao Coletivo Identidade, onde aprendi as diferentes experiências da diversidade sexual, compreendendo um pouquinho mais sobre compartilhar o sentir. Valeu Rafa por ter me levado ao grupo, a relação com você me fez perceber que a luta pela diversidade sexual era importante e deveria tomar as ruas, para além da nossa casa e relação privada.

À Coletiva das Vadias, por abrirem os caminhos para trilhar e lutar pelo feminismo. Estar na coletiva me proporcionou conhecer as inúmeras mulheres guerreiras da cidade de Campinas, nos mais diversos grupos e coletivos feministas que aqui existem. Não tenho dúvida de que a caminhada feminista me formou e me transformou intensamente.

Ao Samba das Mina, extinto grupo que foi um importante refugio para mim, para descontrair e aliviar a mente.

Pilar amiga querida, com você aprendi a gostar das taurinas. Obrigada por toda a força que deu para que essa tese saísse, me amparando, me divertindo, lendo e corrigindo. Obrigada pela companhia e pela troca nas inúmeras vezes em que juntas levamos adiante o feminismo através das nossas oficinas vadias. A sua presença me deixa mais segura e potente, nossa sintonia vem da alma.

Agradeço as meninas de casa, por compreenderam os meus momentos difíceis e a minha forte personalidade impositiva, me fazendo refletir e aprender sobre as relações e sobre mim mesma nesse percurso. À Ana, figura paciente e tranquila, dividir quarto com você me rejuvenesceu uns dez anos.

À Gabi e a Julia, por toda a parceria e força que me deram nos momentos mais difíceis. Gabi sempre me ensinando sobre como levar a vida de forma mais alegre e leve, sua companhia inspira a criança que tenho dentro de mim. Julia por todo o acolhimento que sempre me deu.

À Elaine, companheira de biblioteca. Valeu por todos os momentos de troca, acadêmicas, profissionais e pessoais.

Ao Rafa, Helinho e Lu importantes suportes que tenho para me segurarem nos obstáculos que encontro pelas escolhas da vida.

Agradeço a vida por ter me permitido descobrir novos caminhos e novas paixões. Essas paixões me ajudaram a cuidar de mim, trabalhar minhas questões e trilhar novos caminhos.

Nesse novo percurso que venho trilhando novas companheiras fui encontrando, valeu por toda a força Aline C. e Aline M.

(7)

Também agradeço as deusas por colocarem no meu caminho um presente como a Lila. Você trouxe novas sensações em minha estadia por essas terras baronenses, com a doçura de uma velha brava e a alegria de uma criança. Obrigada por me fazer voltar a ver felicidade nas coisas simples da vida. Nessa caminhada não fosse minha relação com as plantas, as ervas, a terra e as gatas eu já teria sucumbido ao veneno da minha mente.

Depois de oito anos frequentando o IFCH não tenho como esquecer dos funcionários que todos os dias encontro pela faculdade, desde os funcionários da secretaria e da biblioteca até as meninas da limpeza. A ajuda, presença e companhia de vocês ajudou a deixar a Unicamp mais calorosa. Nesse percurso um agradecimento especial à Tereza, grande companheira de café e prosa. Você foi uma grande companheira nos dias difíceis de escrita da tese que passei na biblioteca.

Por fim agradeço a minha família, sobretudo minha mãe e meu pai que sempre me apoiaram nas minhas escolhas mesmo que não concordassem com elas.

(8)

quem anda por terra e nunca se cansa com seu laço de fita amarrada na ponta da lança” (domínio público)

(9)

catadoras de materiais recicláveis do estado de São Paulo,com a criação da Secretaria Estadual das Mulheres Catadoras(SEMUC-SP),no ano de 2014. A partir do olhar para as mulheres,que compõem maioria numérica nas cooperativas visitadas, focaremos para as diferentes demandas e reivindicações da categoria organizada,bem como as alterações produzidas pela iniciativa de organização das mulheres. Através das ideias da interseccionalidade, consubstancialidade e do nó, nos propomos a analisar as interações entre raça, classe e gênero nas experiências relatadas, na intenção de contribuir com a reflexão articulada das categorias.

Palavras-chaves: Relações de gênero, Raça - Brasil, Classe social - Brasil, Catadores de material reciclável

(10)

of recyclable materials in the state of São Paulo, with the creation of the State Secretariat of Collectors Women (SEMUC-SP) in 2014. From the look at the women, who compose the numerical majority in the cooperatives visited, we will focus on different demands and claims of the organized category, as well as the changes produced by the women's organizing initiative. Through the ideas of intersectionality, consubstantiality and the knot, we propose to analyze the interactions between race, class and gender in the reported experiences, with the intention of contributing to an articulated reflection of the categories.

(11)

ABRELPE – Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais Arcop – Associação Regional do Comitê Oeste Paulista BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

CBO – Classificação Brasileira de Ocupações

CETESB – Companhia Ambiental do estado de São Paulo

CIISC – Comitê Interministerial para a inclusão social e produtiva dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis

Coopercop – Rede de Cooperativas dos Catadores do Comitê Oeste Paulista EES – Empreendimentos de Economia Solidaria

FBB – Fundação Banco do Brasil

FUNASA – Fundação Nacional da Saúde

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa INCOP – Incubadora de Cooperativas Populares da Unesp INSS – Instituto Nacional do Seguro Social

IPEA – Instituto de Pesquisar Econômica Aplicada

ITCP – Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares Mcidade – Ministério da Cidade

MCT – Ministério de Ciência e Tecnologia MDS – Ministério do Desenvolvimento Social MEC – Ministério da Educação

MINC – Ministério da Cultura

MMA – Ministério do Meio Ambiente MME – Ministério de Minas e Energia MP – Ministério Público

MPT – Ministério Público do Trabalho

MNCR – Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis MS – Movimentos Sociais

MTE – Ministério do Trabalho e Emprego NMS – Novos Movimentos Sociais ONG – Organização Não Governamental PNRS – Política Nacional de Resíduos Sólidos PT – Partido dos Trabalhadores

SAE – superintendência de Água e Esgoto SEDH – Secretaria de Direitos Humanos

SEMUC – Secretaria de mulheres catadores de materiais recicláveis SENAES – Secretaria Nacional de Economia Solidária

TAC – Termo de Ajustamento de Conduta UNESP – Universidade Estadual Paulista

(12)

Introdução: Os caminhos trilhados...12

Materiais e método... 21

A desigualdade na diferença...27

Capítulo I: O trabalho das(os) catadoras(es) de materiais recicláveis... 32

1.1) O processo de trabalho e a cadeia produtiva...32

1.2) Catadoras(es) numa sociedade em mudança...39

1.2.1) A Década de 1980 e os Novos Movimentos Sociais...41

1.2.2) Anos 1990 e ascensão do Neoliberalismo...42

1.2.3) Os anos 2000 e o surgimento da Economia Solidária...46

1.3) MNCR no Brasil: conquistas e desafios...51

1.3.1) As alterações na legislação...52

1.3.2) O programa Cataforte...55

1.4) A perspectiva de gênero... 57

Capítulo II: Gênero, Raça e Classe como categorias para análise...61

2.1) Gênero e relações sociais de sexo... 62

2.2) Patriarcado como categoria de análise... 66

2.3) Raça como categoria... 69

2.3.1) Raça no Brasil... 71

2.4) Classe social como categoria...73

2.5) Articulação de gênero, raça e classe...79

2.5.1) Interseccionalidade...80

2.5.2) Consubstancialidade...83

2.5.3) A metáfora do Nó da Saffioti...84

2.5.4) Pensando a articulação nas catadoras de materiais recicláveis... 88

Capítulo III: A Formação histórico-social do Brasil... 101

3.1) Formação das classes populares...101

3.2) A população pauperizada no Brasil: Integrados(as) e Condenados(as)/ Batalhadores(as) e Ralé...102

3.3) A herança escravocrata e o regime de classes... 108

3.3.1) As mulheres nesse processo: gênero e raça no Brasil...111

3.3.2) Mestiçagem e miscigenação...118

3.4) Raça, Classe e Gênero no Brasil em mudança...122

Capítulo IV: Histórias de articulação e luta das mulheres catadoras...130

4.1) A luta pela coleta seletiva em Ourinhos: do lixão a cooperativa modelo...130

4.2) O empoderamento das catadoras de Ourinhos no processo de luta... 138

4.3) A formação da SEMUC...142

4.3.1) “Uma sobe e puxa a outra”: potencializando novas lideranças...146

4.3.2) As lideranças da SEMUC nos seus contextos municipais: dificuldades que se repetem... 150

4.3.3) Os primeiros passos na caminhada da SEMUC...155

4.3.4) Dificuldades, conquistas e desafios...164

Considerações Finais...169

Referências Bibliográficas... 179

(13)

Anexo 2: Questionário de entrevistas Quantitativas realizada no I Encontro de Mulheres

catadoras...192 Anexo 3: Primeiro panfleto da SEMUC (dezembro de 2014)...193 Anexo 4: Fotos... 194

(14)

Introdução: Os caminhos trilhados.

