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Capítulo III – Justiciabilidade do direito fundamental social à moradia

3.2. A justiciabilidade do direito à moradia na perspectiva defensiva e

3.3.4. Defesa em ações possessórias

Em complemento ao que foi dito na análise da posse como garantia de efetividade do direito à moradia, podemos dizer mais de perto que a função social da posse consiste na utilização do bem para moradia e alimentação pela exploração de pequena atividade econômica, que são necessidades básicas de todo cidadão, rol propositalmente mais enxuto daquele que será atribuído a função social da propriedade.

A posse funcionalizada autônoma tem na moradia e na alimentação os conteúdos e objetivos que merecem proteção e incentivo num Estado Democrático e Social de Direito.

Com isso, nasce a possibilidade de se tentar, ao menos, estabelecer critérios diferenciadores entre a função social da posse e a função social da propriedade, a fim de resguardar a autonomia e justiciabilidade do direito de possuir para fins de moradia, atividade

322 A Prefeitura de São Paulo firmou acordo nesta segunda (08/09) com a Defensoria Pública do Estado para urbanização da

Favela do Jardim Edith situada próxima à Ponte Estaiada. Pelo acordo assinado na Justiça, serão construídas unidades habitacionais, espaço de lazer e uma creche. A manutenção das famílias no local, que é zona especial de interesse social (ZEIS), foi determinada pela Justiça em abril de 2008 após a Defensoria ter entrado com ação civil pública. Pelo projeto de urbanização, serão construídos 3 prédios de 8 andares, totalizando 247 unidades habitacionais, espaço de lazer e uma creche. As unidades serão adquiridas pelos moradores da comunidade mediante financiamento público para pessoas de baixa renda. De acordo com o defensor público Carlos Henrique Loureiro, coordenador do Núcleo de Habitação e Urbanismo, que acompanha o caso,―as unidades serão suficientes para atender todas as famílias que optaram por receber atendimento habitacional definitivo no local.‖ Ainda segundo o defensor a manutenção da comunidade na área é de grande importância para efetivação do direito à cidade, ―pois a expulsão constante da população para regiões mais periféricas, além de excluir quem mais precisa da infra-estrutura urbana, é uma das causas para o trânsito caótico da cidade e para ocupação das áreas de preservação ambiental.‖ O acordo foi assinado durante audiência de conciliação na 13.ª Vara da Fazenda Pública da Capital. A audiência referia-se a ação civil pública de regularização urbanística da favela do Jardim Edith, na qual foi determinada em abril de 2008, por liminar, a manutenção da comunidade no local.

Http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Noticias/NoticiaMostra.aspx?idItem=2492&idPagina=3086 – Acesso 09/09/2008.

que exige menor esforço dogmático e potencializa a tutela possessória em contraponto à propriedade, tendo em vista que esta última também figura no rol de direitos fundamentais elencados pela Constituição Federal (artigo 5º, XXII, CF), o que, todavia, também merece a devida releitura, conforme veremos oportunamente. A propósito, confira-se a obra de FACHIN:

A função social da posse situa-se em plano distinto, pois, preliminarmente, a função social é mais evidente na posse e muito menos na propriedade, que mesmo sem uso, pode se manter como tal. A função social da propriedade corresponde a limitações fixadas no interesse público e tem por finalidade instituir um conceito dinâmico de propriedade em substituição ao conceito estático, representando uma projeção da reação anti-individualista. O fundamento da função social da propriedade é eliminar da propriedade privada o que há de eliminável. O fundamento da função social da posse revela o imprescindível, uma expressão natural da necessidade.323

Far-se-á tal tentativa de distinção, mirando a função social da posse como norte principal, de acordo com a classificação plural e tridimensional da posse proposta por FARIAS e ROSENVALD, a seguir descrita: a) posse real; b) posse obrigacional; e c) posse fática.324

Conforme os referidos autores, posse real é aquela exercida pelo proprietário sobre o seu próprio bem e que está estampada na clássica previsão do artigo 1.196, do Código Civil, tendo como principais manifestações o direito de fruição, um dos atributos do direito de propriedade. Essa posse pode, ou não, gerar um direito real sobre o bem, como no caso do usufruto, da servidão e de outros direitos de fruição, exercidos pelo proprietário ou por terceiro.325

Não há dúvida de que o exercício do direito de fruição do bem pelo proprietário ou por terceiro, mediante a constituição de um direito real de uso, cumpre a função social da posse, na medida em que lhe confere utilização. Mais que isso, constitui o exercício do direito de possuir, decorrente da propriedade (ius possdendi) e, portanto, admite-se que a destinação do bem não se restrinja apenas à moradia e à alimentação, mas também ao livre exercício de atividade econômica dos bens de produção, em observância ao disposto no artigo 170, inciso III, da Constituição Federal.

