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Meios alternativos de resolução de conflitos urbanos e justiciabilidade do direito fundamental social à moradia MESTRADO EM DIREITO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Felipe Pires Pereira

Meios alternativos de resolução de conflitos urbanos e justiciabilidade do

direito fundamental social à moradia

MESTRADO EM DIREITO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Felipe Pires Pereira

Meios alternativos de resolução de conflitos urbanos e justiciabilidade do

direito fundamental social à moradia

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Direito do Estado, área de concentração de Direito Urbanístico, sob a orientação do Prof. Dr. Nelson Saule Junior

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Banca Examinadora

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__________________________________

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Se as coisas são inatingíveis...ora! Não é motivo para não querê-las... Que tristes os caminhos, se não fora A presença distante das estrelas!

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, por tudo. Agradeço a minha querida mãe, Helena, por me dar todo amor que há nessa vida. Ao meu irmão Thiago, pelo amor fraterno e exemplo de advocacia competente e apaixonada, que fez nascer em mim o sonho de ser um defensor público. Ao meu sobrinho, Bruno Santiago, agradeço a amizade, a alegria e os momentos juntos. A Laís, minha Lala, agradeço o amor, o carinho, a compreensão e o apoio em todas as horas.

Agradeço ao meu orientador, Prof. Nelson Saule, por me proporcionar a honra de ser seu orientando e pelo inestimável aprendizado nas aulas e reuniões de orientação. Agradeço aos professores Celso Campilongo, Daniela Libório e Marcos Porta pela oportunidade de tê-los na banca de qualificação, cujas valorosas observações em muito contribuíram ao desfecho desta dissertação. Aos professores Celso Campilongo e Edson Saleme, por aceitarem o convite para compor a banca de defesa.

Agradeço aos meus amigos Guto, Rodrigo, Felipe, Luisinho, Rafael e Adriano, entre tantos outros, por estarem sempre ao meu lado. Aos amigos Tiago Fensterseifer e Carlos Eduardo, meu agradecimento especial por também auxiliarem nas minhas dúvidas, compartilharem o conhecimento que possuem e por terem incentivado o meu ingresso no curso de mestrado.

Agradeço aos amigos defensores públicos da Regional de Santos, do Núcleo de Habitação e Urbanismo e da Administração Superior, pelo apoio e suporte no decorrer desses últimos anos de muita dedicação aos estudos. Às minhas estagiárias Alice, Adriana e Camila, e aos ex-estagiários Lucas, Rafael, Renato, Elaine, Tatiane, Carlos e Sidney, agradeço por acreditarem todos os dias em que trabalhamos juntos que é possível democratizar o acesso à justiça na defesa dos cidadãos hipossuficientes, por mais dignidade, cidadania e igualdade.

Dedico este estudo à memória do meu pai, Nelson, cujo maior objetivo em vida era propiciar aos filhos tudo aquilo de que nunca pôde desfrutar, a começar pelo ensino superior. Mais uma etapa foi cumprida pai, o que você me ensinou é o que me faz feliz. Obrigado!

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RESUMO

PEREIRA, Felipe Pires. Meios alternativos de resolução de conflitos urbanos e justiciabilidade do direito fundamental social à moradia. São Paulo, 2011. 225 f. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

O principal objetivo desta dissertação é demonstrar que a previsão do direito à moradia na normativa internacional de Direitos Humanos e a sua inclusão de forma expressa no rol dos direitos sociais da Constituição Federal brasileira impõe aos Estados e aos particulares a obrigação de proteger e promover esse direito aos cidadãos social e economicamente vulneráveis.

Essa investigação teórica encontra solidez nos princípios constitucionais fundamentais da política urbana e na compreensão do direito à moradia como direito fundamental social de raízes nos princípios da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da igualdade e não-discriminação e da solidariedade, e na releitura dos institutos jurídicos da posse e da propriedade à luz da função social.

O novo enfoque de acesso à Justiça consiste no elo instrumental para reivindicação do direito à moradia perante o Poder Público, especialmente pelo exercício das atribuições conferidas à Defensoria Pública pelo legislador constituinte.

Os resultados propostos são a efetivação do direito fundamental social à moradia através da educação em direitos, da mediação e dos mecanismos internacionais de proteção, bem como a propositura de ações judiciais individuais e coletivas para justiciabilidade desse direito social na perspectiva defensiva e prestacional dos direitos fundamentais.

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ABSTRACT

PEREIRA, Felipe Pires. Alternative means of resolution of urban conflicts and justiciability of the fundamental social right to housing. São Paulo, 2011. 225 f. Master Thesis – College of Law, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

The main objective of this dissertation is to demonstrate that the prediction of housing rights in International Human Rights norms and their explicit inclusion on the list of the social rights of the Brazilian Federal Constitution imposes on states and individuals the obligation to protect and promote this right to socially and economically vulnerable citizens.

This theoretical research finds strength in fundamental constitutional principles of urban policy and understanding of the right to housing as a fundamental social right rooted in the principles of human dignity, citizenship, equality, non-discrimination, solidarity, and the review of legal institutions and property ownership in the light of social function.

The new approach to access to Justice is the instrumental bond for claiming the right to housing before Government, especially through the exercise of the powers conferred to the Public Defender by the constitutional legislator.

The proposed results are the implementation of the fundamental social right to housing through a rights education, mediation and international mechanisms of protection, as well as the bringing of legal individual and collective actions for social protection of this right in a defensive and comprehensive perspective of fundamental rights.

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Sumário

Introdução... 10

Capítulo I - Princípios fundamentais da política urbana na Constituição Federal 1.1. Breve histórico sobre evolução da teoria dos princípios constitucionais... 15

1.1.1. Diferenciação entre princípios e regras e critérios para resolução de conflitos... 20

1.1.2. Força normativa da Constituição... 23

1.2. Princípios constitucionais fundamentais da política urbana... 27

1.2.1. Princípio da dignidade da pessoa humana... 27

1.2.1.1. Eficácia interpretativa, negativa, vedativa do retrocesso e positiva do princípio da dignidade da pessoa humana... 29 1.2.1.2. Princípio da dignidade da pessoa humana e mínimo existencial... 32

1.2.2. Pleno exercício da cidadania... 38

1.2.3. Princípio da igualdade e da não-discriminação... 44

1.2.4. Princípio da solidariedade... 51

1.3. Função social da propriedade privada... 53

1.3.1. A função social da propriedade nas Constituições brasileiras... 53

1.3.2. Distinção entre propriedade como direito fundamental e propriedade como direito patrimonial... 54 1.4. Função social da propriedade pública... 61

1.4.1. Bens públicos de uso comum do povo... 64

1.4.2. Bens públicos de uso especial... 67

1.4.3. Bens públicos dominicais... 68

1.5. Funções sociais da cidade... 69

1.5.1. Direito à água e ao acesso aos serviços públicos domiciliares e urbanos... 71

1.5.2. Direito ao transporte público e mobilidade urbana... 74

1.5.3. Direito ao trabalho... 74

1.5.4. Direito ao lazer... 75

1.5.5. Direito ao meio ambiente... 76

(9)