Ao perceber o fim próximo dessa pesquisa, vi a necessidade de retomar os caminhos que trilhei. Os caminhos escolhidos foram diretamente influenciados pelo acesso que tive às cooperativas e associações conhecidas, pelas inúmeras conversas com as catadoras1 de materiais

recicláveis mas, principalmente, por tudo que pude acompanhar do processo de auto-organização das mulheres catadoras. O título desta Tese reflete a tentativa de desvendar o nó das relações entre raça, classe e gênero (que será desenvolvido mais adiante) e de desvendar o nó que fecha as sacolas com os resíduos descartados. A aproximação com as catadoras mostrou as complexas relações que existem quando o nó das sacolinhas se desfaz, e percebemos muito mais questões ali dentro que apenas materiais recicláveis.

Minha primeira aproximação com catadoras e catadores de materiais recicláveis e espaços de cooperativas e associações é anterior ao início da presente pesquisa. Após o término da minha pesquisa de mestrado, na qual estudei as relações entre raça e classe na obra de Florestan Fernandes2, comecei a trabalhar em um projeto de extensão da Unicamp, a Incubadora Tecnológica

de Cooperativas Populares (ITCP), na Equipe Rede, que atuava no setor da reciclagem, acompanhando duas cooperativas e uma associação de catadoras(es) de materiais recicláveis do município de Campinas.

Nesse momento, logo após o término da pesquisa de mestrado, uma nova e intrigante questão martelava na minha cabeça: é necessário pensar a articulação de raça, classe e gênero, pois a formação sócio histórica do país reservou um lugar específico às mulheres negras. Dessa forma, após a defesa de mestrado guardei essa questão comigo e comecei a pensar as possibilidades de articulação de classe, raça e gênero e a relação entre desigualdade e diversidade na sociedade em que vivemos. Assim que passei na seleção do doutorado continuei trabalhando na ITCP Unicamp. Ao longo da minha vivência no trabalho pude perceber que o estudo sobre cooperativas de catadoras(es) de materiais recicláveis poderia ser um importante local para a observação e análise das relações e articulações de classe, raça e gênero. Isso porque em poucos meses percebi que a maior parte das pessoas que trabalham com a catação eram negras e mestiças3, sendo a maior parte 1 No decorrer de toda a tese iremos nos referir à categoria sempre colocando o artigo no feminino anteriormente ao masculino. Faremos isso porque nossa linguagem é estruturada a partir dos plurais todos masculinos. Isso não condiz com essa pesquisa pois see centra no trabalho das mulheres. Queremos dessa forma deslocar a naturalização dessa norma utilizando a linguagem como instrumento de valorização das mulheres catadoras, personagem central dessa tese.

2 MOTTA, Daniele. Desvendando mitos: a relação entre raça e classe na obra de Florestan Fernandes. Dissertação de

mestrado. IFCH/Unicamp, 2012.

3 Apesar de saber do uso corrente do termo mulato(a) para a indicação de pessoas oriundas da miscigenação de negro

com branco, opto por sua não utilização. Na presente tese utilizarei o termo mestiço para indicar tal miscigenação. Isso porque o termo mulato(a) foi cunhado com um viés pejorativo altamente racista, “Trata-se de uma palavra de origem espanhola que vem de “mula” ou “mulo”, fazendo referência àquilo que é híbrido em relação ao cruzamento de espécies. Mulas são animais nascidos do cruzamento dos jumentos com éguas ou dos cavalos com jumentas. Refere-se, portanto,

(15)

mulheres.

Durante o período em que pude conhecer e estudar as cooperativas e associações me deparei com duas assertivas: a maioria das(os) trabalhadoras(es) é negra(o) e mulher. Essas observações fizeram sentido quando nos deparamos com alguns estudos que já apontavam para isso. Segundo Wirth (2011), o Movimento Nacional de Catadores de materiais Recicláveis (MNCR) reconhece que cerca de 75% do total da categoria organizada em cooperativas e associações é composto por mulheres. No site do próprio movimento existem várias matérias e indicações sobre a predominância de mulheres na categoria4.

Da mesma forma, a questão racial foi evidenciada por uma pesquisa feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2013, que apontou para o fato de que a maior parte das(os) catadoras(es) são negros e negras, sendo que 66,1% das(os) catadoras(es) de materiais recicláveis do Brasil se declararam negra(o) ou parda(o).

Quando fui pela primeira vez a uma cooperativa de catadoras(es) de materiais recicláveis na cidade de Campinas fiquei impressionada com as condições de trabalho e até assustada, pois ainda associava todo aquele monte de material ao lixo. O trabalho de catar, separar e prensar os resíduos para a venda apenas daqueles mais rentáveis economicamente, e que por isso podem gerar renda, ainda é feita de maneira muito precária. Ao longo do tempo, em visitas a cooperativas de diversas cidades pude constatar que a maior parte desses locais de trabalho não possui os equipamentos (prensa, balança digital, empilhadeira, esteira para triagem) e a infraestrutura necessária (galpão apropriado para a realização do trabalho, com espaço adequado e instalações necessárias: banheiro, escritório, refeitório) que amenizariam o trabalho duro e agregariam valor, diminuindo o desgaste e o tempo de trabalho. As conversas realizadas com essas(es) trabalhadoras(es) mostraram a necessidade da luta pelo reconhecimento e valorização do trabalho da categoria, que até hoje precisa lidar com um forte estigma. Em um mutirão que participei numa cooperativa de Campinas pude presenciar uma fala marcante de uma catadora liderança de São Paulo:

Eu duvido quem é que nunca ouviu falar do homem do saco, “se você não dormir o homem do saco vai te pegar”. Quem é o homem do saco? Era nós catador. Agora vem um monte de ecologista, que eu não sei nem falar o nome desses caras, dizer que tão cuidando do meio ambiente. Cuidando de uma história que a gente já começou. (Tania5 – catadora de São Paulo)

Essa fala foi proferida por uma mulher que trabalha como catadora há mais de vinte anos, e ilustra sua percepção do processo de transformação do trabalho na catação. Na década de 1990

a uma expressão pejorativa que indica mestiçagem, mistura imprópria. Utilizado desde o período colonial, essa palavra era empregada para designar pessoas negras de pele mais clara, frutos dos estupros sistemáticos de mulheres escravizadas pelos senhores de engenho”. In: http://www.geledes.org.br/o-teu-discurso-nao-nega-racista/#gs.PUSj7NE

4 www.mncr.org.br

(16)

assistimos à formação de inúmeras associações e cooperativas de catadoras(es) de materiais recicláveis, incentivadas pelas iniciativas de fechamento de lixões em todo o Brasil, a partir de denúncias das condições insalubres de trabalho e da necessidade de pensar uma nova forma de gestão para o problema dos resíduos sólidos urbanos. Entretanto, ao adentrarmos nas cooperativas essa transformação parece muitas vezes uma demagogia, um discurso que repercute a crescente temática do Meio Ambiente, da destinação final adequada para os resíduos sólidos e não uma real preocupação com uma categoria de trabalhadoras(es) que prestam serviços de utilidade pública e não são reconhecidas(os) pela função que exercem na gestão dos resíduos sólidos.

