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Cozinha e Gramática: o problema da vontade na fase intermediária de Wittgenstein

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Academic year: 2021

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Cozinha e Gramática:

o problema da vontade na fase intermediária de Wittgenstein

EDUARDO GOMES DE SIQUEIRA

Doutorando em Filosofia

Universidade Estadual de Campinas CAMPINAS, SP

Resumo: a fim de obtermos uma visão clara da trajetória conceitual pela qual se fez conduzir nosso autor desde a Teoria da Figuração tractariana até a concepção de uma “Terapia Gramatical” nas Investigações Filosóficas, julgamos ser de primeira importância podermos distinguir as várias táticas testadas por Wittgenstein, no tratamento de uma série articulada de conceitos, ao longo do seu caminho reflexivo durante a chamada ‘Fase Intermediária’. Pomos à prova este juízo focalizando um conceito específico, o de vontade ou arbítrio (Willkür) e, após mostrarmos o modo como ele está presente nas Investigações (item 2) em contraste com o Tractatus (item 3), voltamo-nos para três momentos distintos da Fase Intermediária (1928-35) relacionados à chamada ‘fase do cálculo’ (item 4), para caracterizarmos os tratamentos aí dados ao mesmo problema. Examinando primeiro a Conferência sobre Ética e Some Remarks on Logical Form (item 4.1), as Philosophiche Bemerkungen (item 4.2) e finalmente o Big Typescript (item 4.3), focalizamos neste último texto a comparação aí promovida para elucidar a noção de arbitrariedade e de autonomia dos sistemas de cálculo, entre Cozinha e Gramática, tratamento este cujo sentido nos parece distinto do oferecido na fase final. Procuramos com isso a possibilidade de marcar a especificidade da concepção wittgensteiniana da Autonomia da Gramática, e o sentido de seu ‘convencionalismo radical’, no momento futuro das Investigações.

Palavras-chave: Wittgenstein -fase intermediária. Vontade. Autonomia da gramática.

1. Introdução

Nosso alvo é contribuir para a elucidação do conceito de filosofia gra-matical do segundo Wittgenstein examinando sua aplicação à problemática da vontade, tendo em conta suas conseqüências para os problemas da autonomia, da arbitrariedade e do convencionalismo das regras gramaticais. Distinguimos para isso diferentes táticas dentro de algo que vemos como uma estratégia geral permanente, cujo traço de continuidade pode ser apontado na preocupação de

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distinguir o que é empírico e o que é a priori em nossa linguagem, enquanto esta é entendida como constitutiva do sentido e das significações dos nossos objetos de conhecimento e dos sujeitos que os conhecem.

Ao tomarmos a filosofia da linguagem das Investigações como base para uma reflexão epistemológica acerca das origens e dos limites do conhecimento huma-no, o tema da autonomia da gramática torna-se central e, a fim de focalizá-lo, nos propomos a situar, analisar e colocar algumas questões a respeito de um trecho do Big Typscript, 56, trecho este muitas vezes usado para elucidar certas passagens das Investigações. Buscamos com isso promover um contraste do modo de pensar de Wittgenstein neste momento (começo da década de 30) com o dos momentos mais conhecidos do Tractatus por um lado e das Investigações por outro, momentos estes às vezes vistos como incomensuráveis, tanto entre si como em relação à tradição.

Temos em vista fazer uma comparação tópica1 entre as diferentes táticas

formuladas por Wittgenstein para o enfrentamento da questão da aprioridade do sentido face à experiência. Podemos distinguir basicamente a tática ‘logicista’ do

TLP, a tática ‘do cálculo’ própria à Fase Intermediária e a tática especificamente

‘gramatical’ que encontramos nas Investigações Filosóficas. Nosso ponto é, assim, destacar diferenças táticas na abordagem de um problema filosófico, como o da vontade, e apontar os riscos interpretativos que corremos ao confundi-las, devido a traços estratégicos comuns.

A afirmação da ‘autonomia da Gramática’, com sua interpretação parti-cular das relações internas, assim como a ‘autonomia da Lógica’ no TLP, também é assumida, ao seu modo, a certa altura da Fase Intermediária, como ‘autonomia do Cálculo’, ou dos ‘sistemas de cálculo’. A afirmação da autonomia do sentido face à experiência, típica das estratégias racionalistas modernas de fundamentação

1 Temos como modelo, para tanto, o método da ‘tópica comparativa’ tal como

aplicado por Joëlle Proust em Questions de Forme (1986), sob inspiração grangeriana. Ao adaptarmos a ótica tractariana de Gaston-Granger ao horizonte das Investigações, seguimos a orientação do professor Arley Moreno, articulada em torno do conceito de ‘pragmática filosófica’ (cf. Moreno, 1998).

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do conhecimento, aparece associada, no desenvolvimento filosófico de Wittgens-tein, a uma marca cada vez mais acentuada de ‘convencionalismo’, enfatizando-se a ‘arbitrariedade’ (willkürlichkeit) a que as regras mais básicas da linguagem ficam submetidas – regras para a quais seria tarefa de uma filosofia da linguagem encontrar uma justificação. Compreender a autonomia das regras que garantem o sentido e a significação de nossas palavras seria compreender o sentido em que as regras da linguagem são e em que sentido não são arbitrárias.

O sentido da autonomia da linguagem é a cada vez diferente conforme sua justificação tome como base a lógica de nossa linguagem (a metáfora do ‘Espaço Lógico’), tome sistemas de cálculo (o modelo do ‘jogo de xadrez’) ou tome jogos de linguagem gramaticais (a metáfora das ‘formas de vida’). O reenvio a uma ‘base’ (Grund ) de justificação parece ser o único remédio contra a arbitrariedade completa das regras, e o problema permanece sendo o de justificar esta base sem comprometer a autonomia do sentido. Na ausência de um ‘Corpo de Signifi-cações’ (Bedeutungskörper) como estrutura referencial, tal como a que o TLP ofere-cia, ou de um ‘Corpo de Regras’ (Regelnkörper) que garantisse a autonomia e deter-minação do sentido, deve parecer inevitável que se caia para o lado de um radical perspectivismo, um puro relativismo convencionalista e na arbitrariedade mais completa, dando razão deste modo ao cético. De fato, na Fase Intermediária os ‘sistemas de cálculo’ passam a cumprir o papel do antigo ‘Espaço Lógico’, e nas

Investigações o conceito de ‘formas de vida’ passa a cumprir este papel, alterando

amplamente o sentido de se falar em ‘fundações’ em filosofia da linguagem. É notável o deslocamento que há do TLP para as Investigações no sentido dos usos do simbolismo para a delimitação do sentido de uma proposição (e para a linha de justificação de sua autonomia), de uma ‘teoria da figuração’ e sua concepção tornada clássica de ‘imagem’ (Bild-1), para uma ‘terapia das imagens’ (Bild-2)2. Tal deslocamento se reflete, como o vemos, no deslocamento

2 Cf. Moreno, 1995, p. 44: “A concepção da proposição como imagem é uma imagem

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tivo sofrido pelo conceito de vontade, que passa de ‘ora empírico, ora transcen-dental’, fundado na oposição ‘fato x valor’, tal como o encontramos no TLP, para um conceito ‘gramatical’ de vontade (nem empírico, nem transcendental, mas

entre ambos), como o encontramos nas Investigações3.

Constatamos assim uma grande alteração no sentido da conexão entre ‘vontade e mundo’ entre as duas grandes obras de Wittgenstein, conexão que era dita ser ‘mística’ no TLP, e que passa a ser vista como ‘terapêutica’ nas

Investi-gações.