Nesse particular, a utilização do bem para as finalidades acima descritas decorre da função social da propriedade em absorção a função social da posse, já que a posse é um de

323 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. Cit., p. 19/20. 324 Idem, p. 37.

seus componentes. Aqui, portanto, o proprietário que confere destinação ao bem, de forma direta ou interposta, cumpre um dos componentes da função social da propriedade – utilização – e esgota por completo a função social da posse, porque originada na propriedade.

Interessante questão, entretanto, esconde-se em sentido contrário. Qual a consequência ao proprietário que descumpre o dever de utilização do bem, ou seja, o dever de conferir destinação social ou econômica à posse, gerando violação ao componente possessório da função social da propriedade?

Antes de se responder a essa indagação, é preciso ressaltar que até o momento se está tratando da posse do proprietário (ius possidendi), que é absorvida pelo direito de propriedade. Propor-se-á, portanto, consequências voltadas à propriedade desfuncionalizada pela falta de destinação social e econômica a posse do bem, sem que isso signifique, para os objetivos dessa dissertação, que o descumprimento do dever de utilização pelo proprietário não possa ser sindicado à luz da posse funcionalizada como fenômeno autônomo em confronto com o direito de propriedade, como se verá adiante, quando for tratada a posse fática.

Em síntese, completando a questão acima colocada, pretende-se, agora, investigar qual a consequência jurídica ao patrimônio, à propriedade em si, pelo não cumprimento do componente posse pelo proprietário.

Como se afirmou, a propriedade também constitui direito fundamental individual e goza de proteção constitucional suprema (artigo 5º, XXII, CF), mas apenas quando cumpre a sua função social (artigo 5º, XXIII, CF), que é parte integrante da própria propriedade. Ciente disso, entende-se que a perda do direito de propriedade deve estar prevista pelo ordenamento jurídico, certos de que tal garantia em nada prejudica o acesso ao direito fundamental à moradia, tendo em mente que a moradia é elemento constitutivo da função social da posse (autônoma, como se defendeu até aqui) e apenas um dos elementos do direito de propriedade.

Nessa linha de raciocínio, parece que o constituinte originário e o legislador infraconstitucional anteviram as consequências ao descumprimento da função social da propriedade pela violação da posse, ao sancionar o proprietário com a perda da propriedade pela usucapião, quer nas formas extraordinárias ou ordinárias (artigo 1238, 1242, e respectivos parágrafos) ou, principalmente, nas formas especiais da usucapião urbana (artigo 183, CF, artigo 1.240, CC e artigo 9º, EC), da usucapião rural (artigo 191, CF e artigo 1.239,

CC), e da usucapião coletiva (artigo 10, EC), bem como na desapropriação judicial (artigo 1.228, §4º e §5º, CC).

Note-se que todas elas acarretam a perda da propriedade pelo descumprimento do ius

possidenti, ao mesmo tempo em que as formas de usucapião especial e a desapropriação

judicial privilegiam, com redução de prazos, a função social da posse consistente na posse- moradia e na posse-trabalho.

Pelo exposto até aqui, percebe-se que o sistema é coerente a respeito da posse decorrente da propriedade – e para perda da propriedade - na estrita definição da teoria objetiva, e que a Constituição Federal avançou ao incluir a função social na essência do direito de propriedade, sancionando seu titular com a perda do bem, quando não atende ao componente possessório integrante de sua função social, em favor do possuidor que exerce a posse funcionalizada pela moradia ou pelo trabalho rural sobre o bem por determinado lapso de tempo.326

Em resumo, entende-se que essas são as maiores formas de sanção ao proprietário que não exerce a posse real (vinculada à propriedade), gerando a perda da propriedade pelo descumprimento de uma de suas funções sociais: a posse decorrente da propriedade. Isso não significa que a posse real não possa ceder em face da posse fática (autônoma e expressão da necessidade), quando o conflito versar exclusivamente sobre o direito de possuir (e não de adquirir) tendo por parâmetro o cumprimento da função social da posse.