Com o passar do tempo percebi a diferença enorme entre o que era lixo e o que era material reciclável, inclusive nas falas de muitas catadoras de quem pude me aproximar durante esse tempo, ouvi repetidas vezes: “a gente trabalha com material reciclável, não é lixo!”. Essa foi uma afirmação que escutei em quase todas as entrevistas em profundidade que foram feitas. Ouvir isso inúmeras vezes me explicitou a necessidade de valorização desse serviço, e por isso a importância de desassociar a atividade do lixo. Este é visto como algo sem utilidade, sujo, fedido, é algo que as pessoas não querem por perto. Além disso, o lixo não tem valor econômico, por isso não é possível retirar renda da sua venda. Essa experiência também me fez perceber a necessidade de uma coleta seletiva bem feita, para que a separação dos resíduos sólidos seja feita corretamente, e de fato o lixo não seja manejado pelas pessoas que sobrevivem da catação.

No ano de 2012 e 2013 em que pude acompanhar as cooperativas da cidade de Campinas aprendi bastante sobre a heterogeneidade das cooperativas no que se refere a forma de trabalho. Foi no ano de 2013 que tive uma intensa imersão no campo com as cooperativas, tendo conhecido várias delas, boa parte do estado de São Paulo. Em julho de 2013 conheci a cooperativa Recicla Ourinhos, na cidade de Ourinhos – SP, e decidi que iria estudar as catadoras de materiais recicláveis na sua experiência de trabalho6. Nesse ano conheci algumas cooperativas da região do oeste paulista

(Assis, Ourinhos, Maracaí e Ipaussu – sendo as duas últimas compostas somente por mulheres), local onde inicialmente faria a minha pesquisa com o intuito de entender o processo de transformação do trabalho desde a saída do lixão até a contratação7 da cooperativa pela prefeitura

em 2010, pensando a atuação das mulheres nesse processo.

Percebi que na região do oeste paulista, a categoria é bastante organizada politicamente e as mulheres tem um discurso bastante afiado, com muito conhecimento sobre os direitos da categoria

6A ideia inicial dessa pesquisa seria trabalhar um estudo de caso da experiência de trabalho das catadoras e catadores do

município de Ourinhos. Entretanto, essa proposta foi se alterando conforme nos inserimos na cooperativa.

7A contratação pelos serviços prestados é uma luta da categoria há bastante tempo. O real reconhecimento do trabalho

feito pelas(os) catadoras(es) é o pagamento pelos serviços prestados de coleta, triagem, prensagem e destinação ambientalmente adequada, por parte do poder público municipal. A gestão dos resíduos é de responsabilidade da prefeitura realizar, e o trabalho prestado pelas(os) catadoras(es) beneficia a toda a população da cidade, sendo reconhecido como de utilidade pública.

(17)

bem como dos caminhos necessários para a consolidação da contratação. Nesse momento, pude conversar com as lideranças locais e apresentar a minha proposta de pesquisa. Acredito que as conversas que tive sobre a pesquisa, ao longo desses anos de trabalho, sobretudo sobre as relações de gênero foram relevantes para a reflexão sobre as desigualdades vivenciadas nas relações que essas trabalhadoras travavam. Acompanhei a reunião do Comitê Oeste Paulista8 e percebi, mais

uma vez, a presença marcante das mulheres, uma vez que o comitê oeste paulista, na ocasião daquela visita em 2013, tinha a sua diretoria formada por 12 pessoas, das quais 11 eram mulheres.

Ainda em 2013 participei como observadora do Encontro Nacional de Mulheres Catadoras de Materiais Recicláveis9 na cidade de Pontal do Paraná – PR em conjunto com a equipe de

trabalho da ITCP da Unicamp e de algumas mulheres catadoras de Campinas. Também fui ouvinte na Expocatadores no ano de 2013, onde já pude observar um espaço de discussão de gênero no principal evento da categoria, que tinha como objetivo levantar propostas para orientar o MNCR na discussão de gênero10.

O que pude perceber no final de 2013, entretanto, era que existiam espaços para as mulheres e para a discussão de gênero (ainda que fossem limitados) mas não havia ainda nenhum espaço de debate e visibilidade sobre a questão racial.

No ano de 2014 pude continuar a minha caminhada e acompanhar o processo de formação da Secretaria Estadual de Mulheres Catadoras de Materiais Recicláveis (SEMUC-SP), nesse momento percebi que já me colocava como apoiadora, inclusive pegando tarefas para a realização do I Congresso das Mulheres e garantindo uma formação sobre gênero e diversidade. Foi a partir desse momento que minha atuação junto as mulheres catadoras mudou e a pesquisadora parece ter se transformado em uma apoiadora, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Participei ativamente da organização do I Congresso Estadual das Mulheres Catadoras que aconteceu na cidade de Ourinhos ajudando na captação de recursos, e na formulação dos textos, além de puxar (em parceria com uma catadora da região do ABC) uma oficina sobre sexualidade e diversidade sexual. Através dessa oficina duas questões se abriram para mim: a existência de uma forte presença de mulheres assumidamente lésbicas (fato que apareceu nos questionários e nas entrevistas), e a questão da violência doméstica, pois a conversa rumou para essa questão, que parecia bastante presente na vida das mulheres que participavam da oficina.

A euforia da consolidação da SEMUC trouxe um novo gás para a atuação junto às

8O Comitê Oeste Paulista é uma instância do MNCR, que é dividido em comissão nacional, comissão estadual e

comissões regionais, sendo as demandas do movimento levadas das bases regionais para as comissões estaduais e nacionais. O Comitê Oeste Paulista é uma comissão regional do MNCR.

9O Encontro Nacional de Mulheres Catadoras teve quatro edições e era realizado no estado do Paraná, sendo organizado

pelo Fórum Lixo e Cidadania e as integrantes locais do MNCR, reuniam cerca de 700 mulheres de todo o Brasil.

10 Foi um debate que ocorreu no dia 18-12-2013: Gênero e diversidade sexual no universo da catação. Promovendo

(18)

cooperativas, sobretudo a partir das relações de gênero. Nesse momento se consolidava uma perspectiva na SEMUC: era preciso fazer formações sobre contratação de cooperativas no estado de São Paulo e ainda refletir sobre as desigualdades entre homens e mulheres nas cooperativas e no movimento. Percebia nas mulheres, sobretudo as lideranças que já tinham uma experiência com formações políticas, um interesse muito grande em entender esse debate e em reivindicar mais espaços. Além disso, presenciei a construção de dois espaços de oficinas que tratavam de temáticas da questão racial, foi a primeira vez que vi esse debate sendo feito coletivamente na categoria11.

A fala de uma das lideranças é bastante didática sobre o processo de surgimento da SEMUC: A SEMUC nasceu da necessidade do fortalecimento e protagonismo das mulheres catadoras, necessidade de empoderamento das mulheres dentro do movimento no estado de São Paulo. (...) A gente já tinha realizado quatro eventos no Paraná, a gente via que na verdade era um evento que as mulheres se encontravam e a gente discutia várias coisas mas que isso não dava empoderamento para as mulheres12dentro do próprio movimento. Então a gente, com ajuda de algumas pessoas pensando, a gente criou a SEMUC num espaço que foi de regiões, dos comitês. Nós fizemos uma reunião estadual, da reunião estadual nasceu a Secretaria das Mulheres Catadoras no Estado de São Paulo. Nós fizemos um evento em Ourinhos em 2014 e depois fizemos um outro evento em 2015 em Osasco. E de lá pra cá a gente tem visto que cresceu muito essa coisa das mulheres catadoras, do empoderamento (…) é doido porque foi a gente que pensou em criar, nem sabia que era SEMUC o nome, aí fomos juntando as letras existentes e aí saiu SEMUC. (Maria, catadora da SEMUC)

Ainda em 2014, em decorrência da aproximação que tive com as mulheres por conta do Congresso, fui acompanhar as catadoras de Ourinhos em Curitiba num seminário sobre contratação de cooperativas, no qual pude aprender sobre tal assunto. Sem sombra de dúvida tudo que aprendi a respeito disso foi com as mulheres catadoras da região do oeste paulista. Desde então tenho a impressão que meu “objeto” de estudo se modificou, e em vez de fazer um estudo de caso da experiência da cooperativa de Ourinhos passei a estudar a experiência das mulheres catadoras em seu processo de auto-organização. Foi partir do conhecimento de uma experiência exitosa na região do oeste paulista – que eu pude ter um conhecimento prático – que entendi o protagonismo das mulheres na gestão das cooperativas, para depois perceber o processo de formação política delas enquanto mulheres13. Isso será tratado nessa tese, a partir da descrição e análise da criação da

SEMUC e também das mulheres que despontaram com ela.