O mapeamento das relações de derivação e ruptura, de continuidade e des-continuidade, entre a concepção logicista e a concepção gramatical do a priori, demanda um exame atento da Fase Intermediária (1928-1936), também batizada como ‘Fase do Cálculo’, ainda que seus limites não estejam perfeitamente deli-neados4. Queremos ver como é caracterizada a ligação ‘vontade x mundo’ nesta

‘Bild-1’, relativo ao TLP, e o segundo uso como ‘Bild-2’, relativo ao conceito de imagem das Investigações.

3 Cf. Moreno, 1995, cap. 5: “Entre o Transcendental e o Empírico: Formas de Vida”. 4 Steve Gerrard, no artigo “Wittgenstein’s Philosophies of Mathematics”, focalizando

portanto a ‘filosofia da matemática’ de Wittgenstein, divide de modo diferente a Fase Intermediária, ou ‘do cálculo’, como indo “desde o fim dos anos 20 até 1944 (ano da revisão do material que seria a parte I das Investigações)”, p. 125. Mas o próprio Gerrard justifica nosso modo diferente de dividir as fases, localizando a Intermediária entre 1928 e 1935, quando diz na página seguinte: “No meio dos anos 30 suas visões começam a mudar para a concepção dos Jogos de Linguagem e, pelos começos dos anos quarenta, sua visão da linguagem matemática como um nexo de jogos de linguagem sobrepujou completamente a visão do cálculo” (p. 126). A diferença, portanto, é que damos como limite superior da Fase Intermediária, não o momento em que a visão madura está já articulada e aplicada á linguagem matemática (1944), mas o momento em que começa decididamente a mudar neste sentido (1935-6), momento em que, segundo R. Rhees, Wittgenstein abandona a revisão que fazia do Brown Book, e começa a redação do que conhecemos hoje como parte I das Investigações (cf. Prefácio de R. Rhees ao Blue e Brown

Books). Um ‘modelo do cálculo’ não é algo exclusivo de tal Fase Intermediária se

lembramos da importância do modelo matemático para a lógica desde Frege (ou, se quisermos, desde Leibniz). O que justifica chamar especialmente esta fase de ‘do cálculo’, é justamente seu uso aqui no papel de justificação da autonomia das regras, algo já bem

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fase, bem como em que sentido as regras da linguagem são concebidas, neste mo-mento, como arbitrárias.

Nosso ponto é, portanto, o de procurar marcar alguma diferença mais significativa em relação aos modos como Wittgenstein concebe a autonomia e a arbitrariedade da ‘gramática’ na Fase Intermediária (pois ele já usa o termo aqui), em oposição tanto com a fase anterior, que ele passa a criticar, como em relação à fase posterior, ainda não amadurecida, de seu pensamento, de modo a contribuir para aquisição de uma compreensão mais sistemática da trajetória reflexiva que conduziu nosso autor à posição, muitas vezes criticada como insustentável, ou ao menos como altamente problemática – envolvida de qualquer modo em muitas polêmicas – do chamado ‘Convencionalismo Radical’ de Wittgenstein (Full

Blooded Conventionalism, nas palavras de Dummett5). 2. O problema da vontade nas Investigações Filosóficas

O problema da vontade é explícito na parte mística do TLP, envolvendo o que de mais importante ele continha (e não podia ser dito). Parece-nos, pois, incontornável saber que destino ganhou posteriormente este conceito, se é para termos uma justa compreensão da concepção de filosofia como atividade terapêutico-gramatical no segundo Wittgenstein, ou seja, no ‘ajuste de contas’ que faz nosso autor, nas Investigações, com o autor do Tractatus e seu antigo modo de pensar.

Nas Investigações, 174, o problema da “essência da vontade” é prenunciado, junto ao “problema da intenção”, no contexto da identificação de “uma vivência

mais flexível do que o modelo tractariano, mas bastante rígido ainda, se comparado com os modelos das Investigações.

5 Dummett, 1959, p. 329. No comentário de Baker e Hacker: “Precisamente um tal

convencionalismo radical (full blooded) é comum ser extraído da última filosofia de Wittgenstein” (Com. Anal. Vol. II, 1985, p. 340).

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interior determinada” – palavras estas que, ‘naturalmente’, não esclarecem nada6.

Ora, é na seção 600 deste livro que estes problemas (da intenção, em 629-660, e da vontade em 611-628) são detidamente tratados. Podemos ver como ali é introduzida uma ‘Imagem Agostiniana da Vontade’ (que diz: ‘Quero, mas meu corpo não me obedece’ – Investigações, 618), que interpretamos como paradigma correlato, neste contexto psicológico, ao da ‘Imagem Agostiniana da Linguagem’ (introduzido, como se sabe, no parágrafo primeiro das Investigações). Na seção 600

é tornada explícita a gramaticalidade do querer, ao nosso ver, quando se assume, por exemplo, que não tem nenhum sentido ‘querer querer’7.

A vontade, do TLP para as Investigações, deixa de ser um limite externo e inefável do sentido, para situar-se nos limites internos das ações cotidianas de seguir regras, em jogos de linguagem embebidos em formas de vida. Trata-se de práticas circunstanciadas nas quais, segundo o parágrafo 186 das Investigações, o

necessário, a cada passo, não é uma ‘intuição’, mas sim uma ‘decisão’:

Como se decide então qual é o passo correto em um ponto determinado? (...) Mais correto que dizer que em cada ponto é necessário uma intuição, seria dizer algo próximo de: é necessário a cada ponto uma nova decisão (eine neue Entscheidung nötig)8.

6 IF, 174: “O que é a vivência da cautela? (...) Você desejará dizer: ‘É justamente uma

vivência interior determinada’ (com o que, naturalmente, não disse mais nada). (Há aí uma conexão com o problema da intenção, da vontade)”.

7 IF, 613: “Ich könnte das Wollen nicht wollen; d. h., es hat keine Sinn, von

Wollen-Wollen zu sprechen. Wollen-Wollen ist nicht der Name für eine Handlung, und also auch für keine willkürliche”. Note-se que é pelo mesmo termo que as ações são ditas ‘voluntárias’ e as regras ditas ‘arbitrárias’. Temos como objeto principal de pesquisa a explicitação do sentido da ‘Gramática do Querer’ na seção 600 das Investigações.

8 IF, 186. Julgamos mais adequado traduzir ‘wäre beinah, zu sagen’ como ‘dizer algo

próximo de’ do que ‘quase dizer’, como é usual (‘almost say’), se esta última expressão sugerir que se pára antes de dizê-lo. Em que medida tem sentido falar em ´decisão´ depende, ao nosso ver, da elucidação da gramática do querer, à qual está intimamente conecta a gramática de decidir.

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Vemos que Wittgenstein usa, nas Investigações, duas imagens destinadas es-pecialmente a criticar as concepções mitológicas que fazemos das regras que seguimos, seja como ‘objetivamente dadas’, seja como ‘subjetivamente escolhidas’ (em termos tradicionais podemos ver aí as incansáveis mitologias do ‘Determi-nismo’ e do ‘Livre-Arbítrio’). Tal nos parece ser o sentido dos usos, por um lado, da imagem das regras como “trilhos invisíveis” que “levam ao infinito”

(Investi-gações, 218, no contexto de ‘Seguir Regras’), e por outro, da imagem das regras como “besouros na caixola” (Investigações, 293, no contexto da ‘Argumentação contra a Linguagem Privada’).