Capítulo II - Direito fundamental social à moradia

2.1. Direito à moradia nas Constituições e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos...

82

2.2. Direito à moradia como direito fundamental social... 92

2.3. A posse como garantia de efetividade do direito fundamental social à moradia 100 2.4. O direito à moradia na perspectiva dos direitos da personalidade... 107

2.5. A moradia como elemento do conteúdo de mínimo existencial... 115

2.6. Acesso à Justiça na política urbana como elemento instrumental do mínimo existencial e de justiciabilidade do direito à moradia... 121

Capítulo III – Justiciabilidade do direito fundamental social à moradia 3.1. Meios alternativos de resolução de conflitos urbanos... 128

3.1.1. A educação em direitos como forma de difusão de cidadania no processo urbano... 128

3.1.2. Meios para resolução de conflitos coletivos urbanos... 131

3.1.3. Mecanismos de proteção do direito à moradia no Sistema Interamericano de Direitos Humanos... 137

3.2. A justiciabilidade do direito à moradia na perspectiva defensiva e prestacional dos direitos fundamenta... 138

3.2.1. Gestão democrática das cidades... 139

3.2.2. Funções sociais da cidade... 144

3.3.3. ZEIS - Zona de Especial Interesse Social... 148

3.3.4. Defesa em ações possessórias... 157

3.3.5. Defesa em ações reivindicatórias... 175

3.3.6. Proibição de despejos forçados sem prévia alternativa de moradia... 185

3.3.7. Locação Social... 192

3.3.8. Inscrição em programas habitacionais de interesse social... 199

Conclusão... 202

(10)

Introdução

O último estudo do Governo Federal brasileiro sobre o déficit habitacional no país foi elaborado pelo Centro de Estatística e Informações da Fundação João Pinheiro (CEI/FJP), em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), por meio do

Projeto e ―Apoio à Implementação do Programa Habitar Brasil-BID‖, cujo resultado foi

publicado pela Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, em 2009.1

Esse estudo considerou como déficit habitacional a necessidade imediata de construção de novas moradias para solucionar problemas sociais de habitação, bem como das moradias inadequadas, entendidas como aquelas que geram distorções na qualidade de vida dos moradores.

Estima-se, assim, que o déficit habitacional em 2007 era de 6,273 milhões de domicílios, sendo que 5,180 milhões, ou 82,6% (oitenta e dois, seis por cento) estavam localizados em áreas urbanas. O maior déficit localizava-se na região Sudeste: 2,335 milhões, 37,2% do total, seguido da região Nordeste, onde o déficit atingia 2,144 milhões de moradias, o equivalente a 34,2% do total.

A estimativa de déficit habitacional conforme a faixa de renda da população em salários mínimos aponta que 89,4% das pessoas que demandam uma nova moradia auferem rendimentos mensais de até três salários mínimos. Na faixa imediatamente superior, de três a cinco salários mínimos, o déficit representa 6,5% das famílias, totalizando um déficit habitacional de 95,9% na faixa de rendimentos até cinco salários mínimos mensais.

No segundo semestre de 2010, o Ministério das Cidades divulgou a atualização do indicador habitacional com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2008, desenvolvido pelo IBGE, confirmando a redução do déficit de moradias entre 2007 e 2008. Conforme a pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional sofreu uma queda e estaria, à época, em torno de 5,572 milhões de moradias.2

1 Brasil. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Habitação. Déficit habitacional no Brasil 2007/Ministério das

Cidades, Secretaria Nacional de Habitação. – Brasília, 2009. Fonte: www.cidades.gov.br – Acesso em 15/05/2011.

2 Fonte: Ministério das Cidades - 01/09/2010 -

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Desse total, 83% dos domicílios localizavam-se em áreas urbanas. A maior concentração do déficit habitacional – 96,6% do total – continuava abrangendo as famílias com renda inferior a cinco salários mínimos. A maior parte do déficit habitacional também continuava concentrada na região Sudeste com 36,9% do total, ou seja, 2,1 milhões de moradias. A região Nordeste permaneceu com o segundo maior déficit habitacional do país: 2 milhões de domicílios ou 35,1% do total.

Ainda de acordo com o referido estudo, havia, em 2008, cerca de 7,2 milhões de domicílios vagos em condições de serem ocupados ou em construção no Brasil, sendo que desse total 5,2 milhões estavam localizados em área urbana.

Pela análise dos dados lançados acima, verifica-se que a redução do déficit habitacional depende, em geral, da construção de novas unidades habitacionais em quantidade suficiente para absorver a demanda dos problemas sociais de habitação e das moradias consideradas em situação inadequada à qualidade de vida dos moradores.

Não resta dúvida de que esse é o caminho a ser trilhado pela União, Estado, Distrito Federal e Municípios no exercício da competência comum de promover programas de construção de moradias e de melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico, em obediência ao mandamento constitucional contido no artigo 23, inciso IX, da Constituição Federal.

O maior exemplo de política pública nessa seara foi a edição da Medida Provisória nº 459/2009, convertida na Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2009, que instituiu o PMCMV –

Programa Minha Casa Minha Vida, de autoria do Governo Federal. Esse programa prevê o investimento de R$ 34.000.000.000,00 (bilhões de reais) para construção de um milhão de moradias em todo país.

Entre as principais finalidades do PMCMV está a criação de mecanismos de incentivo à produção e à aquisição de novas unidades habitacionais pelas famílias com renda mensal de até dez salários mínimos, que residam em qualquer dos Municípios brasileiros.

(12)

implementação do programa em Municípios com população de até 50.000 (cinquenta mil) habitantes, e para atendimento a beneficiários com renda familiar mensal de até três salários mínimos.

Desta forma, o PMCMV pretende alcançar as famílias cujos rendimentos estão inseridos na faixa mais atingida pelo déficit habitacional, conforme demonstraram os resultados das pesquisas anteriores.

Todavia, a par da intensificação dos programas habitacionais de interesse social, que constituem a principal via de redução do déficit habitacional brasileiro, o direito social à moradia inserido no artigo 6º, da Constituição Federal, pela Emenda Constitucional nº 26/2000, ainda suplica por maior aplicabilidade na resolução dos conflitos urbanos.

A constatação de que o déficit habitacional deve ser enfrentado prioritariamente pela implementação de políticas de iniciativa do Poder Público, não exclui a proteção do direito social à moradia em situações concretas, e tampouco desautoriza os cidadãos a buscarem a satisfação desse direito perante o Poder Judiciário, consideradas as circunstâncias do caso concreto.

O direito social à moradia – assim como os direitos sociais em geral – não pode continuar a ser visto como norma constitucional que apenas indica um programa político a ser seguido pelo Poder Público, cuja execução, contudo, depende única e exclusivamente da vontade do legislador e da discricionariedade do administrador, a começar pelo próprio Poder Judiciário.