Em prosseguimento, destaca-se que a posse obrigacional é aquela exercida por força de relação em que a coisa figura como objeto, como ocorre na locação, no comodato e na promessa de compra e venda, em que o proprietário concede parcela dos poderes inerentes à propriedade ao possuidor.327Salvo melhor juízo, não só o proprietário pode figurar como locador, comodante e compromissário vendedor, como também os próprios possuidores, com ou sem justo título de propriedade, como no caso da sublocação por exemplo, sendo-lhes deferidos direitos possessórios para tutela da posse em face dos possuidores diretos ou de terceiros e vice-versa (artigo 1.197, CC).

326 Nesse sentido, ―fica clara a abrangência da função social da propriedade, cuja importância é tamanha nos tempos

constitucionais, tendo, inclusive, o condão de fazer com que a posse (que cumpra a função social), eventualmente, supere a propriedade (que não cumpra a função social). Ou seja, a função social é o novo conteúdo do direito real! Sem ela, a propriedade deixa de sê-lo, perde tal caráter, restando superada pela eventual função social da posse.‖ (CARVALHO, Eusébio. Leituras Complementares de Direito Civil. O direito Civil-Constitucional em Concreto. Organizador: Cristiano Chaves de FARIAS. – Salvador: Juspodivm, 2007, p. 283)

A negativa de restituir a coisa finda a relação obrigacional que originou a bifurcação da posse (posse direita/indireta) caracteriza, em tese, o vício da precariedade por abuso de confiança,328 que, por ser permanente e contínuo, não cessa, impedindo a aquisição da posse plena pelo possuidor direto (artigos 1.200, 1.203 e 1.208, CC).

Quanto à posse obrigacional, também não há dúvidas de que cumpre a função social decorrente da propriedade ou da própria posse, eis que a destinação à utilização social ou econômica é a própria motivação da relação obrigacional. Na locação urbana, por exemplo, o proprietário/locador confere utilização social e econômica ao bem, contribuindo, ainda, para redução do potencial especulativo do mercado imobiliário ao colocar o imóvel à locação, em vez de deixá-lo fechado, aumentando a oferta e, consequentemente, diminuindo o valor médio dos alugueres no mercado, o que facilita o acesso à moradia.

Contudo, atualmente, impõe-se uma releitura constitucional do vício da precariedade, nos casos em que o abuso de confiança for explicitado pelo possuidor direto do bem no sentido de não mais restituir a coisa ao possuidor indireto, que, por sua vez, não reivindicar a restituição em tempo hábil, a contar da ciência da pretensão daquele em não lhe restituir a coisa, permitindo o início do computo do prazo aquisitivo da propriedade pela usucapião, ante o exercício da posse com intenção de proprietário.329

Nesse sentido, ao interpretar o artigo 1.203, do Código Civil, a III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal editou o Enunciado CJF nº 237, concluindo que ―É cabível a modificação do título da posse – interversio possessionis – na hipótese em que o até então possuidor direto demonstrar ato exterior e inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini.‖330

Sobre o assunto, traz-se os ensinamentos de Francisco Eduardo LOUREIRO sobre o tema:

Diz-se que a posse precária nunca gera usucapião. Na verdade, ela é imprestável para o usucapião não porque é injusta, mas porque o precarista não tem animus domini, uma vez que reconhece a supremacia e o melhor direito de terceiro sobre a coisa. Caso, porém, não reconheça ou deixe de reconhecer essa posição e revele isso de modo inequívoco e claro ao titular

328 GOMES, Orlando. Direitos reais. – 20ª Edição. Atualizada por Luiz Edson FACHIN. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 49. 329 A função social da posse passa a ser exercida pelo precarista, ao conceder destinação econômica ao bem em nome próprio.