Desmitificar as regras envolve, portanto, entender que, por um lado, nós ‘decidimos sim’ (pois as regras não são trilhos que determinam de antemão o lugar e o modo de cada passo), e, por outro, que ‘não decidimos’ (no sentido de que não decidimos ‘privadamente’, pois as regras não são besouros que tiramos da caixola como bem quisermos). A compreensão gramatical do conceito de decisão, daquela que é necessária a cada passo ao se seguir uma regra, envolve o conceito em seus limites: as regras são públicas (não são besouros privados), mas o caráter público das regras não as torna algo de predeterminado, completamente dado de antemão (não são trilhos objetivos). Eis o lugar da gramática: nem trilhos, nem besouros; nem trilhos/besouros empíricos, nem trilhos/besouros transcendentais.

3. O problema da vontade no Tractatus

O tema da vontade em Wittgenstein remonta ao uso, ora empírico-psico-lógico, ora metafísico-transcendental, do conceito de vontade no TLP.

6.423: Da vontade enquanto portadora do que é ético, não se pode falar. E a vontade enquanto fenômeno interessa apenas à psicologia.

Desde os Notebooks 1914-16 podemos ver como Wittgenstein reluta em um dilema na concepção da vontade9: entre uma versão empirista (James)

9 Um tal ‘dilema’ é assim reconstruído por P.M.S. Hacker no Comentário Analítico, vol.

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gundo a qual a vontade deve ser um fenômeno, uma experiência que se tem, algo que ‘nos acontece’ e que podemos observar, algo que ‘vem quando vem’; e outra transcendental (Schopenhauer) segundo a qual a vontade não pode ser uma experiência, nem um fenômeno, mas sim o próprio agir, em sua efetivação (como

objetidade e não objetividade10), não um fenômeno que observamos, mas ‘algo que

fazemos’, algo que está além de tudo o que é representável, e que nos torna o que, essencialmente, somos.

Os aspectos tractarianos mais salientes do problema da vontade, os quais queremos nos limitar a deixar destacados aqui, são, além daquela conexão inefável entre a vontade e os valores (éticos, estéticos e religiosos – o ‘sentido do mundo’), igualmente indizíveis11, a afirmação da ausência de qualquer conexão

lógica entre vontade e mundo, entregue que está à mais completa contingência, segundo o jovem Ludwig: “O mundo é independente de minha vontade” 12.

Desde o Tractatus que eu (o sujeito) e mundo (o objeto) são

determina-dos a partir da linguagem – a qual é delimitada a partir dela própria. Este deslo-camento próprio à filosofia da linguagem altera o sentido do problema ontoló-gico (acerca da objetividade do mundo conhecido) e do problema psicolóontoló-gico

10 Schopenhauer passa a distinguir sistematicamente ‘objectivitas’ de ‘objectitas’,

reser-vando o primeiro termo para a objetividade científica, própria ao Mundo como Representação (ser objeto para um sujeito, habitus), e o segundo para a objetivação das formas pelo em-si, o Mundo como Vontade: “Corpus est objectitas voluntatis. Objectivitas in

mentis est habitus”: “O corpo é ‘objektität des Willens’. Anteriormente, como nota Schöndorf

(1982: 174), Schopenhauer havia escrito ‘O corpo é a visibilidade da vontade’, mas risca a palavra ‘objetividade’, substituindo-a por ‘objetidade’, termo escolhido para exprimir o aparecer (erscheinen) da vontade no corpo em ação” (Cacciola, 1994, p. 42).

11 TLP, 6.41: “O sentido do mundo deve estar fora dele. No mundo, tudo é como é e

tudo acontece como acontece: não há nele nenhum valor – e se houvesse, não teria nenhum valor”. TLP, 6.43: “Se a boa ou má volição altera o mundo, só pode alterar os limites do mundo, não os fatos; não o que pode ser expresso pela linguagem”.

12 TLP, 6.373. E no aforismo seguinte, 6.374: “Ainda que tudo que desejássemos

acontecesse, isso seria, por assim dizer, apenas uma graça do destino, pois não há nenhum vínculo lógico entre a vontade e o mundo que o garantisse, e o suposto vínculo físico, por seu lado, decerto não é algo que pudéssemos querer”.

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(acerca da consciência possível do mundo), o qual ganha, no TLP, feição de ‘problema do solipsismo’ (seção 5.6). Tal concepção de subjetividade formal mínima divide as tarefas do pseudo-sujeito tractariano entre um sujeito empírico (que não existe), um sujeito lógico (que não pensa) e um sujeito axiológico (do qual não se fala). O problema do solipsismo articula vontade e lógica no modo tractariano de defender a autonomia do sentido13.

4. Vontade e arbitrariedade na Fase Intermediária

Longe de visarmos fazer aqui qualquer tratamento exaustivo das diversas obras da Fase Intermediária, a focalizamos seletivamente em um recorte mínimo que nos permita alcançar, com suficiente consistência, o texto do Big Typescript (item 4.3). Para chegar a ele destacamos dois momentos anteriores marcantes: primeiro o de Some Remaks e da Conferência sobre Ética, logo que Wittgenstein retorna à filosofia acadêmica, textos que sinalizam ambiguamente o afastamento e a manutenção de idéias tractarianas, tanto quanto aos ‘fatos’ como quanto aos ‘valores’ (item 4.1); e depois, as Philosophische Bemerkungen que, contrariamente ao

TLP, já passam a reconhecer uma certa ‘conexão interna’ entre a vontade e o

entendimento de uma linguagem, e parecem já enquadrar o conceito de vontade no pós-tractariano ‘modelo do cálculo’ pré-Investigações (item 4.2).

4.1.Some Remarks e aConferência sobre Ética

Estes dois textos, os primeiros que Wittgenstein traz ao público acadêmico filosófico após o TLP, formam um par peculiar: o primeiro ajuda a entender os limites da lógica tractariana, segundo seu autor, em sua incipiente tentativa de consertá-lo – apesar de ter sido repudiado; o segundo ajuda a explicitar a

13 Quanto ao ‘problema da vontade’ do TLP julgamos importante que se distinga o

que há de influência schopenhaueriana na verdade resiliente do solpisismo (como ‘dieta unilateral de imagens’ nas Invetsigações) do que há de mitológico na concepção agostiniana da vontade como um ‘motor’ que “impulsiona sem ser impulsionado” (IF, 613), a Imagem Agostiniana da Vontade (IF, 618).

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logia do TLP – e parece ter sido efetivamente apresentado ao público a que se destinava14.

Em Some Remarks on Logical Form Wittgenstein deixa constatado o proble-ma das cores, cuja fenomenologia particular exibe exclusões necessárias das quais a lógica tractariana não era capaz de dar conta. O TLP dizia garantir a autonomia do sentido da linguagem em relação aos fatos (TLP, 2.0141), e a exclusão lógica a

priori para o caso das cores (TLP, 6.3751)15, e daí viria a necessidade de

aper-feiçoar a notação simbólica através da introdução de números (racionais ou irracionais) na estrutura das proposições atômicas – como sugere a “primeira nota definitiva” de Some Remarks por exemplo, “ ‘p é vermelho’ = ‘[6-9, 3-8]V’, onde ‘V’ é um termo inanalisado”.

A rejeição do artigo por seu autor não diminui sua importância, ao con-trário do que sugere Anscombe16, para a compreensão da trajetória de

Wittgens-tein, tanto em relação às dificuldades deixadas pelo TLP quanto em relação aos desafios pós 30. Apesar de estarmos aqui, ainda, envolvidos com o fantasma das ‘proposições atômicas’, as quais deveriam, de algum modo, conter o material de que se fala, Wittgenstein passa a buscar novas chaves para explicar a exclusão de cores, ou mais geralmente, as exclusões lógicas em sistemas graduados, reco-nhecendo nestes uma “multiplicidade lógica maior que as de nossas atuais possibilidades”, e assim, que a expressão lógica adequada “ainda não foi alcan-çada” – como o diz a frase final do texto.