O objetivo da pesquisa se alterou, portanto. Se, primeiramente, a intenção era compreender o

11 As oficinas que ocorreram no Congresso eram simultâneas, e duas temáticas da questão racial foram pautadas. Ainda

que em conversas informais com as catadoras eu já tivesse presenciado debates sobre o fato de serem mulheres negras, no Congresso foi a primeira vê que vi isso ser feito coletivamente.

12 No evento que pude participar, quem abriu e fechou o evento foi um homem, liderança do MNCR. O que na ocasião

me causou certa estranheza.

13Antes da SEMUC muitas mulheres atuavam como catadoras, na luta pelos direitos da categoria, mas não faziam o

(19)

protagonismo das mulheres na consolidação da cooperativa na cidade de Ourinhos, posteriormente nos deparamos com a questão que passava pelas mulheres lideranças de várias cidades do estado de São Paulo. As questões que nos deparamos foram: o protagonismo na gestão da cooperativa é um passo para o protagonismo na política? O processo de autoorganização das catadoras trouxe uma alteração nas relações na categoria? Em que sentido?

Como estava acontecendo uma articulação das catadoras, apostamos que a análise nesse processo traria maiores possibilidades para a investigação das relações de gênero. Um estudo de caso (focado na cidade de Ourinhos) não traria resultados que abarcassem a amplitude da ação das mulheres organizadas na SEMUC, por isso a perspectiva de análise da tese caminhou de um estudo de caso para a necessidade de incluir mais municípios em que a ação de mulheres lideranças trouxe avanços para o cenário local, denotando a importância da atuação da SEMUC dentro do estado e para a efetivação dos direitos da categoria e das mulheres.

Foi a partir da relação com a SEMUC que pude conhecer mais cooperativas e associações, e me relacionar de forma ainda mais profunda com as diversas experiências nas diferentes cidades. Durante a pesquisa pude percorrer algumas cidades: Lençóis Paulista, Americana, Hortolândia, Piracicaba, Rio Claro, Itapira, Assis, Ourinhos, Maracaí, Ipaussu, entre outras.

Nesse percurso pude observar o dia a dia do trabalho em cada cooperativa (e as diferenças na organização de cada uma delas), a relação destas com o poder público local e com os seus projetos e apoiadores. Essas observações de campo mostraram que as possibilidades da cooperativa são instáveis a depender muito da relação com o poder municipal. Isso me levou a pensar sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), pois ainda que exista e exigência da coleta seletiva, em algumas cidades esta ocorre apenas pelo esforço das cooperativas, sem apoio das prefeituras ou com um apoio ínfimo destas. Pude observar o percurso da SEMUC em algumas cidades do estado, inclusive no intuito de formar novas lideranças e capacitar as lideranças das cooperativas locais no que se refere aos direitos e os caminhos necessários para o reconhecimento da categoria através da contratação.

No mesmo ano de 2014 a SEMUC ainda se mobilizou para além de suas próprias reuniões, organizando um ato em São Bernardo do Campo contra a incineração14 e colocando um stand na

Expocatador. Neste expuseram para todas as pessoas a recente experiência de organização das mulheres do estado de São Paulo, exibindo vídeos, entregando panfletos e vendendo camisetas15.

14A incineração é a queima dos resíduos sólidos, e é hoje apresentada como uma das soluções para o problema do lixo

nas cidades. Ela é um risco à profissão das(os) catadoras(es), pois queima os materiais recicláveis.

15A venda de camisetas na Expocatadores foi uma das formas de autofinanciamento que a SEMUC encontrou. Sem

caixa para fazer as suas atividades as reuniões são feitas a partir do investimento pessoal de cada catadora (que pode sair da cooperativa ou do próprio bolso da catadora, a depender das negociações internas em cada cooperativa) e de doações de projetos e parceiras. Os eventos feitos em 2014 e 2015 foram financiados a partir de um esforço de cada integrante da organização, que foi atrás de patrocínio e projeto. Além disso as cooperativas que tinham situações mais

(20)

Essa exposição trouxe uma visibilidade nacional para a SEMUC. Eu, como pesquisadora/apoiadora, participei de todos esses eventos, ajudando na elaboração de textos e panfletos.

A conclusão que chegamos foi que a experiência exitosa de Ourinhos16 (e da região do oeste

paulista) foi fundamental para que as mulheres da categoria dessem um salto de qualidade na discussão sobre os seus direitos no trabalho, iniciassem o debate de gênero, e se atentassem para o debate racial. Um comitê atuante como o do oeste paulista, protagonizado por mulheres foi fundamental nesse processo. Além disso, o debate sobre a contratação das cooperativas pela prefeitura se espalhou por todo o estado de São Paulo via SEMUC. Dessa forma, a história de Ourinhos aparece na tese como pano de fundo para contar a história da SEMUC, pois acredito que se não existisse essa experiência de luta e de contratação na região talvez a história da SEMUC fosse outra. Penso que a principal dificuldade é o poder público não reconhecer que catadoras(es) prestam serviço de utilidade pública, que são fundamentais para a gestão dos resíduos recicláveis e que devem ser incorporados nos planos municipais a partir da remuneração. A contratação das cooperativas pelo serviço de utilidade pública que prestam para toda a população seria o reconhecimento da importância desse trabalho. A contratação oferece recursos perenes, ser responsável legal pela coleta do município oferece a oportunidade de formação, possibilidade de investimento e estabilidade salarial.

O ano de 2015 também foi agitado para a atuação ao lado da SEMUC e participei do Primeiro encontro de mulheres do Comitê Norte Paranaense a convite das mulheres catadoras, além de participar de uma formação interna da SEMUC na cidade de Paranabiacaba e de outra formação de lideranças na região do oeste de São Paulo, na cidade de Assis.

A percepção das mulheres sobre as desigualdades de gênero dentro das cooperativas foi explicitada, na visão delas, os homens quando chegam das ruas (porque a maior parte deles sai pra coleta, seja pra dirigir o caminhão ou pra auxiliar na coleta do material no caminhão) geralmente ficam enrolando para não ajudar no trabalho na cooperativa, diferente das mulheres que quando voltam da coleta “vão logo ajudando na triagem”.

Além disso afirmam que a maior parte das pessoas que ficam nas cooperativas são as mulheres porque elas precisam, pois a maior parte é mãe solteira e sustenta a família sozinha. Ao perceberem que a maior parte das cooperativas é presidida por mulheres refletiram que ocorre dessa forma por três motivos: os homens não têm muito interesse na presidência, porque são muito mandões e também porque como a maioria das(os) cooperadas(os) são mulheres elas não votam nos

favoráveis também fizeram investimento nos eventos para garantir sua realização (por exemplo a cooperativa de Ourinhos vendeu as latinhas que tinha no estoque para conseguir pagar hospedagem para o Congresso). É interessante perceber a autonomia da SEMUC em relação aos seus eventos. Já foram escritos projetos para fundos de financiamento de iniciativas de mulheres, mas esses não foram aprovados e contemplados com a verba.

16 A cidade de Ourinhos é conhecida hoje como um dos modelos de coleta seletiva com inclusão de catadoras(es), onde

a infraestrutura da cooperativa é adequada para o trabalho e as(os) catadoras(es) são remuneradas(os) pelos serviços que prestam. Mais adiante, no capítulo 4, falaremos detalhadamente da experiência de Ourinhos.

