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Capítulo I Princípios fundamentais da política urbana na Constituição Federal

2.6. Acesso à Justiça na política urbana como elemento instrumental do mínimo

A evolução da sociedade de massa e, consequentemente, os conflitos intersubjetivos daí decorrentes, que possuem inegável contorno social e político, exigiram significativo avanço do ordenamento jurídico na tutela judicial e extrajudicial desses direitos. Em 1970,

Mauro Cappelletti e Brian Garth analisaram profundamente a estrutura do acesso à justiça285, através do denominado Projeto Florença, identificando três grandes barreiras na distribuição de justiça nas sociedades modernas: a) financeira (os altos custos para acionar o Poder Judiciário e o tempo médio para resolução do conflito impedem o acesso à justiça de forma igualitária a todos os cidadãos); b) organizacional (a falta de educação e informação dos cidadãos, que impede o reconhecimento de um direito juridicamente exigível, individual ou difuso); c) instrumental (inexistência de instrumentos processuais aptos à pacificação dos conflitos).

Alicerçados nessas premissas, os autores identificaram três ondas renovatórias do acesso à justiça, capazes de combater eficazmente as barreiras diagnosticadas. São elas: a) a prestação de assistência jurídica aos pobres, através de uma instituição pública criada para tal finalidade; b) a representação dos interesses difusos e a concretização de um novo acesso à justiça, fundado na assistência jurídica integral; e c) meios alternativos de resolução de conflitos.

A partir desse estudo, o escopo do acesso à Justiça é ampliado para contemplar a prestação do serviço por um sistema público, que objetive não só a tutela de interesses individuais em juízo (assistência judiciária), mas, também, a difusão da cidadania, a conscientização da população sobre os direitos humanos, a orientação jurídica, a representação em juízo ou fora dele e o fomento às técnicas de resolução alternativa de conflitos, dentre outros.

No Brasil, a assistência judiciária foi prevista pela primeira vez no artigo 141, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1946, com a seguinte redação: ―O Poder Público, na forma que a lei estabelecer, fornecerá assistência judiciária aos necessitados.‖ Da mesma forma, ou seja, ainda como assistência judiciária (longe do novo enfoque de acesso à justiça), o dispositivo foi reproduzido nas Constituições posteriores.

285 Já nessa época, esses estudiosos identificavam o acesso à justiça como ―requisito fundamental – o mais básico dos direitos

humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar direitos‖, criticando a mera enunciação de direitos, principal característica das declarações de direitos humanos, e concluindo que ―a atuação positiva do Estado é necessária para assegurar o gozo de todos os direitos sociais. Não é surpreendente, portanto, que o direito ao acesso efetivo à justiça tenha ganhado particular atenção na medida em que as reformas do welfare state têm procurado armar os indivíduos de novos direitos substantivos em sua qualidade de consumidores, locatários, empregados e, mesmo, cidadãos. De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para a sua efetiva reivindicação‖. (CAPPELLETTI, Mauro; BRIAN, Garth. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. - Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 11/12).

A Constituição Federal de 1988 finalmente incorporou a assistência jurídica integral e gratuita como direito fundamental dos cidadãos economicamente hipossuficientes (artigo 5º, LXXIV, CF), provocando uma mudança de paradigma em relação ao acesso à justiça no ordenamento jurídico brasileiro. E, totalmente alinhada com a primeira onda renovatória do Projeto Florença, instituiu a Defensoria Pública para prestação do serviço de assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados (artigo 134, CF).

Todavia, conforme o alerta contido no Relatório do Relator Especial sobre a moradia como componente do direito a um adequado padrão de vida, Miloon KOTHARI, da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas286, em missão realizada no Brasil de 29 de maio até 13 de junho de 2004, concluiu que o Poder Judiciário não investe na capacitação técnica de seus membros para o tratamento eficaz do direito à cidade como um todo.