14 Segundo Redpath: “Um typescript de um texto sobre ética, escrito evidentemente

para ser lido para uma sociedade em Cambridge, e provavelmente lido efetivamente para

Os Heréticos em 1929 ou 1930” (Redpath, 1996, p. 95, nota 1).

15 TLP, 6.3751: “Que, por exemplo, duas cores estejam ao mesmo tempo em um

lugar do campo visual é impossível e, na verdade, logicamente impossível, pois a estrutura lógica das cores o exclui”. Para um exame detalhado e compreensivo do modo como este problema leva Wittgenstein a afastar-se da lógica tractariana rumo à sua concepção de gramática das cores, ver o trabalho de João Carlos Salles, A Gramática das Cores em

Wittgenstein (2002), CLE/Unicamp.

16 O ponto é defendido pelo Prof. Arley Moreno, em Fenomenologia e Problemas Fenomelógicos (1995), Manuscrito XVII, 2.

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Na Conferência sobre Ética nos é oferecida, como diz Redpath, uma “imagem galtoniana da ética”, como uma “rol de sinonímias” dos “traços característicos da ética”17. Neste texto Wittgenstein estabelece a distinção dos juízos de valor em

“dois sentidos bem diferentes”: um “ético absoluto”, e outro “trivial ou relativo”, como, por exemplo, “eis uma boa cadeira”, ou “não jogar tênis mal”. O juízo de valor relativo é um mero enunciado de fatos18, e pode sempre ser posto em uma

forma na qual perde toda a aparência de um juízo de valor, como também em “Este é o caminho certo para Granchester”. Aí encontramos “fatos, fatos, fatos, mas não ética”19. Não há sentido em falar de um “caminho absolutamente

certo”, independente de um alvo predeterminado.

Na segunda parte do texto da Conferência Wittgenstein descreve algumas experiências ou vivências sobre as quais se dizia tentado a usar expressões tais como “bem absoluto” ou “valor absoluto”: a) o espanto com “a existência do mundo”, b) o sentir-se “absolutamente seguro” e c) o sentir-se “absolutamente condenado” (entre parênteses Wittgenstein destaca que “este é um assunto inteiramente pessoal e outros achariam outras vivências mais impressionantes”20).

17 Redpath, 1996, p. 97. “Enumerando-as, procuro produzir o mesmo tipo de efeito

que Galton, quando ele fotografava um certo número de faces, sobre uma mesma placa sensível, a fim de obter uma imagem dos traços típicos que têm em comum (...), traços característicos que são aqueles da ética” (Wittgenstein, 1992, p. 143). Este modo de tratar o problema da ética já marca um passo notável de afastamento em relação à concepção tractariana de inefabilidade e silêncio axiológico. Aqui Wittgenstein admite já o uso de

analogias e a introdução de paradigmas como meios de elucidar o inefável ético tractariano. 18 O que significa simplesmente que “satisfaz certo modelo predeterminado”

(Witt-genstein, 1992, p. 144).

19 Wittgenstein, 1992, p. 146. Pois “nenhum enunciado de fato pode ser ou pode

implicar um juízo de valor absoluto” (Idem, p. 145).

20 Wittgenstein, 1992, p. 149. “Eu recusaria ab initio não importa que descrição (...).

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Ele termina o texto chamando a atenção para a falta de sentido em expri-mir lingüisticamente estas vivências – ressaltando sua reação contra as pretensões de qualquer ‘ciência moral’21 –, para concluir assim que

Tudo o que eu quis fazer com elas (essas descrições) era apenas ir além do mundo, isto quer dizer, ir além da linguagem significativa. Toda minha tendência (...) era correr contra os limites da linguagem. Este correr contra as paredes de nossa prisão é absoluta e perfeitamente sem esperança22.

Notamos neste texto, por um lado, a manutenção de um limite que torna indizível o sentido ético ou estético e o religioso (“parece que empregamos constantemente simulacros na linguagem da ética como naquela da religião”23), e

por outro lado, ou por suposto, a manutenção da distinção entre uma racionalidade técnica e relativa (ou se se quiser, ‘instrumental’, ligada a ‘jogar tênis’ e ‘cozinhar’, por exemplo) e uma ‘racionalidade’ transcendental (ligada ao ético, ao belo e ao sagrado – em sentido absoluto). O notável, ao nosso ver, não é tanto o que (as teses que) Wittgenstein parece defender aí, mas como ele o faz, o método que já começa a apontar na direção dos jogos de linguagem das Investigações, ou seja, pelo uso de analogias e pela introdução de paradigmas é que ele se propõe a defender aquela distinção que lhe parecia fundamental desde o Tractatus. Não significa que nas Investigações passe a ter sentido alguma forma de ‘discurso ético’ prescritivo e absoluto, mas o método das descrições gramaticais não se furta à terapia de deus, do belo e do bom, o que seja. Quer dizer que a terapia não se furta a tentar quebrar as paredes mais duras de qualquer prisão.

4.2.Philosophiche Bemerkungen

Nas Bemerkungen encontramos o registro da constatação da falência do conceito tractariano de objeto, enquanto constituinte simples dos fatos atômicos,

21 “A Ética não pode ser ciência” (Wittgenstein, 1992, p. 155). 22 Wittgenstein, 1992, p. 155.

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e a passagem para uma compreensão talvez mais ‘holista’ da proposição, cujos

conteúdos passam a depender do ‘sistema’, segundo o modelo do cálculo

mate-mático, que os constitui24. Encontramos aí também uma ambígua afirmação da

necessidade de uma abordagem fenomenológica para permitir a comparação veri-ficacionista das hipóteses empíricas – pois nas Bemerkungen Wittgenstein nega a necessidade, antes sentida, de uma “linguagem fenomenológica” ou “primária” para ajustar os usos do simbolismo: “Não há, como acreditei, uma linguagem primária em oposição à cotidiana” (PB, 53).

Neste texto encontramos a afirmação de que “por estranho que pareça, o problema de entender uma linguagem está conecto ao problema da vontade” (PB, 13). Mas por que razão deveria nos parecer estranho haver uma conexão entre entendimento e vontade na fase vista como a mais ‘verificacionista’ de Witt-genstein? Por que razão causaria estranheza afirmar uma conexão, senão pelo fato dela ter sido completamente negada em sua genial obra prima da juventude? Algumas indicações, nas Bemerkungen, podem ser dadas para o sentido em que a

vontade passa a conectar-se com o entendimento de uma linguagem (já que os limites

tractarianos entre o dizível e o indizível não valem mais da mesma maneira), em um momento da Fase Intermediária, sob o modelo do cálculo, em que a concepção transcendental da vontade do TLP já foi abandonada, mas em que a concepção gramatical das Investigações ainda não se constituiu.