(21)

homens porque são muito machistas.

Nessa mesma formação, elas colocaram que o maior desafio da SEMUC é a questão do poder, pois o que as mulheres do movimento querem é estar na linha de frente, participar das tomadas de decisões e da construção das políticas públicas para a categoria e transparência no interior do movimento. As lideranças da SEMUC, nesse encontro, apontaram algumas demandas, como o acesso à informação sobre a Lei Maria da Penha, a necessidade de ampliação de vagas nas creches, e uma ciranda17 no movimento para as mulheres com filhas(os) pequenas(os) poderem

participar das reuniões.

Ainda no ano de 2015 participei de um encontro de formação de lideranças da região do Oeste Paulista. Nesta coordenei, ao lado de duas companheiras catadoras, uma oficina sobre gênero. Nesse espaço havia a presença de homens e mulheres e já existia dentro do comitê oeste paulista (que organizou o espaço junto com a Incubadora de Cooperativas Populares – Incop da Unesp de Assis) a ideia de que a discussão de gênero era necessária nos espaços de encontro da categoria. Participando desses eventos pude perceber o processo de maturação desse debate de gênero (que a mim parecia ter mais fôlego que o debate racial) onde o que aparecia com mais força e potência era o compartilhamento de experiências de violência que muitas passavam e a necessidade de acabar com isso. A impressão que a oficina18 deixou para mim foi de que apesar das mulheres perceberem

a força que têm quando estão juntas, ainda não tem muita informação sobre o que é o feminismo como estratégia de combate ao machismo. Isto me parece compreensível tendo em vista justamente a construção social dos gêneros, onde a educação das mulheres para o silenciamento é uma dura barreira para ser transposta. As mulheres têm dificuldade de se colocarem, de se entenderem como sujeitas políticas capazes de construir discursos que mereçam ser ouvidos. Tal construção patriarcal (como será discutido no capítulo II) tem completa relação com o fato de que o movimento nacional seja representado por homens ainda que a categoria seja majoritariamente composta por mulheres. Por outro lado, o machismo é entendido por todas, e se posicionam contrárias a ele. Nas falas das mulheres houve um desabafo sobre situações de violência que já passaram na vida, isso foi comum a todas as mulheres.

O ano de 2015 terminou com um acontecimento ruim para a SEMUC na Expocatadores. As mulheres da SEMUC que estavam participando do evento, insatisfeitas e organizadas decidiram em reunião fazer alguns cartazes reivindicando mais espaço de fala e mais espaços que debatessem temas como a questão de gênero, racial, de contratação. Ao fazerem isso, subiram coletivamente no

17 A ciranda do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é um espaço pensado para as crianças que

acontece junto com as formações e reuniões do MST. Isso possibilita a participação das mulheres, que podem ir tranquilas pois terão um espaço específico para deixarem seus filhos e filhas.

18 A oficina teve o intuito de provocar as(os) participantes a falarem sobre as desigualdades de gênero. A partir de

palavras que foram distribuídas para todas as pessoas o debate coletivo foi estimulado, com uma sistematização do que era necessário inserir nos próximos debates do comitê e o que era necessário ser superado.

(22)

palco do evento. Isso gerou um constrangimento e um tumulto, além de visibilizar que havia dificuldades de reconhecimento da SEMUC por parte do MNCR. Este foi um fato simbólico tendo em vista todo o desdobramento posterior e as dificuldades para serem incluídas nos processos decisórios do movimento.

O ano de 2016 foi o menos movimentado para a SEMUC, e este foi marcado sobretudo por ato público em Lençóis Paulista e a conquista de um caminhão para a coleta nessa mesma cidade. Mina atuação nesse ano de 2016 ficou centrada em Campinas, pois acompanhei um projeto com os catadoras(es) individuais e as cooperativas da cidade. Conforme passavam os eventos e as vivências ao lado das mulheres, mais relevante parecia para mim estudar tais experiências, pois acompanhava de perto e compartilhava as descobertas que cada uma ia fazendo enquanto mulher e as potencialidades que descobriam ao se verem como protagonistas.

Cabe colocar ainda, que também participei de debates públicos em diferentes cidades (audiências públicas e conferências) que auxiliaram no entendimento da rede complexa de relações e interesses que envolve a cadeia de resíduos sólidos no estado de São Paulo. Foi, portanto, atuando e participando dos processos junto com as mulheres que fiz essa pesquisa, por isso acredito que a pesquisa teve um fim diferente do que foi proposto no início, pois foi se moldando aos interesses envolvidos (da pesquisadora e das mulheres catadoras) tal qual uma pesquisa participativa (BRANDÃO, 1981; OLIVEIRA e OLIVEIRA, 1981, FREIRE,1981).

Essa imersão que fiz junto as catadoras de materiais recicláveis foi um importante guia para auxiliar todo o recurso teórico que mobilizei para dar sentido para esta tese. Percebi, nesse percurso do trabalho de campo, que a luta e as articulações que as catadoras vêm travando ao longo dos anos já transformaram a realidade de trabalho de muitos lugares, é o caso de Ourinhos e de muitas cidades da região do oeste paulista. A partir desse campo de pesquisa, questões sobre as desigualdades de gênero e as diferenças sociais me intrigaram. Foi quando pensei em maneiras de potencializar as respostas que as mulheres davam para a situação de precariedade vivida na categoria e a luta que travavam cotidianamente contra o machismo, registrando e observando por meio dessa tese a trajetória das mulheres catadoras.

Essa tese está organizada em introdução e quatro capítulos. Na introdução procuro explicar a trajetória de estudos, meu material de trabalho e metodologia e já colocar apontar para a discussão teórica sobre as desigualdades e diferenças. No primeiro deles procurei fazer uma apresentação do tema de estudo, trazendo algumas informações necessárias para o entendimento do trabalho das(os) catadoras(es). Procurei explicar a cadeia produtiva, o processo de trabalho nas cooperativas e associações, o que entendo ser a origem do trabalho na catação para analisar as transformações ocorridas nos últimos anos na categoria nos seus recentes processos. Também analisamos a formação do MNCR enquanto instrumento de enfrentamento, explicitando as alterações na

(23)

legislação e a necessidade da perspectiva de luta.

No segundo capítulo trabalhamos com a questão de gênero, raça e classe. Fizemos uma análise de cada uma dessas categorias isoladamente e de forma articulada. Na análise articulada trabalhamos com três ideias: interseccionalidade, consubstancialidade e o nó. Todas essas teorias foram colocadas para dar corpo ao nosso campo com as mulheres catadoras, majoritariamente negras.

No terceiro capítulo aparece uma leitura da formação social do Brasil, sobretudo a partir de Florestan Fernandes, para que possamos ter um suporte de entendimento das questões históricas relativas as relações de gênero, raça e classe. Ainda dialogamos com a tese de Jessé Souza sobre a questão da classe nos dias de hoje, e a ideia da desvantagem cumulativa de Hasenbalg e Silva, para ilustrar a herança escravocrata que as catadoras carregam e os prejuízos disso ainda hoje.

No quarto e último capítulo foi feito um mergulho no trabalho de campo, a partir da análise da ideia de que foi a experiência exitosa da cooperativa de Ourinhos que permitiu a articulação das mulheres em torno da SEMUC, fizemos uma descrição analítica do processo de consolidação da SEMUC. Por fim, mostro através das análises das entrevistas com as catadoras como elas perceberam esse processo.

Materiais e método

Todo o processo narrado acima, sobre a inserção nos espaços em que atuamos junto às catadoras, foi acompanhado de inúmeras reflexões sobre como seria, ou como deveria ser, o processo de pesquisa, uma vez que estava bastante envolvida com as sujeitas protagonistas desta. Já no primeiro ano do doutorado e da intensa participação tanto nos eventos promovidos pelo MNCR como nas cooperativas que me davam abertura comecei os questionamentos de como seria a minha participação no campo enquanto pesquisadora, pois participação militante e a ação pesquisadora pareciam se (con)fundir. Qual seria a melhor maneira de fazer um estudo sobre as mulheres catadoras? Quais materiais eu deveria mobilizar? Como eu enquanto pesquisadora deveria atuar? De que forma deveria me colocar ao lado dessas mulheres?