Por outro lado, o Relator Especial identifica que a falta de criação e de fortalecimento adequado da Defensoria Pública, considerada por ele como elemento-chave para a provisão de justiça igual para todos, causa prejuízo irreparável ao acesso à Justiça dos grupos socialmente vulneráveis, fato que ensejou a recomendação para o fortalecimento e a criação da Defensoria Pública aos Governos Estaduais que, na época, não haviam cumprido o mandamento contido na Constituição Federal (São Paulo, Goiás, Paraná e Santa Catarina). Segundo o item 55 do Relatório Especial da ONU:

Uma das principais razões dessas deficiências relaciona-se à capacidade de membros individuais do judiciário. Muitos juízes, ao mesmo tempo em que aprenderam os aspectos processuais da lei, não recebem um sólido treinamento que lhes confere capacidade para tratarem de forma efetiva os aspectos sociais e econômicos de sua função, tais como discriminação em função do sexo ou a pobreza, ao julgarem casos envolvendo direitos de herança, direitos de propriedade e moradia para grupos socialmente vulneráveis. O desempenho deficiente nessas áreas é agravado pelos obstáculos enfrentados pelas populações de baixa renda no acesso à justiça devido aos custos proibitivos de assistência jurídica ou na deficiência desta. A instituição da Defensoria Pública oferece serviços e assistência jurídicos gratuitos às populações de baixa renda, de acordo com o artigo 134 da Constituição. O serviço aplica-se a todos os níveis do sistema judiciário e constitui, portanto, um elemento-chave para a provisão de justiça igual para todos os cidadãos. Entretanto, considerando as deficiências relatadas, o Relator Especial recomenda que a Defensoria Pública seja fortalecida para que possa atender melhor às demandas de proteção dos direitos dos mais necessitados. O Relator Especial também menciona que, de acordo com a lei, a instituição da Defensoria Pública deveria ser estabelecida em todos os

286 Segundo Flávia PIOVESAN, a Comissão de Direitos Humanos foi criada pelo Conselho Econômico e Social da ONU em

1946, nos termos do artigo 68 da Carta da ONU, e após mais de 50 anos de trabalho, a Comissão foi abolida em 16 de junho de 2006 e substituída pelo Conselho de Direitos Humanos. (Direitos Humanos e direito constitucional internacional. 8ª Edição – São Paulo: Saraiva, 2007, p. 127/128).

estados, e recomenda insistentemente que os três estados restantes que não atenderam a esta disposição o façam287.

Ainda carentes de fortalecimento institucional – e de criação pelo Estado de Santa Catarina - às Defensorias Públicas Estaduais foi conferida a autonomia funcional e administrativa pela Emenda Constitucional nº 45/04, dando origem a um novo regime jurídico-constitucional da Defensoria Pública. A Lei Complementar Federal nº 132/09, por sua vez, alterou substancialmente a Lei Complementar Federal nº 80/94, que organiza a Defensoria Pública da União e traça normas gerais para organização das Defensorias Públicas Estaduais.

No atual panorama normativo interno, incumbe à Defensoria Pública, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita (artigo 1º, da LCF nº 80/94, com redação dada pela LCF nº 132/09).

Especificamente, são funções institucionais da Defensoria Pública, nos termos do artigo 4º, da LCF nº 80/94, alterada pela LCF nº 132/09: a promoção de meios alternativos de resolução de conflitos (inciso II), a conscientização dos direitos humanos e da cidadania (inciso III), a representação aos sistemas internacionais de direitos humanos (inciso VI), a propositura de ação de ação civil pública para tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (inciso VII), a defesa dos interesses fundamentais individuais, coletivos, econômicos, sociais, culturais e ambientais (inciso X) e de grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado (inciso XI), dentre outros.

Confira-se, a respeito do novo regime constitucional da Defensoria Pública, trecho do pequeno ensaio de que tivemos a oportunidade de participar em conjunto com Tiago FENSTERSEIFER, assim redigido:

A Defensoria Pública exerce um papel constitucional essencial na tutela e promoção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações) das

pessoas necessitadas, pautando-se, inclusive, pela perspectiva da

integralidade, indivisibilidade e interdependência de todas elas. Assim, da mesma forma que a Defensoria Pública atua na tutela dos direitos liberais (ou de primeira dimensão), conforme se verifica especialmente no âmbito da defesa criminal, movimenta-se também, e de forma exemplar, no sentido de tornar efetivos os direitos sociais (ou de segunda dimensão), o que se registra nas ações de medicamentos e de vaga em creche ou escola movidas contra o