Ainda nas Bemerkungen, 13, Wittgenstein acrescenta: “A linguagem deve ter a mesma multiplicidade que um painel de controle que estabelece as ações que

24 PB, 154: “Um sistema é uma série formal, e é precisamente nas regras das séries que

são descritas as interações que geram seus membros sucessivos”. PB, 168: “‘Como quiseres, assim decides’. Não podemos perguntar pelo que primeiro dá uma fundação ao sistema”. PB, 122: “As regras para os dígitos pertencem ao início, como uma preparação para a expressão, para a construção do sistema no qual a lei vive sua vida”. Nas Investigações este momento preparatório dos jogos, o início, está ligado, não a um ‘Corpo de Regras’, mas aos jogos primitivos, ao uso e ensino da linguagem em suas circunstâncias, ao que está envolvido em se aprender a Seguir uma Regra, ou seja, ao domínio pragmático das aplicações do simbolismo inseridas em formas de vida, domínio de que Wittgenstein passa a se ocupar cada vez mais, sob diversos aspectos, desde o retorno a Cambridge.

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correspondem às suas proposições”. Saber se uma ação segue ou não uma regra, se é correta ou incorreta de acordo com as regras, depende, ao que parece, neste quadro, do sistema de regras da linguagem, que estabelece a priori as ações que lhe correspondem ou não, desde que ele tenha a multiplicidade suficiente adequada, tal como um ‘painel de controle’, para aquilo que pretende representar ou dirigir.

Nas Bemerkungen, 43, Wittgenstein especifica, ainda em tom meio aforis-mático, o sentido em que passa a haver, contra o TLP, uma ‘conexão imediata’ entre “entender o sentido de uma proposição” e a “essência da vontade”. Por um lado, ele diz, a essência da vontade está “imediatamente conecta com a continui-dade do dado”. Por outro lado, entender uma linguagem, ou entender o sentido de uma proposição, significa “saber como o assunto de sua verdade ou falsidade deve ser decidido”, justificando que se fale aqui em verificacionismo.

É certo que, para as Bemerkungen, se há uma autêntica questão, então há para ela, sempre, um correspondente “método de procura”. Sendo assim, nosso

dever, é o de “encontrar o caminho desde onde você está até onde o assunto deve

ser decidido”25.

Este trecho encerra, para nós, a expressão de uma nova articulação, em resposta ao TLP, da relação entre o método filosófico, o entendimento e a vontade. Uma analogia é aí proposta entre entender uma linguagem e a vontade enquanto conecta à continuidade do dado: agora são ambas vistas como internas ao sistema do cálculo, e não mais em oposição excludente, como a face interna e a face externa dos limites do sentido.

Nas Bemerkungen a ‘gramática’ – noção que passa a absorver o papel que tinha a lógica no TLP, sem estar ainda inserida em seu contexto próprio, das

Investigações, ligada que está ao modelo do cálculo –, é apresentada como algo que

25 PB, 43: “Para qualquer questão há sempre um correspondente método de procura”

(...). “Entender o sentido de uma proposição significa saber como o assunto de sua verdade ou falsidade deve ser decidido.

A essência do que chamamos de vontade está imediatamente conecta com a continuidade do dado. Você deve encontrar o caminho desde onde você está até onde o assunto deve ser decidido”.

(15)

“dá à linguagem seus graus necessários de liberdade”26. Para saber se uma

proposição é verdadeira ou falsa, trata-se aqui, ainda, de compará-la com a realidade, mas o modo como uma proposição, ou uma ‘hipótese’, é comparada com a realidade envolve variados “graus de liberdade”27. O problema da vontade

em 1929-30 aparece assim ligado à margem de manobra ou ao jogo de cintura que é preciso ter ao compararmos uma proposição com os dados imediatos da percepção, quando tentamos saber se é verdadeira ou falsa. Por estranho que pareça (ao leitor do TLP), entender uma proposição, ou seja, entender sua aplicação a

contextos específicos, tem a ver com a vontade, ou talvez, com as margens de

‘liberdade’ que os sistemas de cálculo nos oferecem, ou deixam ao nosso arbítrio, quando se trata de manobrá-los adequadamente. “Não seria tudo o que quero dizer: entre a proposição e sua verificação não haveria um entre negociar desta verificação?” (PB, 56).

Uma vez que se trata, do ponto de vista do método, de encontrar o caminho até onde a verdade ou a falsidade da proposição deve ser decidida, então tanto o entendimento, que deve saber como o assunto deve ser decidido, quanto a vontade, que deve querer encontrar o caminho para esta decisão, passam a estar envolvidos internamente no processo, em “vários graus de liberdade”, ou seja, envolvendo ‘decisões’ que devem ser tomadas no interior do cálculo, para que se possa dar continuidade ao dado.

Vemos assim, nas Bemerkungen, um momento de revisão do método filosófico de busca da verdade, método comparativo sim, mas que compara ainda a ‘linguagem’ com a ‘realidade’, não a realidade substancial tractariana, mas a realidade dos dados de um sistema de cálculo, amparado talvez por uma abor-dagem fenomenológica dos dados imediatos da percepção. Em nosso próximo texto, o Big Typescript, encontramos já a afirmação categórica de que

26 PB, 38. 27 PB, 225.

(16)

nologia é Gramática’28, superando as indecisões das Bemerkungen neste ponto, mas

longe ainda das formas de vida das Investigações.

O modo de tornar interna a conexão entre vontade e entendimento nas

Bemerkungen é marcado assim por uma concepção da linguagem como um sistema de cálculo, como um sistema de regras exatas que devem sempre permitir a correspondência, não com um ‘estado de coisas’, mas com um método de verificação sobre a verdade ou falsidade de suas proposições. Tudo deve se encaixar no sistema. Mais alguns passos serão ainda necessários para que o problema das relações externas e internas em termos de ‘seguir uma regra’ se articule mais claramente, contra a ‘mitologia das regras’ (Regelnkörper) que parece ainda dominar o quadro na Fase Intermediária de Wittgenstein.

4.3. O Big Typescript (1932-33)

Avançando um pouco mais nos anos 30, este texto tem como característica o fato de conter vários parágrafos que, após as revisões de Wittgenstein, passam pelo filtro e chegam intactos às Investigações, enquanto outros são barrados, ficando excluídos desta honra através de um ou vários riscos feitos à mão. Há, deste modo, do ponto de vista de sua relação com as Investigações, três tipos de texto no Big Typescript: a) trechos recolhidos daqui para serem citados nas

Investigações; b) trechos excluídos sumariamente com riscos, mais ou menos

enfáticos; e c) trechos nem riscados nem citados nas Investigações, cujo estatuto é, portanto, mais ambíguo.

Para efeito de análise acompanhamos a divisão do texto do capítulo 56 do

Big Typescript em parte a) e parte b), devido ao espaçamento encontrado entre o

parágrafo décimo e o décimo primeiro. Enumeramos assim os vinte e cinco parágrafos que constituem este ‘capítulo’ do livro, dividindo-o em a) de 1 a 10, e b) de 11 a 25, de modo a facilitar o reenvio ao texto original.

(17)

O Big Typescript, 56, traz um longo título elucidativo do sentido em que as regras da gramática devem ser ditas arbitrárias:

A Gramática não tem obrigação alguma de prestar contas à realidade. As regras gramaticais determinam antes a significação (a constituem), e não têm, portanto, de ser responsáveis por nenhuma significação, sendo nessa medida arbitrárias29. Isso parece sugerir que, para que uma regra gramatical determine ou cons-titua uma significação, ela não precisa encontrar, e nem deve mesmo buscar, qualquer apoio ‘externo’, naquilo que chamamos normalmente de realidade ou de natureza.