Do mesmo modo, a tradicional noção liberal de posse e de propriedade arraigada no ordenamento jurídico brasileiro deve perder espaço em favor de uma concepção baseada na função social desses institutos jurídicos, em prol do acesso as pessoas de baixa renda à moradia, decorrente da segurança na posse e da situação jurídica de propriedade. A funcionalização da posse e da propriedade é necessária, inclusive, com finalidade de diminuir as desigualdades sociais na origem da propriedade privada em solo brasileiro.

(13)

a ruptura revolucionária do sistema jurídico de propriedade imobiliária, mas afirmar-se que a destinação social e econômica desses bens já não está mais vinculada única e exclusivamente à liberalidade do titular e, sim, ao bem-estar da coletividade.

A concretude do direito social à moradia à população de baixa renda, em especial, está sujeita a maior justiciabilidade desse direito em face do Poder Público ou de particulares.

A ausência de uma moradia adequada impede o gozo de qualquer outro direito inerente ao ser humano. Sustentar que pode haver uma vida digna, com respeito aos direitos fundamentais do direito à vida, à liberdade, à intimidade, à saúde, à educação e à convivência familiar, sem desfrutar do direito à moradia, em igual patamar de relevância dentro do sistema, é fazer letra morta do princípio da dignidade da pessoa humana.

Todos, sem exceção, precisam de um lar digno, um lugar para onde voltar e descansar após o trabalho. Um lugar em que a convivência familiar seja harmoniosa, um lugar em que o direito à saúde seja uma preocupação comum, decorrente das mazelas cotidianas, e não uma luta contra a insalubridade e contra a falta de saneamento básico. Um lugar em que as crianças possam brincar e estudar, sem que os pais precisem se preocupar com a elevação da água das chuvas, com o escorregamento do barranco ou com o rompimento do chão da palafita.

Um lugar melhor, maior e mais belo que uma calçada no centro da cidade ou um espaço embaixo do viaduto. Na verdade, essas pessoas estão à margem da natureza humana, vivendo ao relento bem debaixo dos olhos descompromissados do Estado e da sociedade. Sustentar alguma dignidade, sustentar que essas pessoas são livres, com o mínimo acesso à saúde, à educação e ao trabalho, sem possuir sequer um endereço fixo, é minimizar e enfraquecer a própria noção de ser humano.

E, para que tudo isso não fique apenas no ideário comum de justiça social – afinal quem não acha que todos os cidadãos têm direito à moradia adequada – instiga-se encontrar uma construção jurídica que torne o direito social à moradia mais concreto e efetivo à população de baixa renda, seja através dos meios alternativos de resolução de conflitos ou da justiciabilidade concreta do direito frente ao Poder Judiciário, enquanto o Poder Público não se desincumbir de maneira minimamente razoável da obrigação constitucional que lhe foi conferida em matéria habitacional.

(14)

analisando, a partir de determinados instrumentos à disposição nas normas de proteção aos direitos humanos e no ordenamento jurídico interno, casos concretos de justiciabilidade do direito social à moradia.

(15)

Capítulo I

Princípios fundamentais da política urbana na Constituição Federal

1.1. Breve histórico sobre evolução da teoria dos princípios constitucionais

A expressão ―princípio‖ pode assumir diversos significados, dentre eles a indicação de

início, começo, origem, fundamento, fonte, causa, idéia ou até mesmo finalidade3. Apoiado em autores estrangeiros, José Afonso da SILVA afirma que

os princípios são ordenações que se irradiam e imantam o sistema de

normas, são como ‗núcleos de condensações‘ nos quais confluem valores e

bens constitucionais. Os princípios, que começam por ser a base de normas jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípio e constituindo preceitos básicos dessa organização

constitucional‖.4

Ainda segundo o referido autor, os princípios constitucionais dividem-se basicamente em duas categorias: a primeira delas é formada pelos princípios político-constitucionais, entendidos como as decisões políticas fundamentais sobre a forma de existência política das nações, e que constituem a matéria do artigo 1º ao 4º, da Constituição Federal, ao passo que a segunda é composta pelos princípios jurídico-constitucionais, que são os pilares da ordem jurídica nacional, como o princípio da isonomia, o princípio da declaração dos direitos sociais, e do devido processo legal, dentre outros.5

A partir desses significados, pode-se indagar em que medida os princípios constitucionais – e não apenas os princípios fundamentais contidos no artigo 1º ao 4º, da Constituição Federal brasileira – contribuem para resolução dos conflitos urbanos e justiciabilidade do direito à moradia. Para tanto, é preciso acompanhar a evolução da teoria dos princípios, ou seja, a juridicidade dos princípios ao longo da história até alcançar as doutrinas contemporâneas, que pregam a aplicação direta e efetiva dos princípios constitucionais aos casos concretos.

3Sérgio Sérvulo da CUNHA identifica onze acepções possíveis para o termo ―princípio‖, como, por exemplo, indicativo de

começo, de início, de proposição, de causa natural para o movimento dos corpos, de elemento ativo ou de composição das coisas, de matriz fenomênica que compõe a realidade, de fator de existência e funcionamento do sistema e de finalidade de uma instituição correspondente a sua natureza, essência ou espírito (Princípios Constitucionais. - São Paulo: Saraiva, 2006, p. 5/6).

(16)

Durante toda a evolução humana, o direito foi concebido como técnica de solução de conflitos e instrumento de pacificação social. No período romano, o Código Civil era o núcleo de todo o sistema jurídico. Já ao final da Idade Média no século XVI, o surgimento do Estado moderno faz o direito perder a conotação de dogma divino por força das construções filosóficas da natureza humana.6

Na escalada de juridicidade dos princípios constitucionais, essa fase é conhecida como jusnaturalista, vez que eram considerados como princípios gerais de direito a partir da lei divina e da razão humana. Não eram programáticos, tampouco aplicáveis ao ordenamento jurídico, sendo encarados apenas como o ideal de justiça, como axiomas jurídicos estabelecidos pela razão7. Os princípios extraídos do ordenamento jurídico eram insuficientes para preencher as lacunas da lei, invocando-se a consequente complementação pelo direito natural.

Esse mesmo período foi marcado pela ideia de constitucionalismo liberal, surgida no final do século XVIII, na Constituição Norte-Americana (1787) e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), editada após a Revolução Francesa, pondo fim ao absolutismo reinante e colocando o povo como titular legítimo do poder político-estatal.

Aos poucos, o movimento liberal e individualista reinante nesse período impulsionou a codificação do direito, muito em virtude da oposição ao regime absolutista, e, ato contínuo, deu origem à decadência do direito natural e à expansão do positivismo jurídico, a partir do século XIX.8

Sob a ótica positivista, os princípios são considerados uma fonte normativa subsidiária à lei. Os princípios não eram superiores às demais normas do ordenamento jurídico, pois caracterizavam meras pautas programáticas supra legais, com carência de normatividade e irrelevância jurídica, e tinham como função primordial estender sua eficácia para impedir o vazio normativo decorrente de eventual falta de regulamentação legal9.