Assim reafirmando passagem anterior, prevalecerá o direito fundamental social de moradia sobre a situação patrimonial do proprietário que, mesmo destituído da posse, manteve-se inerte na defesa do bem, sem adotar atitude para reavê-lo, conformando-se com a alteração da situação possessória. (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, p. 28)

330 Da mesma forma, a IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal editou o Enunciado CJF nº 301,

estabelecendo que ―É possível a conversão da detenção em posse, desde que rompida a subordinação, na hipótese de exercício em nome próprio dos atos possessórios‖.

do domínio, para que este possa reagir e retomar a coisa, nasce, nesse momento, o prazo para usucapião, pois o requisito do animus domini estará então presente.331

O fenômeno da interversão possessória em homenagem à função social da posse já encontra eco na jurisprudência nos casos envolvendo locação e comodato, sendo reconhecido como defesa em ações possessórias332 ou mesmo em ações de usucapião333, em que deve se resguardar a ampla produção probatória que vise à comprovação da inversão da posse.334

Por fim, resta estabelecer os contornos da posse fática, de nuclear importância aos objetivos deste estudo. Na lição de FARIAS e ROSENVALD, ―trata-se de uma posse emanada exclusivamente de uma situação fática e existencial, de apossamento e ocupação da coisa, cuja natureza econômica escapa do exame das teorias tradicionais‖.335

Essa posse é reflexo integral da função social da posse no que tange as características de autonomia em relação ao direito de propriedade e de atendimento às necessidades básicas de todos os seres humanos em relação à moradia. Aqui, a própria função da posse tem objetivo autônomo e bem mais amplo do que nas duas espécies de posse anteriormente estudadas. Nos ensinamentos de Jacques Távora ALFONSIN, o conteúdo dos direitos

331 PELUSO, Cezar (Coordenador.). Código Civil Comentado. Barueri, Manole, 2007, p. 994.

332 Segundo ensinamento da nossa melhor doutrina, nada impede que o caráter originário da posse se modifique, motivo pelo

qual o fato de ter havido no início da posse da autora um vínculo locatício não é embaraço ao reconhecimento de que, a partir de determinado momento, essa mesma mudou de natureza e assumiu a feição de posse em nome próprio, sem subordinação ao antigo dono e, por isso mesmo, com força ad usucapionem. (RSTJ 143/370, rel. Min, Asfor Rocha).

CONTRATO DE LOCAÇÃO. Conceituando-se a posse como exercício de fato dos poderes inerentes ao domínio, o contrato de locação, por si só, não é meio apto a adquiri-la, sendo necessário que o locatário assuma efetivamente o imóvel e aja como locatário. (STJ – REsp nº 28569 - MG – Quarta Turma - rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – v.u. - DJ 10/10/95 - DJU 06/11/1995).

AÇÃO POSSESSÓRIA. COMODATO. POSSE. FUNÇÃO SOCIAL. O comodato é contrato gratuito e não se coaduna com construções essenciais do alegado comodatário. A tutela possessória supõe demonstração do exercício anterior e efetivo da posse por quem a reclama e a prática do ato esbulhativo por parte daquela contra qual é decidida. Peculiaridade do caso em que, sobre o imóvel objeto da lide recai o interesse público da moradia para pobres e não o de exploração econômica. Prevalência da função social da posse. (TARS – Apelação Cível nº 195179882 – Quinta Câmara Cível - Rel. Rui Portanova – Julgado em 28/03/96).

333 DIREITO CIVIL. USUCAPIÃO ESPECIAL URBANO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. Autoras que residem no

imóvel desde 1981, deixando de pagar alugueres a partir de 1986, diante do desaparecimento da proprietária. Sentença que entendeu não ter sido comprovado o animus domini, além da precariedade da posse, que não teria o condão de gerar a posse

ad usucapionem. Desacerto. Interversão. Mudança de percepção quanto à natureza da posse externamente constatada pela

própria omissão da proprietária, que se quedou inerte por mais de vinte anos. Função social da posse e da propriedade. Possuidor que mantém poder de fato sobre a coisa, sem oposição e com autonomia por longos anos. Prova cabal de que a relação jurídica inicial está extinta. Oitiva de testemunhas que leva à constatação de que as autoras explicavam aos depoentes a realidade sobre a situação do imóvel. Fato que somente depõe a favor das mesmas, eis que ao leigo não é dado referir-se ao bem como seu apenas para tentar divulgar a posse ad usucapionem, que muito mais se verificará por intermédio de atitudes do que por palavras. Animus domini, que pode ser constatado pelo próprio ajuizamento da demanda, nos idos de 1997, tendo transcorrido até a presente data prazo suficiente para o reconhecimento da prescrição aquisitiva. Recurso provido. (TJRJ - Apelação n° 2009.001.14165 – Segunda Câmara Cível - Rel. Des. Alexandre Freitas Câmara – DJ 24/03/2010)