Apesar de seu título parecer assumir claramente uma posição quanto à ar-bitrariedade das regras, notamos que o texto que o segue apresenta uma clara dificuldade de especificar o sentido, ou a ‘medida’ (e o padrão de medida), desta arbitrariedade. Que Wittgenstein estivesse hesitante quanto ao sentido da afirmação está perfeitamente registrado no parágrafo 16º, se consultamos os originais. Ali Wittgenstein afirma primeiro, no texto datilografado, que “as regras gramaticais são, em um sentido próprio, arbitrárias, como a escolha de um padrão de medida (die Wahl einer Massenheit)”. Mas, em sua revisão, ele risca longitu-dinalmente quase todo o parágrafo, para acrescentar à mão entre as linhas que “em sentido próprio as regras gramaticais não são arbitrárias”, como uma padrão de medida30. Afinal, em que sentido próprio padrões de medida ou regras

gramaticais são e em que sentido não são ‘arbitrárias’, sujeitas a escolhas volun-tárias? Por que pareceu ao revisor de seu próprio texto ter mais sentido dizer que não são do que dizer que são arbitrárias, as regras e os padrões?

Como situar, nesta época, o ‘problema da vontade’? Recorrendo ao pró-prio contexto da anotação encontramos o exercício de comparação entre cores,

29 Big Typescript, 56, título: “Die Grammatik ist keiner Wirklichkeit Rechenschaft schuldig. Die grammatischen Regeln bestimmen erst die Bedeutung (konstituieren sie) und sind darum keiner Bedeutung verantwortlich und insofern willkürlich”.

30 BT, 56, par. 16º: “Die Regeln der Grammatik sind in demselben Sinne willkürlich wie die Wahl einer Massenheit ” [“in demselben Sinne nicht willkürlich”].

(18)

xadrez e cozinha que queremos focalizar. Wittgenstein aqui procura contrastar as regras do xadrez e das cores como arbitrárias (como as regras do cálculo) com as regras da cozinha (e de lavar pratos) como não arbitrárias. Parece-nos haver algo que não vai bem nesta linha de contraste, o que, uma vez explicitado, constituiria uma boa razão para mostrar por que Wittgenstein não mais se utiliza dela31.

Devemos notar, aliás, que na mesma página do Big Typescript que forneceu um parágrafo intacto às Investigações – o parágrafo 372, que confirma na fase madura a arbitrariedade das regras, irredutíveis a qualquer lei natural32 –, há

também a comparação que questionamos entre regras culinárias e regras de um jogo preciso, ou com resultados determinados, como o de xadrez, jogo este paradigmático por sua vez, para o entendimento da mediação entre a fase do cálculo e a fase dos jogos de linguagem, nos usos da palavra ‘jogo’.

31 Em Zettel, 320, encontramos uma versão sintetizada do trecho em questão, que

permite destacar os pontos que Wittgenstein devia estar querendo fazer com a comparação : “Por que não chamo as regras de cozinha de arbitrárias e porque estaria eu tentado a chamar as regras da gramática de arbitrárias? Porque ‘cozinhar’ é definido por seu fim, enquanto ‘falar’ não. Isto é assim porque o uso da linguagem é em certo sentido autônomo, enquanto cozinhar e lavar não são. Você cozinha mal se é guiado, em seu cozinhar, por regras outras que não as corretas; mas se você segue regras outras que as do xadrez, você está jogando outro jogo; e se você segue regras gramaticais outras que tais e tais, isso não significa que você diz algo errado, não, você está falando de algo outro”. Como

Zettel recolhe fichas que datam de 1928 a 1948, fica a questão de datar esta nota. Ela pode

ter sido feita depois, como resumo do Big Typescript, 56, ou pode ser sua fonte. De qualquer modo, não encontramos em outro lugar, após o Big Typescript, o uso desta linha de comparação (gramática arbitrária x cozinha não arbitrária).

32 IF, 372: “Reflita: ‘O único correlato da linguagem a uma necessidade natural é uma

regra arbitrária. Ela é a única coisa que podemos retirar desta necessidade natural em uma frase’”. Nas Investigações o trecho aparece tal como reformado na revisão de Wittgenstein ao BT, que acrescentou à mão a palavra ‘Uberlege’ e as aspas ao trecho. Note-se, aliás, que ele é inserido logo após se ter dito nas Investigações, 371, que “a essência está expressa na gramática”. O trecho que se tornou o parágrafo 372 das Investigações é o último parágrafo da parte a) do BT, 56. Nesta mesma página, no original, os parágrafos 11, 14, 15 e 16 estão riscados de alto a baixo; além desses o parágrafo 18 é parcialmente riscado, e os parágrafos 21 e 22 o são também completamente.

(19)

Notemos também que é o Big Typescript, 86, que traz no título um destaque ainda maior para o problema da relação entre entendimento e vontade em nosso

método filosófico, sendo ali assinalada qual é exatamente, “a dificuldade da

filosofia”: “Não a dificuldade intelectual das ciências”, diz Wittgenstein, mas “a dificuldade de um reposicionamento diante da situação (Umstellung), oposições da

v.o.n.t.a.d.e. é que estão para ser sobrepujadas”33.

O contraste entre o método científico e o método filosófico, que não devem nunca ser confundidos (‘razões e causas’), passa a ser marcado então, já no

miolo da Fase Intermediária, pelo contraste entre o entendimento e a vontade, ou

seja, entre o modo diferente pelo qual cada um deles se opõe ou resiste à aplicação de ‘nosso método’.

4.3.1. Big Typescript, 56, parte a) 1-10

Somos introduzidos neste texto pela questão da “tradução em linguagem de gestos”, reenviando à questão do início também das Investigações, do papel da ‘elucidação ostensiva’ na gramática34.

O parágrafo 5º traz o que parece ser uma autocrítica geral às formulações anteriores: “Meu erro reside sempre de novo nisto: primeiro que eu esqueça que a linguagem é caracterizada por todas as regras do jogo, e que estas regras não respondem por nenhuma realidade” (BT, 56, par. 5º).

A dificuldade parece ligada ao meio de se obter uma visão abrangente da totalidade das regras em um sistema (não tomando dogmaticamente a parte pelo

33 BT, 86: “Schwierigkeit der Philosophie, nicht die intelektuelle Schwierigkeit der Wissenschaften sondern die Schwierigkeit einer Umstellung, wiederstände des W i l l e n s sind zu überwinden”. A

palavra vontade foi grafada originalmente com este destaque espacial. A tradução de

Umstellung poderia ser mais simplesmente ‘mudança de posição’, mas ‘conversão’

(Umwandlung, ou Bekehrung, Schwenkung) nos parece carregado em demasia.

34 BT, 56, par. 1: “Admitido que deixamos a tradução da linguagem gestual seguir

adiante; mostrar-se-á, então, na aplicação (...) que esta regra é possível ?”; no par. 7º: “Pode esta elucidação ostensiva colidir com a regra de aplicação da palavra ?”.

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todo), e ao reconhecimento da arbitrariedade do sistema ele mesmo, como um todo35.

No parágrafo 9º Wittgenstein pergunta, como que preparando o terreno para a comparação que é desenvolvida na parte b:

Pode-se dar alguma discussão sobre isso, se são essas ou outras as regras corretas para o uso da palavra ‘não’? Então, sem uma tal regra, a palavra não tem significação nenhuma, e se alteramos a regra, então ela tem outra significação (ou nenhuma), e podemos, assim, muito bem, também, alterar a palavra. Por isso essas regras são arbitrárias, porque são regras tais que são elas que primeiro dão significação aos signos (Zeichen)36.

Vimos o que Wittgenstein quer defender. Agora vejamos como ele tenta fazê-lo, na parte b).