De certa maneira, o direito foi reduzido à aplicação da norma imperativa e coativa emanada pelo poder competente, sem qualquer espaço para valoração baseada em critérios de

6 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional

transformadora. 6ª Edição. - São Paulo: Saraiva, 2004, p. 312.

7 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24ª Edição. - Malheiros Editores, 2009, p. 260/262.

8Nas palavras de Luís Roberto BARROSO, ―os direitos naturais, cultivados e desenvolvidos ao longo de mais de dois

milênios, haviam se incorporado de forma generalizada aos ordenamentos positivos. Já não traziam a revolução, mas a conservação. Considerado metafísico e anticientífico, o direito natural é empurrado para a margem da história pela onipotência positivista do século XIX‖. (Idem, p. 321/322).

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justiça e equidade para aplicação ao caso concreto. Os propulsores do positivismo jurídico defendiam que toda norma jurídica tinha em si um valor, já mensurado no ato de sua edição, e por isso não poderia ser valorada novamente pelo aplicador do direito, justificando o pensamento na validade da norma e não em critérios de justiça ou moral. Segundo Luís Roberto BARROSO:

O positivismo pretendeu ser uma teoria do Direito, na qual o estudioso assumisse uma atitude cognoscitiva (de conhecimento), fundada em juízo de fatos. Mas resultou sendo uma ideologia, movida por juízos de valor, por ter se tornado não apenas um modo de entender o Direito, como também de querer o Direito. O fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados. A idéia de que o debate acerca da justiça se encerrava quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador da ordem estabelecida.10

A extrema obediência aos preceitos positivados, independentemente dos resultados produzidos no mundo empírico, provocou a decadência do positivismo jurídico na primeira metade do século XX, que ao final acabou associado à queda do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, movimentos político-ideológicos de caráter militar criados na égide da legalidade e que promoveram barbáries em nome da lei.11

Por essas razões, a partir da segunda década do século XX, os princípios passam a integrar o sistema jurídico não apenas como fonte subsidiária, mas com ―hegemonia

axiológica convertidos em pedestal normativo sobre o qual se assenta todo o edifício jurídico

dos novos sistemas constitucionais‖.12Esse raciocínio é precedido de um longo traçado teórico de desconstrução da teoria positivista que reconheceu os princípios como parte integrante do sistema jurídico, com normatividade e status de ponto de partida para a resolução dos

conflitos postos em juízo.13

Em síntese, Ronald DWORKIN apontou três argumentos estruturantes do positivismo e, em seguida, identificou as falhas do referido pensamento, demonstrando a viabilidade da teoria que ao final autoriza o emprego dos princípios aos casos concretos. Segundo o referido

10 BARROSO, Luís Roberto. Op. Cit., p. 324. 11 Idem, p. 324.

Celso Fernandes CAMPILONGO, ao analisar a relação do positivismo e o ensino jurídico no Brasil durante a ditadura brasileira, reconhece como desmesuradas as críticas européias ao positivismo, que geraram eco no país, e rechaça a correlação direta do positivismo como teoria jurídica legitimadora do Estado de exceção. O autor refere que o formalismo, o fundamento de validade da norma e na sistematização racional da ordem jurídica impedem, na essência, a politização do

Direito, utilizada a partir de um critério teleológico de legitimação (o ―princípio do Führer‖ na Europa, e o ―milagre econômico‖, no Brasil), que impulsionava a hostilidade da ditadura ao direito, vez que o relativismo típico do positivismo e a validade formal sempre foram diametralmente opostos ao arbítrio dos regimes ditatoriais. (Kelsen, o positivismo e o ensino do direito nos anos 70. In: Direito e diferenciação social. - São Paulo: Saraiva, 2011, p. 32/45).

12 BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 264.

(18)

autor: a) a estrutura e os limites do positivismo originaram uma concepção de direito debruçada em regras identificadas pelo critério da origem, e não pelo critério do conteúdo, distintas de regras sociais ou morais; b) a eventual vagueza das regras quanto ao critério de origem para solução de casos concretos de alta complexidade autorizam o julgador a buscar soluções fora do ordenamento jurídico, o que caracteriza discricionariedade judicial, ante a não-vinculação da decisão ao ordenamento positivo; e c) o conceito de obrigação jurídica (dever/direito) depende de uma regra que declare tal relação. Portanto, em casos difíceis, o julgador cria uma regra, e por conseqüência um dever/obrigação não existente antes do julgamento.14

Esses argumentos, em especial os critérios solucionadores de casos não previstos pelo legislador, levam o autor a reconhecer que os indivíduos possuem direitos antes mesmo da positivação das regras, sendo que a tarefa do julgador é descobrir esses direitos em vez de criá-los, cujo acerto da decisão aplicada aos casos difíceis é condicionado apenas pela melhor justificação, pela melhor fundamentação no caso concreto. É justamente nesse ponto que os princípios ganham relevância no sistema, pois a melhor fundamentação será sempre aquela que considerar os postulados constitucionais, as regras fixadas e os precedentes judiciais. Disso resulta a conclusão de que os princípios devem integrar o ordenamento jurídico, que por essas razões não é composto exclusivamente de regras, e que a aplicação concreta dos princípios pressupões critérios morais.15

Tal raciocínio desconstrói os argumentos positivistas elencados anteriormente, visto que os critérios morais importam para aplicação das normas (e não apenas critérios de origem); que os princípios sempre oferecem apoio ao julgador, circunstância que elimina a necessidade de buscar soluções não compreendidas no ordenamento jurídico, desbancando, nessa seara, a discricionariedade do julgador e, por fim, a conclusão de que o juiz não cria o direito, mas apenas encontra a fundamentação nos princípios que lhe são oferecidos por ele.16

A evolução da teoria da juridicidade dos princípios influenciou filosoficamente na trajetória do novo constitucionalismo, em crescimento ao longo do século XX, após o que a Constituição ganhou normatividade, com caráter de norma jurídica e aplicabilidade imediata.

14 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. 3ª Edição. - São Paulo: Editora WMF Martins

Fontes, 2010, p. 27/28.

15 Idem, p. 35/72.

16 ALEXY, Robert. Direito, razão, discurso: estudos para a filosofia do direito. Tradução Luis Afonso Heck. Porto Alegre:

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Luis Roberto BARROSO aponta três marcos fundamentais nessa trajetória: o histórico, o filosófico e o teórico.17

Na lição do autor, o marco histórico caracteriza-se pelo surgimento do Estado Constitucional de Direito, que teve como principais referências a reconstitucionalização da Europa, a Constituição italiana (1947) e a alemã (1949), elaboradas ao término da 2ª Guerra Mundial, bem como a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, criado em 1951. No Brasil, o renascimento do direito constitucional deu-se na redemocratização do país após a ditadura militar que culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988.18

O marco filosófico encontrou lugar no pós-positivismo, que aproximou a ciência do direito e a filosofia, inspirado na revalorização da razão prática, da teoria da justiça e na legitimação democrática. Assim, a normatividade dos princípios, a teoria dos direitos fundamentais e a elevação da dignidade da pessoa humana para o núcleo axiológico do ordenamento jurídico são aspectos fundamentais para a nova leitura da Constituição.19

Por fim, o marco teórico reside na força normativa da Constituição, na supremacia da Constituição e na nova interpretação Constitucional, que embasam o enquadramento da norma constitucional como norma jurídica de observação obrigatória ao Estado e ao particular, na superioridade dessas normas sobre qualquer outra, condicionando a interpretação constitucional.20

Portanto, os princípios oferecem o contorno constitucional dessa nova fase com a reaproximação entre moral e direito, com intensa constitucionalização de direitos fundamentais. A Constituição mantém seu caráter de norma superior organizando o Estado e estruturando todo o ordenamento jurídico positivado e, ao mesmo tempo, reintroduz as ideais de dignidade, justiça, igualdade e paz na aplicação do direito.