334 USUCAPIÃO. PROCESSUAL. PROVA. Cabimento da ocorrência eventual de interversão da posse; necessidade, por

isso, de ampla dilação probatória, a fim de que se afira a recente e atual qualidade da posse da parte autora. Impossibilidade de se presumir a priori que a posse, fato, não seja qualificada. Parecer do MP. Apelo PROVIDO, desconstituída a sentença, retornando os autos à origem para que se cite a parte adversa e se instrua, devidamente, o feito.

(TJRS - Apelação Cível nº 70025405614 - Rel. Des. José Francisco Pellegrini - Comarca de Guaíba – DJ 18/08/2009)

humanos e fundamentais é a satisfação das necessidades básicas do ser humano, como pão e casa, para cuja efetivação a posse exerce papel indispensável de satisfação, inclusive frente ao direito de propriedade.336

Sobre o tema, segue a opinião de FARIAS e ROSENVALD:

Quando houver divergência entre os anseios do proprietário que deseja a posse, mas nunca lhe deu função social, e, de outro lado o possuidor, que mantém ingerência econômica sobre o bem, concedendo a função social à posse, será necessário priorizar a interpretação que mais sentido possa conferir à dignidade da pessoa humana. Optar cegamente pela defesa da situação proprietária, em detrimento da situação do possuidor implica a validação do abuso de direito de propriedade como negação de sua própria função social, importando mesmo em retificação de ato ilícito, na dicção do artigo 187 do Código Civil. Eventualmente, o direito de propriedade será paralisado pelo direito à posse. Duas ordens se colocam em tensão: a da garantia e conservação de bens (estatuto patrimonial) e a de acesso aos mesmos bens (estatuto existencial). Daí a necessidade de alcançarmos a posse como um fato social indissociável de uma função social própria e autônoma ao direito de propriedade. A posse caracteriza-se por uma apropriação econômica e social consciente sobre um bem, voltada a uma finalidade individual que representa, em última instância, a própria finalidade coletiva, ao propiciar direito fundamental social de moradia (art. 6º da CF). (...) Há de se rememorar-se que, na colisão de direitos fundamentais sociais e individuais, a preferência recairá sobre a tutela da situação fática do possuidor quando o abandono da propriedade pelo seu titular desencadear o surgimento do direito à moradia. Enquanto o direito à moradia filia-se entre os direitos sociais, a garantia da propriedade é um direito individual que deverá ceder quando o seu titular quedar-se inerte em conceder-lhe função social, a ponto de suprimir a sua legitimidade e permitir que outra entidade familiar supra a função social, mediante a moradia. 337

Diversamente da posse real, em que a função social é uma escada conferida ao possuidor para que alcance o direito de propriedade face ao descumprimento do dever possessório do proprietário, e da posse obrigacional, em que a função social contribui para inversão da posse decorrente de uma relação jurídica obrigacional para o exercício da posse em nome próprio, aqui a função social é o próprio exercício da posse autônoma em virtude das necessidades básicas do ser humano. Novamente na lição de FARIAS e ROSENVALD:

A posse é uma extensão dos bens da personalidade. A moradia é um dos bens que integram a situação existencial de qualquer pessoa. O papel da função social da posse em relação à moradia é o de conceder um espaço de vida e de liberdade a todo o ser humano independentemente da questão da propriedade, pois esta se prende à patrimonialidade e à titularidade. A seu turno, a posse não é mensurável por critérios econômicos, pois tutela o

336 A força normativa das necessidades frente ao direito de propriedade. Apontamento em torno dos efeitos jurídicos gerados

por ocupações massivas de terra urbana e rural. Questões agrárias: julgados comentados e pareceres. STROZAKE, Juvelino