4.3.2.Big Typescript, 56, parte b) 11-25 – Cozinha e Gramática

Regras gramaticais para o uso da palavra ‘não’ são tais que, se alteradas, alteram a significação da palavra (para outra coisa ou para coisa nenhuma). Aí não dizemos algo ‘errado’: dizemos outra coisa (ou coisa nenhuma). Mas se eu altero as regras da cozinha eu não cozinho coisa nenhuma, nem cozinho outra coisa: eu cozinho mal mesmo.

É a partir daqui que começa a ser promovida a comparação que queríamos focalizar. Diz Wittgenstein no início da parte b): “Quando se pergunta: ‘por que pôr ovos nesta massa ?’, a resposta é algo do tipo ‘porque o bolo assim fica mais saboroso’. Experimenta-se assim uma realização (Wirkung) tomada como base dada (als Grunde gegeben)”37.

35 Logo em seguida Wittgenstein explicita: “A gramática não responde por realidade

alguma. (A gramática não tem obrigação alguma de prestar contas à realidade)” (BT, 56, par. 6º).

36 BT, 56, par. 9º. 37 BT, 56, par. 11º.

(21)

Este parágrafo foi riscado por Wittgenstein. Podemos nos perguntar se ele o fez devido à possibilidade de se deixar inferir daí que a proposição ‘a massa é mais saborosa com ovos’ teria de ser admitida como verdade evidente, universal e necessária, em si, como uma lei da natureza, ou ainda como uma regra técnica objetiva, fundada em uma lei da natureza, valendo independentemente de qualquer gramática, de qualquer forma de vida.

O contraste entre justificar algo no sistema (o que seria legítimo) e justificar o

sistema ele mesmo (ilegítimo) aparece no parágrafo 14º, que também foi riscado: Quando se fala de arbitrariedade das regras gramaticais, pode-se então estar querendo dizer apenas que a justificação, que reside na gramática enquanto tal, não é dada para a gramática ela mesma (...). E quando se compara calcular, mas não cozinhar, com um jogo, é que se dá o mesmo com suas bases (Grunde). Pois que é também por suas bases que não se quer chamar o cozinhar de cálculo38.

Que ‘base’ seria essa, pois, que por si impediria comparar, ao distinguir nitidamente, o cozinhar do calcular? Como é dito em seguida, para o Wittgenstein deste momento faltaria ao cozinhar um ‘campo de ação’ com ‘resultados definidos’. Cozinhar não é um cálculo, diz o Big Typescript, 56, porque seu resultado, o que ocorre, determina se a regra era correta ou não, enquanto no cálculo a regra deve determinar a priori e univocamente a correção do lance, deve definir seus resultados rigorosamente e de modo totalmente independente do que quer que ocorra na realidade.

Creio que a base por que não se procura chamar o cozinhar de jogo é a seguinte: há também, naturalmente, regras para cozinhar, mas ‘cozinhar’ não traça essencial-mente nenhum campo de ação (Tätigkeit) para estas regras e, nessa medida, nenhum campo de ação com resultados definidos. Eis pois, uma regra, a de que se deixe cozer o ovo por três minutos para obter um ovo mole; mas teríamos alcançado, através de algumas tais circunstâncias, resultado semelhante, deixando cozer o ovo por cinco minutos, e diante disso dir-se-ia apenas ‘então isso não se chama cozinhar ovo mole’39.

38 BT, 56, par. 14º. 39 BT, 56, par. 15º.

(22)

Qual o sentido do exemplo introduzido neste parágrafo ? Note-se, em primeiro lugar, que o exemplo não parece ter sido escolhido ao acaso. Cremos mesmo ser difícil imaginar algo mais ‘simples’, mais elementar ou primitivo, no jogo culinário, do que fazer um ovo mole40. Mas não podemos tratar as regras da

cozinha, as mais simples, como as regras do xadrez, como regras precisas como a do cálculo, regras que determinam com exatidão os lances, em completa indepen-dência do que ocorre de fato.

No parágrafo 17º (que não foi riscado), introduzindo o contraste com as cores, diz Wittgenstein, já com críticas ao verificacionismo:

Procura-se, através de proposições, justificações para as regras da gramática, do tipo: ‘Mas realmente existem quatro cores primárias’; e dada a possibilidade desta justificação, que está no modelo da justificação de uma proposição através da indicação de seu modo de verificação, corrigir-se-ia aquele dito, de que as regras da gramática são arbitrárias (PB, 56, par. 17º).

Aqui poderíamos nos perguntar: será uma ‘base’ suficientemente sólida e independente o paladar, o sabor (mais ou menos gostoso) para as papilas? Quer dizer que posso justificar regras da cozinha dizendo: ‘Mas realmente existem sabores mais gostosos! ’ ? O critério para distinguirmos cozinha e gramática é dado em seguida:

Por que digo que as regras de cozinha não são arbitrárias; e por que procuro chamar as regras da gramática de arbitrárias ? Porque ‘cozinhar’ é definido por sua finalidade, enquanto o uso da linguagem não o é. Pois o uso da linguagem é em certo sentido autônomo, em um sentido no qual cozinhar e lavar não são. Assim, quem cozinha com regras outras que as corretas, cozinha mal (schlecht); mas quem

40 ‘Fritar um ovo’, por exemplo, expressão usada normalmente como paradigma para

o mínimo de saber cozinhar (que é algo bem mais simples que fazer arroz, por exemplo), é algo bem mais complicado do que ‘cozinhar um ovo’, e o ‘ovo mole’ é o mais rápido e simples dos casos de cocção de ovos. Porém, por fácil que seja cozinhar um ovo mole, é sempre possível fazê-lo errado e às vezes pode ser bem difícil fazê-lo no ponto precisamente ‘correto’, de acordo com o padrão exigido. Impossível é fazer omeletes sem quebrar os ovos – mas isso é uma proposição empírica ou gramatical?

(23)

segue regras outras que não as do xadrez, joga outro jogo; e quem se rege por outras regras gramaticais, não diz algo falso: diz algo diverso41.

Qual o sentido de dizer, em tom definitivo, que ‘cozinhar é definido por sua finalidade’? Qual a finalidade? Matar a fome? Agradar ao paladar? Transfor-mar os alimentos de modo a facilitar sua digestão? Obter um produto seguindo as regras da receita de uso de certos ingredientes? Porque na apresentação do exemplo Wittgenstein aproxima sub-repticiamente o cozinhar do lavar? É que lavar errado ‘evidentemente’ que é deixar as coisas sujas – se diria –, ainda que haja vários modos de lavar certo. E cozinhar errado? Evidentemente que é deixar a comida crua ou cozida demais, ‘fora do ponto’, desequilibrada no tempêro ou sem o ‘sabor esperado’?

Podemos finalmente perguntar por que razão Wittgenstein, em 1932/3

estaria querendo traçar um limite nítido entre verbos que representam a gramática-cálculo e verbos que representam o causal-empírico. Isto é, Wittgenstein parece atribuir aos usos de ‘bem’ ou ‘mal’ na cozinha aquele sentido apenas ‘técnico’ que ele atribuía a certas proposições na Conferência sobre Ética, como por exemplo, ‘não jogar tênis mal’, a fim de elucidar o que há de arbitrário e de não arbitrário em nossa linguagem. Isso nos dá uma indicação de que no miolo da Fase Intermediária Wittgenstein não tinha perfeita clareza ainda da relação entre o interno e o externo, entre razões e causas, entre o empírico e o transcendental, em nossas descrições de seguir regras. Aqui, no Big Typescript, 56, ele parece acreditar na possibilidade de distinguir o sentido das regras distinguindo verbos entre aqueles que se justificam por seus efeitos (finalidades externas ‘logicamente independentes’) daqueles que não se justificam assim (por suas regras serem internas ao cálculo). Distinguimos, gramaticalmente, regras empíricas e regras gramaticais. Mas esta distinção não se apoia na forma das palavras, de modo que se pudesse classificá-las de uma vez por todas. É o uso da frase como empírica ou

como gramatical que distingue seu sentido, não a forma das palavras. Com base

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neste trecho que analisamos, cremos que se torna viável considerar a maior suti-leza presente no horizonte das Investigações, onde não se opõem mais, de um lado, o jogo de xadrez, as cores e a gramática, e de outro, verbos empíricos, (ou ‘de su-cesso’), como seriam o caso cozinhar e lavar. Trata-se, antes, sempre que se trate de significação, de jogos de linguagem, e é só no interior destes jogos que podemos distinguir o que é empírico e o que é gramatical, sejam jogos de linguagem com cores, com termos psicológicos, com termos culinários ou termos higiênicos.