Na medida em que os princípios passaram a ser vistos também como normas jurídicas, surgiu a necessidade de diferenciar as espécies de normas em princípios e regras jurídicas. Essa diferenciação é importante para a aplicação dos princípios constitucionais ao caso concreto, principalmente com objetivo de resolver os conflitos resultantes do emprego dessas normas.

17 BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do

novo modelo. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 245.

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1.1.1. Diferenciação entre princípios e regras e critérios para resolução de conflitos

A distinção entre princípios e regras foi traçada por Ronald DWORKIN e Robert ALEXY, sendo que este último estruturou a discussão na base da teoria dos direitos fundamentais. Da obra desses autores extrai-se que os princípios e as regras são espécies de normas jurídicas, vez que ambos possuem, ainda que em escala diferente, os ideais deônticos do dever, da permissão e da proibição.21

Porém, alguns critérios diferenciam as duas espécies de normas jurídicas. Dentre eles, o critério de qualidade geral na estrutura da norma é o que mais de perto importa. Para Ronald

DWORKIN, a aplicação das regras segue o postulado do ―tudo ou nada‖, ou seja, ou a regra é

aplicável ao caso concreto mediante subsunção do fato a norma, hipótese em que é aceita como solução válida pela decisão judicial, ou a regra não enquadra pronta solução ao fato, caso em que é inválida para influenciar o julgamento. As exceções à regra, por sua vez, não invalidam o caráter de ―tudo ou nada‖, até porque uma formulação completa de regra deve prever todas as exceções, o que em tese é possível, por mais numerosas que sejam as possibilidades de exceções à regra.22

De outro lado, os princípios não determinam coercitivamente a decisão, mas trazem consigo fundamentos aptos a sugerir a decisão num ou noutro sentido, inclusive sob a influência de outros princípios precedentes. Ao contrário das regras, a existência de um princípio em sentido antagônico não pode ser visto como exceção ao princípio em primeiro plano, pois não é possível aplicar aos princípios o postulado do ―tudo ou nada‖.23

Quanto à diferenciação qualitativa entre regras e princípios, é de suma importância ressalvar o entendimento de Robert ALEXY, que classifica os princípios como mandamentos

de otimização, eis que ―ordenam que algo seja realizado na maior média possível dentro das

21 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva da 5ª Edição alemã de

Theorie

der Grundrechte, publicada pela Suhrkamp Verlag, 2006. – Malheiros Editores, 2008, p. 87.

22 DWORKIN, Ronald. Op. Cit., p. 39/40.

Com apoio em diversos autores nacionais e estrangeiros, Luis Roberto BARROSO sistematiza a diferenciação entre princípios e regras em três critérios de distinção: a) o conteúdo; b) a estrutura normativa; e c) o modo de aplicação. O

primeiro é traçado com base na expressão ―princípio‖, que indica as decisões políticas fundamentais, os valores e os fins

públicos previstos na Constituição Federal e podem se referir aos direitos individuais e coletivos, ou para designar a importância de outras prescrições. As regras, de outra banda, são comandos objetivos que expressam um preceito, uma proibição ou uma permissão. O segundo critério, de estrutura normativa, aponta que os princípios são normas majoritariamente finalísticas, enquanto as regras são descritivas. Por último, o modo de aplicação aproxima-se do critério

qualitativo já exposto, em que as regras seguem o ―tudo ou nada‖ e os princípios são mandamento de otimização que trazem

os valores e as finalidades constitucionais para orientação do interprete na aplicação do direito. (Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 205/207).

(21)

possibilidades jurídicas e fáticas existentes‖, e são caracterizados ―por poderem ser satisfeitos

em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente

das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas‖; ao passo que as regras

―são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se

fazer exatamente aquilo que ela exige, nem mais, nem menos‖.24

Transportando esses conceitos a um exemplo prático e nuclear para os objetivos do presente estudo, pode-se elencar e diferenciar princípios e regras voltados à resolução dos conflitos urbanos. Na condição de princípios e, por isso, na qualidade de mandamentos de otimização, que devem ser realizados na maior medida possível, encontram-se as normas atinentes ao direito à moradia (artigo 6º, CF), a função social da propriedade privada e pública (artigos 5º, XXIII, 170, III, CF) e a função social das cidades (artigo 182, CF). Como exemplo de regra constitucional, cita-se o artigo 183, da Constituição Federal, que trata da usucapião especial para fins de moradia, aplicável apenas quando preenchidos os requisitos nela

expostos, em clara evidência da característica típica de ―tudo ou nada‖ das regras. Essa mesma regra também contém um princípio constitucional implícito: o da função social da posse urbana, consubstanciada na moradia própria ou familiar.25

Isso leva a indagar quais princípios devem prevalecer no caso concreto na hipótese de conflito entre eles, ou entre eles e outros princípios e regras constitucionais? Há hierarquia entre princípios e regras, de forma alternada ou respectivamente (no caso de colisão entre princípios versus princípios e regras versus regras)? Essa pergunta conduz à segunda parte da

teoria da diferenciação entre princípios e regras, denominada de teorema da colisão, desenvolvida pelos mesmos autores.

Segundo ALEXY, conflitos entre regras só podem ser solucionados, se uma delas contiver uma cláusula de exceção, delineando a hipótese em que a outra regra não se aplica.26 Em caso contrário, os conflitos devem ser resolvidos pela invalidação de uma das regras, pelos conhecidos critérios de resolução de conflitos aparentes de normas: o hierárquico, o cronológico e o da especialização.

24 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 90.

25 Vale destacar o entendimento Ingo Wolfgang SARLET, que vê no referido dispositivo um direito fundamental à aquisição

da propriedade por usucapião como forma de efetivação da função social da posse e da propriedade, baseado no conceito de abertura material do catálogo de direitos fundamentais, com o que concordamos integralmente e exploraremos ao tratar da função social da propriedade. (Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9ª ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, Editora, 2011, p. 107).