Para tentar responder essas perguntas fui atrás de uma metodologia que me ajudasse a refletir sobre uma pesquisa participativa. Entretanto, antes disso, foi preciso entender o que era o meu papel enquanto mulher, lésbica, branca e universitária que me inseria nas cooperativas, primeiro como técnica de um projeto de extensão vinculado à universidade e posteriormente como pesquisadora e apoiadora. Na ânsia de responder essas questões, pareceu coerente trabalhar com a idéia de que estou construindo um saber, um conhecimento que é sempre parcial, situado, nos termos de Donna Haraway (1995). Por isso, para mim, tal qual Haraway

(24)

Saberes localizados requerem que o objeto do conhecimento seja visto como um ator agente, não como uma tela, ou um terreno, ou um recurso, e, finalmente, nunca como um escravo do senhor que encerra a dialética apenas na sua agência e em sua autoridade de conhecimento “objetivo”. A observação é paradigmaticamente clara nas abordagens críticas das ciências sociais e humanas, nas quais a própria agência das pessoas estudadas transforma todo o projeto de produção da teoria social. De fato, levar em conta a agência dos “objetos” estudados é a única maneira de evitar erros grosseiros e conhecimentos equivocados de vários tipos nessas ciências (1995, p. 36).

O conhecimento produzido a partir dessa pesquisa tem um alcance limitado e que, a forma de sistematização de todo o material sofreu interferência dinâmica conforme o acesso e as ações com as sujeitas dessa pesquisa. Isso não implica, entretanto, em uma ciência sem objetividade, mas na ciência que ao lidar com relações sociais, trata de objetividade e subjetividade, dos sujeitos nelas envolvidos, seja da pesquisadora ou das protagonistas dessa pesquisa. Por isso estamos tratando os indivíduos dessa pesquisa não mais como objetos, mas como sujeitos do conhecimento e da história que viveram e que vivem (MARTINS, 2004).

Isso posto também é importante perceber as diferenças e desigualdades sociais que estão envolvidas nessa relação (pesquisadora e sujeitas da pesquisa), já que “as vantagens de gênero e raça advêm a despeito da vontade dos indivíduos que delas usufruem. O gênero, a exemplo da raça e da classe, não é uma característica individual voluntariamente descartável” (HARDING, 1993, p. 21).

Isso quer dizer que, apesar de ter adentrado no contexto de trabalho e de luta política das mulheres catadoras, é necessária a noção do espaço a ser ocupado, no intuito não de apagar as diferenças de classe e raça, sobretudo, mas de conseguir dialogar sobre diferentes situações e privilégios sociais. Tendo isso em mente, a participação nos espaços do cotidiano das catadoras foi uma tentativa de questionar essas diferenças que inclusive apareciam na relação que se estabeleciam com a minha presença. Todo o conhecimento é socialmente construído e contextualmente situado. É necessário salientar que o encontro com as catadoras reforçou a ideia da não hierarquização dos conhecimentos, bem como a necessidade da valorização do conhecimento popular. A luta dessas mulheres é de suma importância para os saberes coletivos criando em seus contextos possibilidades de superação de relações sociais desiguais.

Durante a pesquisa, a metodologia que mais auxiliou para pensar a articulação das informações (dados obtidos nas entrevistas, as observações feitas, as sistematizações de notícias, panfletos e cartilhas) com a perspectiva de análise é a da pesquisa ação, na

busca para realizar uma síntese entre o estudo dos processos de mudança social e o envolvimento do pesquisador na dinâmica desses processos. Adotando uma dupla postura de observador crítico e de participante ativo, o objetivo do pesquisador será colocar as ferramentas de que dispõe a serviço do movimento social com que está comprometido (OLIVEIRA E OLIVEIRA, 1981, p. 26).

(25)

Nesse sentido essa pesquisa acompanhou o processo de consolidação de um espaço de auto-organização das mulheres catadoras e do papel político que passaram a reivindicar, seja no movimento ou na própria vida pessoal, entendendo o protagonismo que já exerciam nas suas vidas. A inserção junto às mulheres aconteceu em um momento em que pareciam bastante interessadas em discutir e descobrir a temática de gênero, o que deixou o processo de consolidação do tema de estudo dessa pesquisa de forma imbricada com tais necessidades nascentes.

Foi em visitas às cooperativas que se desenhou a possibilidade de realizar uma pesquisa na área de estudos de gênero, que levasse em consideração as categorias de classe, raça e gênero, uma vez que em pouco tempo de pesquisa ficou nítido o papel que essas mulheres ocupavam nas cooperativas. Interessava então compreender as percepções que elas mesmas tinham desse protagonismo. Dessa forma, o objetivo e o escopo da pesquisa foram se redesenhando à medida que conhecia as cooperativas, as catadoras e o interesse que havia despertado o debate de gênero. O trabalho de campo parece ter caminhado tal qual uma pesquisa participativa, em que:

A identificação da temática geradora é o trabalho de campo através do qual o pesquisador procura observar a vida social em movimento da comunidade com que está envolvido, procurando captar a rede de relações sociais que atravessa a comunidade, os problemas qua a desafiam e a percepção que a população tem de sua própria situação e de suas possibilidades de mudança (OLIVEIRA E OLIVEIRA, 1981, p. 28-29).

O trabalho na ITCP Unicamp antes de iniciar a presente pesquisa, foi undamental para a perspectiva participativa e também para a aproximação com a educação popular, transformando minha própria visão enquanto pesquisadora. A partir de então, importava “detectar o ponto de partida dos homens [e mulheres] no seu modo de visualizar a objetividade, verificando se, durante o processo, se observou ou não, alguma transformação no seu modo de perceber a realidade” (FREIRE, 1974 p. 116).

Para delinear o fio condutor desta tese buscou-se aliar uma investigação quantitativa e qualitativa, dos processos e ações cotidianas, microssociais, com as estruturas macrossociais. Sendo que um estudo quantitativo pode gerar questões para serem aprofundadas qualitativamente e vice-versa (MINAYO E SANCHES, 1993).

Isso posto, o trabalho de campo se dividiu em quatro partes: 1) a pesquisa participante; 2) uma pesquisa quantitativa feita com as mulheres catadoras participantes do Primeiro Encontro Estadual de Mulheres Catadoras de Materiais Recicláveis; 3) as entrevistas em profundidade com lideranças da SEMUC e/ou das cooperativas; 4) notícias, documentos divulgados pelos sites do MNCR e da SEMUC.

(26)

visitas esporádicas nas cooperativas e associações (em cada uma delas contei com a paciência das lideranças locais para a explicação de todo o processo de trabalho que ocorre nelas). Estas observações trouxeram uma visão sobre a heterogeneidade das formas de organização da produção nas cooperativas e associações de catadoras e catadores, que possibilitou perceber os aspectos comuns nas experiências produtivas, como também suas particularidades. A observação do cotidiano de trabalho foi importante para entender o comportamento das catadoras e catadores no seu contexto habitual. Fizemos essas visitas em duas regiões do estado de São Paulo: a região do oeste paulista e a região de campinas. Visitamos as cooperativas das seguintes cidades: Campinas, Americana, Hortolândia, Rio Claro, Piracicaba, Assis, Ourinhos, Maracaí, Ipaussu, Lençóis Paulista. Também participamos dos espaços de discussões públicas sobre a questão dos resíduos sólidos (audiências públicas e conferências), dos espaços de organização das mulheres comissão de organização do primeiro congresso, em cinco reuniões da SEMUC, em três edições da Expocatadores, organizadas pelo MNCR, nas formações específicas da categoria a convite das catadoras do oeste paulista (formação de lideranças em Assis em 2015, formação sobre contratação em Curitiba em 2014, formação de mulheres em Londrina em 2015). A participação nesses diversos momentos foi importante para o recolhimento de informações diversas, por meio da observação e das conversas informais. Anotações de falas e frases, foram sendo feitas ao longo dos quatro anos de pesquisa. Foram utilizados dois recursos de realização de entrevistas:

1) Entrevistas Quantitativas, realizadas no I Encontro Estadual das Mulheres Catadoras de Materiais Recicláveis, na cidade de Osasco. Em visita a sede da SEMUC (em Ourinhos) sentamos, um grupo de mulheres, para pensarmos quais questionamentos gostaríamos de fazer. Elaboramos um questionário em conjunto, estruturado e com respostas fechadas, e sua aplicação foi feita por uma equipe durante os dois dias do encontro. Os questionários foram aplicados somente com as mulheres e tiveram o intuito de fazer um primeiro levantamento do perfil das catadoras do Estado de São Paulo. Ao todo foram feitas 170 entrevistas19, que tiveram seus dados computados no Excel

e analisados por mim. Essa pesquisa trouxe à tona diversas questões que serão tratadas nesta tese, sobretudo no que se refere à raça e ao gênero.