Porém, ainda no Big Typescript, vemos que, enquanto no xadrez se não seguimos as regras corretas não jogamos xadrez mal, apenas não jogamos xadrez; e enquanto na gramática das cores não tem sentido pretender justificar as cores primárias com base na realidade; enquanto isso, parece que a proposição que exprime um juízo de gosto culinário (e os exemplos de Wittgenstein dados aqui são ‘Assim é mais gostoso’ e ‘Você cozinha mal’) deveria possuir uma base externa, não interna ao cálculo gramatical, ‘natural’, e é isso o que garantiria sua base não arbitrária – como se não fôssemos treinados, também, a sentir como gostosos os gostos que sentimos, como se os critérios que determinam o que tem ‘gosto bom’ (assim como o que tem ‘bom gosto’) e o ‘ ponto exato’ de uma cocção não fossem igualmente convenções estabelecidas pelas práticas regulares em nossas formas de vida42.

5. Conclusão

Entendemos que o modo de usar o exemplo nesta linha de comparação do Big Typescript entre cozinha e gramática, não será mais, depois, considerado

42 O ‘ ponto exato’ nunca é um fato da natureza. Os artistas que criaram as

conven-ções das quais resultam nossos padrões atuais de literal ‘bom gosto’, podemos aqui lembrar, contam, por exemplo, desde o ‘Kant da culinária’, Antonim Carême (1784-1833), o ‘gastrósofo’ Jean Anthelm Brillat-Savarin (em cuja ‘Fisiologia do Paladar’ (1825) se diz que “a descoberta de um novo prato é de maior importância para a felicidade humana que a descoberta de uma nova estrela”), a cozinha burguesa de Auguste Escoffier (séc. XIX) e a

(25)

muito perspícuo, por Wittgenstein, justamente porque supõe ainda a possibilidade de distinguir, a partir da realidade mesma, um naturalismo elementar a certas regras dependentes da realidade (como as da cozinha e da faxina), em oposição à natureza exata e convencional das regras independentes do cálculo; seriam regras cujo critério estaria dado por uma finalidade externa à própria atividade (o valor objetivo do gosto bom ou ruim da comida como resultado da aplicação de regras puramente técnicas de uma receita), por oposição ao cálculo, preciso e autônomo (ou preciso porque autônomo e arbitrário), como no modelo das regras do xadrez.

Por isso a nós nos causa espécie que os comentadores, como Baker e Hacker, por exemplo, usem indistintamente as formulações do Big Typescript, 56, ou da Zettelque lhe corresponde (Z, 320) – inclusive o mesmo exemplo do ‘ovo mole’ –, para elucidar o problema da arbitrariedade da regras nas Investigações43,

como se houvesse uma continuidade linear entre estes textos, como se a fase do cálculo e a da terapia gramatical não envolvessem táticas diversas na estratégia geral de defesa da autonomia da gramática.

Aquela oposição entre cozinha e gramática, presente no Big Typescript e ausente não só das Investigações como de seu horizonte – até onde nós o saibamos –, parece pretender manter a vontade e seus valores ainda fora da gramática, como se pudéssemos manter aquele limite do Tractatus e da Conferência sobre Ética entre valores relativos (‘fatos’) e valores absolutos (‘valores’), como se nossas de-cisões, a cada passo de seguirmos regras, pudessem não envolver valores, senão em um sentido técnico ou redutível a fatos, pudessem não envolver problemas

43 Por exemplo, no Comentário Analítico, vol. II: “Se alguém não segue as regras da

cozi-nha, esse alguém cozinha mal, produz pratos ruins (poor disches). As regras correspondem à natureza material da comida (bois demoram mais a assar que cordeiros) e à nossa natureza. Mas o conceito de linguagem não é definido pelo propósito da linguagem” (Backer & Hacker, 1985, p. 332). Também o uso de P.M.S. Hacker, no Comentário

Analítico, vol. IV, Mind and Will (1996), p. 234: “No mais, isso é para nos lembrar que

enquanto algumas regras, como as regras da cozinha, podem ser justificadas como corretas por referência aos alvos perseguidos pela atividade que é governada por estas regras (por exemplo, a produção de comida com bom sabor), regras da gramática não são assim (ver exegese de 497). Elas não são regras técnicas”.

(26)

com os usos do ‘bem’ e do ‘mal’, do ‘bonito’ e do ‘feio’, ou seja, pudessem não se envolver com os atritos da práxis.

É devido apenas aos aspectos que selecionamos em nossas descrições dessas atividades, e não por algo intrínseco à sua natureza mesma, que executar e apreciar um prato é diferente de executar e apreciar uma canção.

A questão que nos fica é saber, na passagem de ‘sistemas de cálculo’ para as ‘formas de vida’ das Investigações – conceito este que não é ‘formal’ nem ‘natu-ral’, ou ‘antropológico’, mas o conceito de um limite gramatical –, de que modo aquela oposição entre ‘intelecto e vontade’ do Big Typescript, 86, será desenvolvida, com que sentido ela permanece ou se altera no horizonte das Investigações, permitindo marcar a transição de fases, da concepção ora empírica-psicológica, ora místico-transcendental da vontade tractariana, para a concepção terapêutico-gramatical das Investigações - mas sem confundi-la com as concepções transitórias da Fase Intermediária.

Nas Investigações uma ligação interna entre vontade e ação (como ‘ agir em geral’ e não como uma ‘ação particular antecedente’, tal como o podemos ver assinalado na sua seção 600) marca, ao nosso ver, a concepção gramatical do querer. ‘Ver aspectos’, de que depende a terapia gramatical, é uma atividade e, enquanto tal, ‘depende da vontade’ (IF, II, par. xi). A irredutível arbitrariedade das regras a reconhecemos, e remediamos apenas com uma paciente arbitragem casuística terapêutico-gramatical dos jogos que jogamos, sem trilhos nem besou-ros, sem livre-arbítrio nem determinismo, sem mentalismo nem behaviourismo. A radical arbitrariedade das regras tem sua fundação nas convenções necessárias de nossas formas de vida – e é tarefa da filosofia procurar descrever com perspicácia, e não tentar justificar com teorias, nossas formas de vida (tais quais elas são e não tal como achamos que deviam ser).

Wittgenstein, no Big Typescript, 56, parecia estar avisado, talvez mais do que nós, das ambigüidades de suas formulações, tanto que ressalta, no final, algo que poderia ser guardado, talvez, para as ocasiões em que quisermos promover comparações ou contrastes entre os usos da linguagem: “Vê-se, pois,

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depois de tudo, como o conceito de jogo, e com ele o conceito de regra de jogo, estão à beira de produzir confusões”44.

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