26 O autor exemplifica da seguinte forma: uma regra proíbe alguém de deixar a sala antes que o sinal toque e outra determina

(22)

A colisão entre princípios deve ser resolvida de forma totalmente diversa, sem invalidação de um dos princípios conflitantes. Nessas hipóteses, entra em cena o critério do peso do princípio para solução do caso concreto27, mediante a ponderação dos interesses envolvidos no julgamento.28

A técnica da ponderação de interesses é uma construção destinada à resolução de conflitos na aplicação dos princípios, normas na mesma posição hierárquica que não admitem subsunção ou invalidação umas das outras, cujo processo pode ser dividido em três etapas: na primeira, deve o intérprete identificar as normas relevantes para a solução do caso, bem como eventuais conflitos advindos da aplicação dessas normas; na segunda, deve o intérprete analisar os fatos e as circunstâncias envolvidas no caso em concreto, e a correspondência desses elementos com as normas identificadas; na terceira, última, e mais importante etapa, cabe ao intérprete analisar os fatos em conjunto e atribuir o peso aos elementos em disputa, chegando a solução ser aplicada através dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.29

Como exemplo, pode-se identificar o constante conflito, ainda que aparente no que toca à sua solução, submetidos aos tribunais pátrios em razão da edificação de moradias em áreas de proteção ambiental ou em desconformidade com as normas de uso e ocupação do solo da localidade afetada. Em vista da multiplicidade de fatores econômicos e sociais que resultam nessas ocupações informais, que vão, em rol aberto, desde a ausência de distribuição de renda, de oferta de emprego, de programas habitacionais de interesse social até a urbanização como instrumento regulador de mercado e especulação da terra em centros urbanos, não raro há discussão judicial sobre a prevalência, no caso em concreto, do direito à moradia (artigo 6º, CF), do direito à cidade (artigo 182, CF) e do direito ao meio ambiente equilibrado e protegido (artigo 225, CF), em que a técnica da ponderação de interesses é a única solução constitucionalmente válida a fundamentar o pronunciamento judicial, o que será demonstrado ao se tratar das funções sociais da cidade.

Em conclusão a tudo o que foi exposto sobre a evolução dos princípios constitucionais, vale aproximar toda a teoria de integração dos princípios ao núcleo do

27 DWORKIN, Ronald. Op. Cit., 42/44.

28A ponderação (ou sopesamento, no original) objetiva definir qual dos interesses, abstratamente no mesmo nível, têm

maior peso no caso concreto‖. (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 95).

29 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do

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sistema jurídico para concretude em casos de difícil solução ao objetivo do estudo, que é promover a resolução alternativa e a justiciabilidade do direito à moradia.

Isto porque a falta de normatividade usualmente atribuída ao direito à moradia, inscrito no catálogo constitucional de direitos fundamentais sociais, aliada à escassez de legislação para sua promoção ou defesa, em âmbito público ou privado – este último em virtude da marca individual e patrimonialista que orienta a disciplina da posse e da propriedade no ordenamento jurídico brasileiro, que ainda encontra eco majoritário entre os aplicadores do direito – deixa à mercê a concretização do direito à moradia. Nessa quadra, os princípios constitucionais ganham especial relevância para a tutela efetiva desse direito tanto na aplicação direta e imediata, quanto na orientação do intérprete para resolução de casos concretos30, cujos princípios basilares serão demonstrados a seguir.

1.1.2. Força normativa da Constituição

Antes de se analisar os princípios ditos fundamentais para a resolução dos conflitos urbanos, cabe questionar qual a efetividade dessas normas jurídicas no ordenamento constitucional vigente. Superada a fase de subsidiariedade dos princípios dentro do sistema positivado e atento à realidade de que esses princípios integram a Constituição Federal brasileira, indaga-se se é possível fazer valer a norma constitucional do direito fundamental social à moradia com maior autonomia em relação à legislação infraconstitucional.

Essa e outras respostas passam, inevitavelmente, pelo estudo da teoria da força normativa da Constituição, de autoria de Konrad HESSE. A partir desse estudo, o autor questiona qual a força determinante do direito constitucional como ciência da normativa jurídica e não apenas como documento de organização política do Estado.31

30 Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento

jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando pressões normativas. De parte isto, servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação dos princípios maiores que regem o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie. Estes os papéis desempenhados pelos princípios: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do interprete. (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora, p. 327).

31 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes do original

Die normative Kraft

(24)

Na lição do autor, a resposta é extraída de três pontos de investigação: a) a existência de um condicionamento recíproco entre a Constituição jurídica e a realidade social; b) os limites e as possibilidades de atuação da Constituição jurídica; e c) os pressupostos de eficácia da Constituição.32

Com relação ao primeiro ponto, Konrad HESSE afirma que a realidade política não pode ser analisada de forma dissociada da ordenação jurídica ou vice-versa. A norma constitucional não possui autonomia em relação à realidade e encontra sua essência ao regular a situação que pretende ser concretizada no mundo fático, devendo contemplar as condições históricas para a sua realização, tais como as naturais, técnicas, econômicas e sociais, como também o substrato espiritual do povo, ou seja, os valores que ensejam a conformação, o entendimento e a autoridade da norma.33 Nas palavras do próprio autor:

A Constituição não configura, portanto, apenas uma expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que um simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social.34

Em contrapartida, a normatividade da Constituição reside na elaboração de normas para construção do Estado de forma objetiva, ao invés de abstrata e teórica, baseadas não só na vontade do poder, mas também na vontade de Constituição. Essa última surge da necessidade de uma ordem inquebrável, que proteja o Estado contra o arbítrio; na

32 HESSE, Konrad. Idem, p. 13. 33 Idem, p. 15.

O discurso proferido pelo Presidente da Assembléia Nacional Constituinte brasileira, Deputado Ulysses Guimarães, no dia de sua instalação (02/02/1987), demonstra o substrato espiritual do povo brasileiro, que clamava por uma Constituição

democrática e comprometida com a justiça social, conforme trechos a seguir transcritos: ―Srs. Constituintes, esta assembléia