287 KOTHARI, Millon. Relatório sobre a moradia adequada como componente do direito a um adequado padrão de vida.

Estado – nas esferas municipal, estadual e federal. Nessa linha, com o surgimento dos direitos fundamentais de solidariedade (ou de terceira dimensão), como é o caso da proteção do ambiente, automaticamente a tarefa constitucional de zelar por eles é atribuída à Defensoria Pública, em razão de que à população pobre também deve ser garantido o desfrute de suas vidas em um ambiente saudável e equilibrado, e, portanto, digno. As dimensões de direitos fundamentais, na sua essência, materializam os diferentes conteúdos integrantes do princípio da dignidade da pessoa

humana, o qual se apresenta como o pilar da arquitetura constitucional e

objetivo maior a ser perseguido na atuação da Defensoria Pública. E, para não deixar pairar mais qualquer dúvida sobre a abrangência da legitimidade da atuação da Defensoria Pública para a defesa dos direitos fundamentais de todas as dimensões, a Lei Complementar 132/09 - que, por sua vez, trouxe novo espírito normativo para a Lei Complementar 80/94 - fez consignar no seu art. 4º, inciso X, entre as suas funções institucionais, ―promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela‖. Onde houver violação a direitos fundamentais e à dignidade de pessoas necessitadas – e tal hipótese ocorre envolvendo direitos e interesses difusos - a Defensoria Pública estará legitimada constitucionalmente para fazer cessar tal situação degradadora dos valores republicanos.288

Por essas mesmas razões, Ana Paula de BARCELLOS enquadra o direito subjetivo de acesso à Justiça como instrumento indispensável à tutela dos direitos fundamentais e também como um dos direitos que a autora inclui no contexto de mínimo existencial, a fim de preservar a eficácia dos outros. Para ela, ―dizer que o acesso à Justiça é um dos componentes do núcleo da dignidade da pessoa humana significa dizer que todas as pessoas devem ter acesso a tal autoridade: O Judiciário‖.289

De fato, o acesso à Justiça é um elemento instrumental indispensável à justiciabilidade do direito fundamental social à moradia e à garantia de outros direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. Não é por outro motivo que os Comentários 4 e 7, do Comitê DESC das Nações Unidas, que tratam respectivamente do direito à habitação adequada e da proibição de despejo forçados, recomendam a disponibilização de remédios jurídicos consistentes em favor dos grupos vulneráveis para proteção do direito à moradia (seções 17 e 15).

A segunda parte da Carta Mundial trata da melhoria do acesso à justiça nas cidades, através de mecanismos alternativos de resolução de conflitos, como o reforço de políticas

288 FENSTERSEIFER, Tiago; PEREIRA, Felipe Pires. A legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ação civil

pública em defesa de direitos difusos: algumas reflexões ante o advento da Lei Complementar nº 132/09. Revista de Direitos Difusos. FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de; MACHADO, Paulo Affonso Leme (Coordenadores). Volume 50, junho 2010, p. 11/12.

especiais em favor dos grupos empobrecidos e o fortalecimento do sistema de defesa pública gratuita (artigo X).

O Estatuto da Cidade, por sua vez, arrola a assistência jurídica integral e gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos como instituto jurídico para consecução dos fins perseguidos pela política urbana nacional (artigo 4º, V, r, Lei nº 10.257/2001).

A atuação da Defensoria Pública e dos demais entes de advocacia de interesse público em favor dos grupos social e economicamente vulneráveis é de extrema relevância na propositura e defesa de ações individuais e coletivas, versando sobre o direito fundamental social à moradia.

No tocante à propositura de ações coletivas, registra-se a sua já referida inclusão no rol dos entes legitimados para a propositura da ação civil pública (art. 5º, II, da Lei 7.347/85, com redação dada pela Lei 11.448/07). Tal mudança legislativa transpõe para o plano infraconstitucional o novo perfil dado à Defensoria Pública a partir da Reforma do Poder Judiciário, levada a cabo através da Emenda Constitucional n. 45/2004, a qual fortaleceu a sua dimensão jurídico-constitucional no Estado de Direito brasileiro, conferindo à instituição autonomia institucional (funcional, administrativa e financeira).290

Desde a criação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em 2006, o Núcleo de Habitação e Urbanismo (artigo 52, LCE nº 988/06) possui destacada atuação na defesa coletiva na defesa do direito fundamental social à moradia e da ordem urbanística, propondo diversas ações civis públicas para tutela dos direitos das comunidades carentes de São Paulo291. Nessas ações, a legitimidade da Defensoria Pública para tutela de direitos difusos e coletivos vem sendo expressamente reconhecida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e pelo Superior Tribunal de Justiça, em ação proposta pela Defensoria gaúcha, conforme arestos abaixo transcritos:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Legitimidade. Defensoria Pública.