2) Entrevistas Qualitativas. Para dar corpo à pesquisa também optei por fazer entrevistas qualitativas, direcionadas para a experiência de trabalho das catadoras e a experiência de organização na SEMUC. Essas entrevistas foram semiestruturadas, com um roteiro preestabelecido, mas feitas em formas de conversas livres, com o intuito de captar algumas nuances da trajetória de trabalho das mulheres catadoras e suas experiências no que se refere à questão de gênero e de raça, a partir do seu discurso sobre as situações vividas. O alvo dessas entrevistas foram as mulheres que constroem a SEMUC, ou que assumem um papel de liderança nas cooperativas mas que já tenham

(27)

tido algum contato com a SEMUC. A intenção foi entender os diferentes sentidos e significados que as mulheres atribuem ao trabalho na catação, bem como ao processo de organização política pelo qual passaram nos últimos anos, entender como essas mulheres percebem o processo de organização política, seja como catadoras, seja como mulheres. As entrevistas foram realizadas com um roteiro de perguntas que partia do histórico no trabalho para depois desenvolver uma série de questões relacionadas a militância na SEMUC e nos espaços de atuação por ela propostos, e também como percebem a presença do machismo e do racismo nas cooperativas e fora delas.

Foram feitas 12 entrevistas com mulheres de diferentes cidades (das regiões do oeste paulista e de Campinas)20. Compreendo a limitação desse recorte, pois o entendimento da relação

que se estabelece entre homens e mulheres foi fundamental para pensarmos as alterações nas formas de relacionamento entre gêneros que o processo de organização das mulheres implica. Entretanto, o que interessava era a análise do processo de auto-organização das mulheres e os seus pontos de vistas sobre tal processo, que as colocam no centro da análise.

Quadro de Entrevistadas

Nome Tempo de catação Histórico

de lixão? Idade Escolaridade Cor Recebealgum auxilio federal?

Gênero

Cassia 15 anos Não 40 Até 7aséria Branca Não Feminino

(lésbica)

Aneliza 20 anos Não 48 2ograu

completo Negra Não Feminino Regina 22 anos (18 anos na

cooperativa + 4 no lixão)

Sim 53 Só escreve o

próprio nome Morena Não Feminino

Luiza 18 anos Não 56 Até a 4asérie Negra Não Feminino

Natalia 38 anos Sim 46

anos Até 6ª serie Negra Não Feminino

Maria 25 anos Sim 34 Até 8asérie Parda Não Feminino

Luciana 4 anos Não 38 Até a 2asérie Parda Sim Feminino

Lizandra 6 anos Não 41 2ograu

completo Morena Não Feminino Janaina 7 anos na cooperativa.

(Trabalhava no lixão esporadicamente desde 10 anos de idade)

Sim 33

anos Até a 2

aserie Negra Sim Feminino

(lésbica)

(28)

Suzana 7 anos Não 32 Segundo grau

completo Negra Não Travesti

Juliana 7 anos Não 48 Segundo grau

completo Branca Não Feminino

Neusa 10 anos Não 39 Segundo grau

completo Negra Não Feminino(lésbica) Optamos por trabalhar com as lideranças de diferentes cidades pois nossa pergunta central para o desenvolvimento desta tese foi: em que medida a ação das mulheres na gestão das cooperativas permitem que elas assumam um papel de protagonismo na categoria? Nesse sentido, tentamos resgatar a participação das mulheres no MNCR desde a sua formação até o ano de 2016.

Por isso trabalhamos com as principais responsáveis pela gestão das cooperativas. Não é por acaso que são essas mulheres que se mobilizam para participar dos eventos e trocar experiências com outras catadoras, a fim de buscarem alternativas para a própria cooperativa. A ideia de trabalhar em diferentes cidades não possibilitou fazer um estudo de caso, mas permitiu comparar as situações de dificuldades das cooperativas bem como entender o que leva às diferentes atitudes dos governos locais no que se refere à política dos resíduos sólidos. É interessante perceber as diferentes estratégias que se consolidam para a aplicação da PNRS em cada contexto municipal. A princípio, ouvir as histórias dessas mulheres leva à conclusão de que o descaso é geral com as cooperativas e o trabalho feito, além da triste constatação de que, apesar de já existirem iniciativas de políticas e projetos que visem melhorar as condições de trabalho (sobretudo de âmbito federal), a estigmatização do trabalho feito pelas(os) catadoras(es) ainda é forte, o que fica explícito nas atitudes dos governos municipais. O interessante é perceber as histórias de enfrentamento desse descaso e o aprendizado com as trocas de experiências que foi proporcionado.

O essencial desse processo de trabalho foi refletir sobre a formação das catadoras enquanto sujeitas políticas, seja no enfrentamento das dificuldades diárias (no ambiente da casa e do trabalho), na relação com o poder público, no MNCR.

Para incrementar a pesquisa também recolhemos e analisamos documentos, panfletos e cartilhas produzidas pela SEMUC, as notícias que foram veiculadas no site da secretaria, bem como uma pesquisa no site do MNCR para recolher os materiais que tratavam da questão de gênero e raça na categoria. Dessa forma, foi possível perceber como catadoras e catadores veiculam suas ideias e análises, focalizando sobretudo as questões de gênero e de raça. Ainda buscamos fazer uma análise a partir das leis que regem a categoria (sobretudo a PNRS) e dos documentos e análises produzidos pelo IPEA e IBGE.

Esses materiais diversos formam, ao lado da teoria que será mobilizada um amplo campo de análise multidimensional que dará corpo para o entendimento das categorias de raça, gênero e

(29)

classe na perspectiva da prática cotidiana de uma vivência marginalizada, como a das mulheres catadoras de materiais recicláveis. É importante frisar que essa marginalização é no âmbito simbólico, social e político, pois entendemos que economicamente estão inseridos em um amplo sistema, pois a categoria é fundamental para a manutenção dos lucros da indústria da reciclagem. As(as) catadoras(es) são “funcionárias(os)” da indústria da reciclagem sem serem, são indispensáveis para a tal indústria.

Isso dito, é importante colocar algumas reflexões introdutórias a fim de explicar as teorias que foram mobilizadas para análise do material recolhido em campo. Como toda a pesquisa, ainda que o resultado final confirme a hipótese inicial, as coisas nem sempre são como imaginávamos. Ainda bem! Porque se fossem não seria preciso os anos de pesquisa, pois as respostas já estariam dadas antes mesmo dela.

Este trabalho busca entender um processo histórico que vem desde os anos 1990 até os dias de hoje, na tentativa de visualizar as mudanças que ocorreram na categoria das(os) catadoras(os) e no seu processo de trabalho. Concebemos as catadoras como sujeitas políticas, e para entender o processo de constituição delas como sujeitas políticas, buscamos articular as categorias de gênero, raça e classe contextualizando-as categorias no processo histórico-social brasileiro. O processo de formação histórica é fundamental para pensar tanto os tipos sociais como os lugares que cada indivíduo ocupa nessa sociedade. Por isso, ainda que essa pesquisa esteja tratando de um tema atual, mobilizamos concepções e teorias para tratar de momentos históricos anteriores na busca de um entendimento do processo social. Acredito que não podemos compreender o presente que vivemos sem entender o que já se passou, dessa forma o estudo desses processos históricos constitui um suporte fundamental para pensar o presente. Sem considerar o processo de formação das classes sociais desde sua gênese (inclusive refletindo sobre as influências diretas da raça e do gênero nesse processo), não é possível entender as transformações pelas quais as relações de classe passam e os processos mediante as quais as desigualdades sociais vão se formando.