reúne-se sob um mandato imperativo: o de promover a grande mudança exigida pelo nosso povo. Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar. (...) Nosso povo cresceu, assumiu o seu destino, juntou-se em multidões, reclamou a restauração democrática, a justiça social e a dignidade do Estado. Estamos aqui para dar essa vontade indomável ao sacramento da lei. A Constituição deve ser – e será – o instrumento jurídico para o exercício da liberdade e da plena realização do homem brasileiro. (...) Todos os nossos problemas procedem da injustiça. O privilégio foi o estigma deixado pelas circunstâncias do povoamento e da colonização, e de sua perversidade não nos livraremos sem a mobilização da consciência nacional. O privilégio começa na posse da terra, no início repartida, pelos favores reais, entre as oligarquias imigradas. Essas mesmas oligarquias acostumaram-se ao trabalho escravo e dele não querem abrir mão. Como bem nos apontou mestre Afonso Arinos de Melo Franco, as senzalas do século passado estão hoje nas favelas. Nas favelas os subúrbios que amontoam os trabalhadores modernos, brancos, pretos, mestiços – mas todos legatários da condenação de servir e sofrer. (...) Para sentir-se melhor de si mesmo, cada homem necessita de chão e teto, e a razão natural não admite que sobrem tetos e glebas a uns, quando milhões e milhões de outros nascem e morrem entre paredes alheias ou ao relento. Não podemos pensar no liberalismo clássico, que deixa às livres forças do mercado o papel regulador de preços e salários, em uma época de economia internacionalizada e cartéis poderosos. (...) Temos, em nossas mãos, a soberania do povo. Ele nos confiou a tarefa de construir, com a lei, o Estado democrático, moderno, justo para todos os seus filhos. Um Estado que sirva ao homem e não um Estado que o submeta, em nome de projetos totalitários de grandeza. (...) Haveremos de elaborar uma Constituição contemporânea do futuro, digna de nossa pátria e de nossa gente. Para isso, iremos vencer os desafios econômicos, políticos e sociais. Seremos os profetas do amanhã. A voz do povo é a voz de Deus. Com Deus e com o povo venceremos, a serviço da Pátria, e o nome político da Pátria será uma Constituição que perpetue a unidade de sua geografia, com a subsistência de sua história, a esperança de seu futuro e exorcize a maldição da injustiça social.‖(Os profetas do amanhã. Fonte: www.fug-rs.org.br/arquivo/ulysses_disc_constituintes.pdf - acesso em 22/06/2011).

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compreensão de que a ordem constituída não é só legitimada pelos fatos, mas depende de um constante processo de legitimação; e no entendimento de que a efetividade dessa ordem constitucional depende do concurso da vontade humana.35

Por fim, os pressupostos de eficácia da Constituição encontram respaldo na correspondência do conteúdo do texto normativo com o estado espírito do seu tempo, o que lhe assegura o apoio e a defesa da consciência geral, sujeito a adaptações por eventuais alterações, bem como na observância e estabilidade do texto constitucional.36

Sintetizando o pensamento exposto acima, a força normativa da Constituição está relacionada à soma de elementos políticos, sociais e culturais que reflitam o espírito do povo à época de sua elaboração a partir de um consenso democrático, que garante estabilidade política ao Estado e aos indivíduos, e cuja efetividade em concreto depende do concurso da vontade humana.

Apesar de ainda carecer de maior estabilidade, vez que constantemente sujeita a seguidas emendas constitucionais, a Constituição Federal brasileira enquadra-se, em geral, nas características que atribuem força normativa aos seus preceitos. Como visto, o espírito sob o qual o texto constitucional foi redigido no Brasil apontava para a ruptura do Estado autoritário e à transição ao Estado Democrático e Social de Direito, com redução das desigualdades em busca da justiça social.37

O consenso democrático que originou a redemocratização nacional também incluiu no texto constitucional um extenso catálogo de direitos fundamentais e sociais de observância e implementação obrigatória pelo Estado. O direito à fundamental social à moradia, ponto fulcral desse estudo, goza da defendida normatividade das normas constitucionais e, como princípio que é, traz em si o mandamento de concretização contínua pelo Estado na maior medida possível, o que deve orientar a atuação política do Estado, a função legislativa e o intérprete na aplicação do direito ao caso concreto.

Por essa razão, entende-se que é possível, sim, dar maior efetividade ao princípio constitucional que veicula o direito fundamental social à moradia, principalmente através da

35 HESSE, Konrad. Idem, p. 18/20. 36 Idem, p. 20/22.

37A Constituição de 1988 é basicamente em muitas de suas dimensões essenciais uma Constituição do Estado social.

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maximização das políticas públicas pelos instrumentos postos à disposição do Estado, em especial no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) e pela interpretação constitucional a ser realizada pelo Poder Judiciário. Sobre esta última, confiram-se os ensinamentos de Konrad HESSE:

a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida aos princípios da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm a eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tabula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação.38

Por alguns caminhos que serão demonstrados adiante, pode-se dar maior sentido e amplitude ao direito fundamental social à moradia, enquanto princípio constitucional, inclusive nas relações privadas, também em atendimento aos princípios fundamentais da República e aos princípios constitucionais endereçados à política urbana. Nesses princípios repousa o arcabouço constitucional apto ao desenvolvimento de um raciocínio que visa propiciar aos cidadãos em situação de vulnerabilidade social e econômica meios de acesso e de defesa do direito à moradia.

O primeiro deles, por mais importante, é o princípio da dignidade da pessoa humana,

que embasa o conceito da própria expressão de ―moradia digna‖. Sem qualquer pretensão de esgotar o tema, os fins desta dissertação reclamam maior análise sobre o referido princípio, em especial no tocante ao conteúdo, ao significado, à densidade normativa e à relação com os direitos fundamentais no ordenamento constitucional, que emprestarão fundamento teórico à pretendida exposição das formas de justiciabilidade do direito à moradia.

Essa análise permitirá responder algumas questões viscerais para o desenvolvimento do tema, tais como o elo de ligação entre a dignidade da pessoa humana e o direito fundamental social à moradia, a existência de vinculação do Estado e dos particulares na defesa e promoção da dignidade humana e a justiciabilidade desses direitos em casos concretos.

(27)

1.2. Princípios constitucionais fundamentais da política urbana

1.2.1. Princípio da dignidade da pessoa humana

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando a coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade.39

Em síntese, duas vertentes de pensamento, elaboradas em períodos diversos da evolução humana, cristalizam a origem e o significado do princípio da dignidade da pessoa humana. A primeira encontra raízes na tradição cristã, doutrina responsável pela ideia de dignidade da pessoa humana no mundo ocidental. Segundo o Cristianismo, os homens são criados à imagem e semelhança de Deus e, por essa razão, são iguais entre si. Já a segunda, construída pelo pensamento jurídico-filosófico kantiano, baseia-se na diferenciação do homem pela dignidade, isto é, o que diferencia o ser humano dos demais seres é a dignidade; é o fato de o ser humano nunca poder ser tratado como objeto, mas, sim, como fim em si mesmo, vez que dotado racionalmente de autonomia da vontade. Portanto, o homem não pode ser tido como objeto, como meio, mas como finalidade.40

Não obstante a formulação kantiana possuir maior destaque entre todas que pretenderam delinear a origem e o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, inclusive com forte influência na proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 194841, e a par das divergências que cada teoria guarda em relação às outras, há um aparente consenso de que o elemento nuclear da dignidade da pessoa humana reside na autonomia e no direito de autodeterminação, sem prejuízo de um constante processo de desenvolvimento do conceito no plano jurídico-normativo, reclamando, assim como qualquer outra norma valorativa aberta, constante delimitação pelo intérprete.42

Essa ―flexibilidade‖ ou ―elasticidade‖ também decorre da influência de um sentido histórico-cultural de dignidade da pessoa humana e não apenas de algo inerente à natureza humana, que se completam e interagem mutuamente, impedindo uma concepção que

39 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução Paulo Quintela. Edições 70. Lisboa, Portugal:

2008, p. 81.