Admissibilidade. Ação proposta visando à defesa de direitos de hipossuficientes. Lei Complementar 988/06. Reconhecimento, no caso concreto, da legitimidade da Defensoria. Prosseguimento da ação. Recurso provido para este fim. (TJSP – Apelação nº 908.350.5/5-00 – Segunda Câmara de Direito Público – Rel. Des. Vera Angrisani – DJ 14/07/2009)

290 FENSTERSEIFER, Tiago; PEREIRA, Felipe Pires. Op. Cit., p. 12.

291 No mesmo sentido, confira-se: TJSP – AI nº 711.429-5/5-00 – Décima Câmara de Direito Público – Rel. Des. Reinaldo

Miluzzi – DJ 10/12/2007; TJSP – AI nº 843.490-5/0-00 – Nona Câmara de Direito Público – Rel. Des. Ferraz de Arruda – DJ 19/08/2009; TJSP – Apelação nº 994.09.248315-0 – Décima Segunda Câmara de Direito Público – Rel. DEs. Franco Cocuzza – DJ 08/11/2010; TJSP – Apelação nº 795.641-5/7-00 – Décima Segunda Vara da Fazenda Pública – Rel. Des. Nelson Calandra - DJ 24/11/2009; TJSP – Apelação nº 994.09.258292-4 – Décima Terceira Câmara de Direito Público – Rel. Des. Luciana Breseiani – DJ 10/03/2010.

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO COLETIVA. DEFENSORIA PÚBLICA. LEGITIMIDADE ATIVA. ART. 5°, II, DA LEI N° 7.347/1985 (REDAÇÃO DA LEI N° 11.448/2007). PRECEDENTE.

1. Recursos especiais contra acórdão que entendeu pela legitimidade ativa da Defensoria Pública para propor ação civil coletiva de interesse coletivo dos consumidores.

2. Este Superior Tribunal de Justiça vem-se posicionando no sentido de que, nos termos do art. 5o, II, da Lei n° 7.347/85 (com a redação dada pela Lei n° 11.448/07), a Defensoria Pública tem legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar em ações civis coletivas que buscam auferir responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras providências.

3. Recursos especiais não-providos.

(STJ - REsp 912.849 - RS – Primeira Turma - Rel. Ministro José Delgado – DJ 26/02/2008 - DJE 28/04/2008)

Decerto, a atuação da Defensoria Pública, em parceria com os movimentos sociais de reivindicação do direito fundamental social à moradia, representa a superação de um primeiro óbice instrumental de justiciabilidade nos conflitos urbanos. Sobre o tema, vale trazer as palavras de SAULE JUNIOR:

A garantia do acesso à Justiça aos grupos sociais vulneráveis, por meio da prestação do serviço de assistência jurídica integral e gratuita, pelo Estado, às pessoas necessitadas que demonstrem insuficiência de recursos, tem com indicador a prestação, ou não, deste serviço ou a qualidade e tipo de serviço que é prestado para tal população (inciso LXXIV do artigo 5º). A existência, ou não, de uma Defensoria Pública eficiente é um indicador fundamental para verificar se as pessoas dos grupos vulneráveis têm, ou não, os serviços de assistência jurídica gratuita para defender ou buscar a satisfação do direito à moradia.292

De acordo com essa perspectiva de proteção do direito social fundamental à moradia, a atuação da Defensoria Pública possui especial relevância também nos conflitos individuais envolvendo a posse e a propriedade de terras urbanas.

Além da justiciabilidade através da via judicial, os meios alternativos de resolução de conflitos, tais como o processo de difusão da cidadania e direitos humanos e as técnicas de conciliação e medição contribuem para a pacificação dos conflitos urbanos e também caracteriza, nessa medida, a atuação da Defensoria Pública na proteção e promoção do direito fundamental social à moradia, o que será abordado doravante.