A desigualdade na diferença

Partimos do pressuposto de que as relações de gênero e raça são tão importantes quanto às condições precárias de trabalho, sendo que todas elas se articulam. As conversas feitas ao longo desses anos de pesquisa mostraram que as(os) catadoras(es) não são apenas trabalhadoras(es) pobres, são trabalhadoras(es) estigmatizadas(os), associadas(os) a imagens negativas e degradantes. Por isso, a reflexão sobre as relações de gênero e raça podem auxiliar no entendimento das relações de trabalho na catação, suas transformações, assim como do porquê desse estigma. Esse estigma está associado ao preconceito que ainda existe com o trabalho na catação.

(30)

apropriação dos bens materiais produzidos e das técnicas de dominação políticas na garantia da manutenção de certos privilégios na divisão desses bens materiais produzidos socialmente. No contexto atual vivemos um desafio teórico-político que se refere à forma de tratamento das questões relativas à diversidade e das suas relações com a desigualdade. No debate público, essas questões são colocadas da seguinte forma: diversidade se refere às expressões culturais, linguísticas, religiosas, etc., enquanto que desigualdade se refere à quebra da regra de igualdade de tratamento e de oportunidades na esfera pública (Guimarães, 2012). No momento em que se prega o respeito ao multiculturalismo e às diferenças, o debate da relação da diversidade com a desigualdade passou a ser um dos grandes temas das Ciências Sociais contemporâneas.

Nesta segunda década do século XXI surgiram diversas políticas que visam combater a discriminação, de modo a assegurar o respeito à diversidade (no Brasil podemos citar como um exemplo as cotas raciais – que propõe destinar parte das vagas nas universidades públicas e nos concursos públicos à população negra). Isso significa que houve um reconhecimento da heterogeneidade da população. Entretanto, cabe refletir se e até que ponto o debate em torno da diversidade e do respeito às diferenças oculta as desigualdades sociais existentes nas sociedades capitalistas. Nesse sentido, Nancy Fraser, ao analisar o movimento feminista, conclui que as lutas no âmbito da diversidade (que a autora chama de lutas pelo reconhecimento) estão mascarando as lutas pela redistribuição (que se referem às desigualdades de apropriação social) que declinaram nos anos noventa,

os recentes ganhos na teoria de gênero estariam entrelaçados a uma trágica perda. Ao invés de chegar a um paradigma mais amplo e rico que pudesse englobar tanto a redistribuição quanto o reconhecimento, estaríamos simplesmente trocando um paradigma truncado por outro: uma economicidade truncada por um culturalismo truncado. O resultado seria um caso clássico de desenvolvimento combinado desigual: os recentes ganhos feministas, formidáveis no eixo do reconhecimento, iriam coincidir com um avanço paralisado – ou talvez até mesmo perdas diretas – no eixo da distribuição. (FRASER, 2002, p. 62).

Para a autora, o reconhecimento é uma questão de status social e não de identidade, e usando o exemplo do movimento feminista, coloca o reconhecimento da seguinte maneira: “não é a identidade feminina que requer reconhecimento, mas sim a condição das mulheres como parceiras plenas de interação social” (FRASER, 2002, p. 71).

Segundo sua concepção conceitos como gênero, raça e classe são bidimensionais, trazendo consigo tanto a questão do reconhecimento quanto da redistribuição, e para ela uma noção de justiça teria de fazer as duas esferas caminharem juntas. Corroborando as afirmações de Fraser, Celi Pinto reconhece a relevância das outras esferas que não estejam focadas na questão econômica para pensarmos o tratamento das desigualdades sociais; nas palavras da autora:

(31)

“políticas econômicas sejam elas de que natureza for não são suficientes e/ou plenamente eficazes para resolver os problemas da desigualdade social, mesmo quando essas políticas forem claramente distributivas” (PINTO, 2002, p. 82). Isso coloca a importância de tratar, ao mesmo tempo, as questões referentes ao reconhecimento e as questões redistributivas. Não se trata da discussão de uma análise que se centre na economia ou na cultura, o importante é, portanto, uma análise que articule ambas as dimensões.

Essas noções de Fraser são relevantes quando pretendemos tratar de desigualdade e diferença, para tentarmos apreender suas origens e seus pontos de convergência e divergência. Entretanto, ainda que concordemos com a análise de Fraser acreditamos que tratar tais categorias – gênero, raça e classe – de forma bidimensional pode limitar o alcance da análise, pois entendemos que essas são multidimensionais, e as esferas da redistribuição e do reconhecimento tem um maior alcance quando associadas aos aspectos econômicos, culturais, sociais, políticos e simbólicos.

Quando tratamos da diferença Avtar Brah é quem traz questões relevantes sobre o tema. A autora teoriza sobre a diferença (trataremos disso mais a frente) afirmando: “a diferença não é sempre um marcador de hierarquia e opressão. Portanto, é uma questão contextualmente contingente saber se a diferença resulta em desigualdade” (BRAH, 2006, p. 374). Para a autora é preciso contextualizar a diferença; não há uma desigualdade intrínseca a nenhuma diferença, é preciso analisar a partir de cada experiência. Ainda que as diferenças estejam inscritas em todas as relações sociais, pois não existem pessoas perfeitamente iguais, para nós é relevante entender quando diferença resulta em desigualdade, já que essa é uma questão fundamental para a análise de categorias articuladas. É possível fazer uma avaliação histórica ou individual das diferenças e entendermos em que contexto uma diferença dá origem a uma desigualdade. Se partirmos do pressuposto de que a diferença constitui a base para a construção do poder (SAFFIOTI, 1992, p. 192), saber sua origem histórica permite pensarmos as hierarquias sociais e as desigualdades nelas presentes.

A desigualdade na diversidade surge a partir da ideia negativa e estigmatizada da diferença, do “outro”. De acordo com Moore (2012) as relações de gênero e raça são construções históricas de longo tempo:

O sexismo é um fenômeno antimulher e o racismo um fenômeno fundamentalmente antinegro. Contrariamente aos preconceitos, estes são fenômenos atemporais, universais e transversais. Como formas de consciência historicamente construídas e determinadas (MOORE, 2012, p. 226).

Esses processos de diferenciação produzidos ao longo da história levaram a desigualdades e exclusões; por isso tais processos de diferenciação desenvolveram discriminações de identidades que tiveram (e ainda têm) efeitos nos processos políticos e sociais (SCOTT, 2005). A descrição de

Referências

Documentos relacionados

Dos docentes respondentes, 62,5% conhe- cem e se sentem atendidos pelo plano de carreira docente e pelo programa de capacitação docente da instituição (que oferece bolsas de

As análises serão aplicadas em chapas de aços de alta resistência (22MnB5) de 1 mm de espessura e não esperados são a realização de um mapeamento do processo

Os instrutores tiveram oportunidade de interagir com os vídeos, e a apreciação que recolhemos foi sobretudo sobre a percepção da utilidade que estes atribuem aos vídeos, bem como

Em que pese ausência de perícia médica judicial, cabe frisar que o julgador não está adstrito apenas à prova técnica para formar a sua convicção, podendo

dois gestores, pelo fato deles serem os mais indicados para avaliarem administrativamente a articulação entre o ensino médio e a educação profissional, bem como a estruturação

De forma a sustentar esta ideia, recorro a Costa et.al (1996, p.9) quando afirmam que “A aprendizagem da profissão docente não principia com a frequência de um

Visando este trabalho analisar o impacto e a importância dos Projetos Educativos do TNSJ no âmbito de uma educação artística, interessa-nos refletir sobre a relação dos

Na apropriação do PROEB em três anos consecutivos na Escola Estadual JF, foi possível notar que o trabalho ora realizado naquele local foi mais voltado à