40 CAMARGO, Marcelo Novelino. O conteúdo jurídico da dignidade de pessoa humana. Direito Constitucional: Leituras

Complementares. Marcelo Novelino CAMARGO (organizador). – Salvador: Juspodivm, 2006, p. 46/47.

41 Artigo 1º, DUDH - Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e

consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

(28)

represente um único olhar de mundo e de moral, mas que contribui para permanente repactuação quanto ao conteúdo e significado de dignidade humana. Todavia, isso não pode conduzir a dignidade da pessoa humana a um mero apelo ético, determinando-se o seu conteúdo na situação concreta da conduta estatal e do comportamento de cada pessoa humana.43

Daí se extraí a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental na Constituição Federal de 1988 pela primeira vez na trajetória constitucional do país, fruto da intenção de clarificar o anseio por novos tempos após a redemocratização nacional, a exemplo do que aconteceu na Europa após a primeira metade do século XX. Nesse panorama, os princípios fundamentais (artigo 1º/4º) e as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais constituem o núcleo essencial formal e material da Constituição brasileira.44

Ainda que haja divergência sobre a vinculação direta entre a dignidade humana e os demais princípios fundamentais, ou seja, se todos os direitos e garantias fundamentais decorrem diretamente da dignidade da pessoa humana, representando concretizações desse princípio, ou se não há vinculação direta e específica entre eles, vez que a dignidade também pode ser realizada em diferentes graus e intensidade, pode-se exaltar o caráter informador, hermenêutico e normativo da dignidade da pessoa humana enquanto princípio e regra constitucional, em face não só dos direitos civis, mas também dos direitos sociais, econômicos e culturais45, costurando e unificando o sistema de direitos fundamentais como epicentro axiológico do sistema, bem como servindo de baliza dos atos estatais e das relações privadas.46

Esse entendimento leva à conclusão de que o princípio da dignidade da pessoa humana possui qualificação de norma jurídica fundamental da ordem jurídico-constitucional brasileira e, de acordo com SARLET:

não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo ético moral, mas que constitui norma jurídica-positiva dotada, em

43SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p. 58. 44 Idem, p. 75.

45―Em suma, o que se pretende sustentar de modo mais enfático é que a dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e

princípio normativo) fundamental, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos), muito embora – importa repisar – nem todos os direitos fundamentais (pelo menos não no que diz com os direitos expressamente positivados na Constituição Federal de 1988) tenham um fundamento

direto na dignidade da pessoa humana.‖ (SARLET, Ingo Wolfgang. Idem, p. 101/102).

46 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2 ed., 3ª tir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.

(29)

sua plenitude, de status constitucional formal e material e, como tal,

inequivocamente carregado de eficácia, alcançando, portanto – tal como sinalou Benda - a condição de valor jurídico fundamental da comunidade.47

Mais que isso, na qualidade de norma condutora de um valor jurídico fundamental do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, III, CF), a dignidade da pessoa humana possui uma dupla dimensão jurídica: objetiva e subjetiva. Na primeira dimensão, a dignidade guarda relação com os valores fundamentais da ordem comunitária, inseridos no direito positivo como princípios e direitos fundamentais, enquanto na segunda dimensão constitui uma regra de posições jurídico-subjetivas, definidora de direitos, garantias e deveres fundamentais.48

Forte nesse pensamento de proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões a partir da norma jurídica da dignidade da pessoa humana49, o direito fundamental social à moradia – fórmula que carrega a noção de fundamentalidade dos direitos sociais – constitui exigência e concretização da dignidade pessoa humana.50Nesse sentido, concorda-se com os vários autores que estabelecem estreito vínculo entre o direito fundamental social à moradia como expressão do princípio da dignidade da pessoa humana, o que será amplamente abordado, quando se discutir tratarmos especificamente o direito à moradia.

1.2.1.1. Eficácia interpretativa, negativa, vedativa do retrocesso e positiva do princípio da dignidade da pessoa humana

Por agora, limitar-se-á ao estudo da eficácia da dignidade da pessoa humana e dos respectivos canais de aplicação aos casos concretos. Com o foco nessa propalada eficácia, é produtiva a classificação das modalidades de eficácia trazida por Ana Paula de BARCELLOS, dentre as quais passam a interessar a eficácia interpretativa (indireta), a negativa, a vedativa do retrocesso e a positiva (direta). As três primeiras funcionam na esfera política do Estado, como um limite último das ações estatais que violem ou restrinjam a dignidade da pessoa humana e pressupõem a prática de atos pelo Poder Público. A quarta e última, denominada pela autora de positiva ou simétrica, reside no consenso social mínimo assegurado na

47 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p. 84/85. 48 Idem, p. 81/86.

49 Para maior compreensão sobre o tema recomendamos a leitura da obra de Paulo BONAVIDES, principalmente no tocante

à crescente tendência de justiciabilidade dos direitos sociais em função da cláusula de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais contida na Constituição Federal. (Op. Cit., p. 560/577).

(30)

Constituição, transformado em matéria jurídica pela criação de regra constitucional específica para combater a omissão do Poder Público que viole essa realização mínima da dignidade.51

No tocante à eficácia interpretativa, viu-se na lição de SARLET que o princípio da dignidade humana:

serve de parâmetro para aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico. De modo todo especial, o princípio da dignidade da pessoa humana – como, de resto, os demais princípios fundamentais insculpidos em nossa Carta Magna – acaba por operar como critério material no âmbito especialmente da hierarquização que costuma ser levada a efeito na esfera do processo hermenêutico, notadamente quando se trata de uma interpretação sistemática.52

Seguindo a ordem de indagações a elucidar, ainda que de forma sucinta, cabe verificar o papel do Estado e dos particulares no respeito e na promoção da dignidade da pessoa humana, de forma autônoma, ou por meio dos direitos fundamentais. Para tanto, cabe aqui, inicialmente, invocar a noção da dignidade da pessoa humana como limite (do Estado e dos particulares) e como tarefa (do Estado), o que implica reconhecer que tal princípio possui uma dupla dimensão: uma defensiva (ou negativa) e outra prestacional (ou positiva).53

A dimensão defensiva, negativa ou de resistência - esta última expressão também é utilizada por Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS em aplicação aos direitos fundamentais - consiste na defesa ou na resistência frente à atuação do Estado, o que, na essência, significa a proibição ao Estado de interferir injustificadamente na esfera de liberdade do indivíduo54.

Quanto aos particulares, a dignidade da pessoa humana, por transferir uma ideia de igualdade e solidariedade social, impõe deveres de proteção e respeito, já ―que o Estado nunca foi (e cada vez menos o é) o único e maior inimigo das liberdades e dos direitos

fundamentais‖, seja de modo autônomo, através do reconhecimento de direitos fundamentais ou pela existência de um dever geral de respeito.55

51 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa

humana. 3ª ed. revista e atualizada. – Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 75/106, 295/296.

52 Op. Cit., p. 95.

53 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p. 108.

54 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2007, p. 63/66.

55 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p. 133/136.

Entendemos que esse é, em síntese, o fundamento do princípio geral de respeito recíproco, de Karl LARENZ, a seguir

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