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Jurisdição universal como pressuposto da justiça de transição: os desafios da responsabilização penal

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

CURSO DE DIREITO

ANDRESSA DE BRITO BONIFÁCIO

JURISDIÇÃO UNIVERSAL COMO PRESSUPOSTO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: OS DESAFIOS DA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL

NATAL/RN 2019

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ANDRESSA DE BRITO BONIFÁCIO

JURISDIÇÃO UNIVERSAL COMO PRESSUPOSTO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: OS DESAFIOS DA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL

Trabalho de conclusão de curso apresentada ao curso de graduação em Direito, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Marco Bruno Miranda Clementino.

NATAL/RN 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA

Bonifácio, Andressa de Brito.

Jurisdição universal como pressuposto da justiça de transição: os desafios da responsabilização penal / Andressa de Brito Bonifácio. - 2019.

84f.: il.

Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Departamento de Direito. Natal, RN, 2019.

Orientador: Prof. Dr. Marco Bruno Miranda Clementino.

1. Jurisdição Universal - Monografia. 2. Justiça de Transição - Monografia. 3. Direito Internacional Penal - Monografia. 4. Core Crimes - Monografia. I. Clementino, Marco Bruno Miranda. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/Biblioteca do CCSA CDU 341.4

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Dedico esta pesquisa às vítimas das violências ocorridas em governos autoritários e totalitários e às suas famílias. Que as suas vozes sejam ouvidas e a justiça, ainda que tardia, possa lhes ser entregue.

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AGRADECIMENTOS

Inicialmente agradeço à minha família pelo apoio incondicional ao longo da graduação, por toda a compreensão nos meus momentos de ausência e por todo o estímulo para que eu continuasse a encarrar novos desafios.

Às minhas amigas que desde o ensino fundamental caminham ao meu lado, por sempre acreditarem em mim e estarem ao meu lado.

Às amizades que construí ao longo do curso, que em tão pouco tempo se tornaram parte indissociável de minha vida. Agradeço por ter tido a oportunidade de compartilhar com vocês os melhores e o piores momentos dos últimos 5 anos, sem vocês essa trajetória não teria sido tão prazerosa.

Aos professores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que foram fonte de inspiração e admiração ao longo de toda a graduação. Serei eternamente grata pelos ensinamentos compartilhados, que por muito excederam o campo da letra fria da lei e me levaram a refletir constantemente acerca do papel do Direito na sociedade.

Por fim, gostaria de agradecer aos projetos os quais participei e que sem sombra de dúvidas foram essenciais na minha formação como estudante e como pessoa.

À SOI, que desde o ensino médio marcou a minha trajetória, me fazendo encontrar no direito um refúgio e um espaço para desenvolver reflexões que desde sempre me inquietavam. Participar enquanto delegada me permitiu encontrar uma voz que por muito foi silenciada, mas que desde então tenho lutado para se manter viva.

Reencontrar-me com a SOI durante a graduação foi mais do que uma grande oportunidade: foi a realização de um sonho. Ter trabalhado por 3 anos nesse projeto ampliou minha visão de mundo, permitiu ressignificar e me apaixonar cada vez mais pelo direito internacional, mas, principalmente, possibilitou que eu conhecesse pessoas nas quais me inspiro profundamente.

Ao Secretariado 2017, a OMS 2018 e ao Secretariado 2019, que fique registrado todo o meu amor. Em especial, peço licença para agradecer ao Secretariado 2019 por todo o suporte, se o meu último ano de graduação foi tão especial e leve, sem sombra de dúvidas foi graças a vocês. Não só estiveram ao meu lado nos momentos mais felizes desse ano, mas principalmente foram o meu porto seguro nos momentos de maior dificuldade e não mediram esforços para me apoiar. Construir a SOI ao lado de pessoas tão fantásticas foi uma grande honra.

À UNEMUN, que começou sua trajetória junta a minha na SOI e que de pronto arrebatou o meu coração. Os momentos que vivi ao longo dos 3 anos que estive nesse projeto

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para sempre vão estar em minha memória. A oportunidade de conferir ao direito internacional a sua necessária função social, levando debates acerca de direitos humanos para as escolas da rede pública de ensino, foi uma das experiências mais transformadoras que tive na vida. No fim, me resta esperar que eu tenha conseguido entregar ainda que apenas uma fração de tudo o que a UNEMUN me proporcionou.

À CONSEJ, paixão que encontrei ainda na Semana de Integração do curso, me faltam palavras para descrever a importância dessa Empresa Júnior em minha vida. A oportunidade de desenvolver os meus conhecimentos por meio da prática da advocacia preventiva, de pesquisar, palestrar e auxiliar na gestão de uma empresa, tudo isso ainda na graduação foi algo que eu nunca imaginei ser capaz de fazer.

Assim como todas as importantes experiências da vida, não foi só o resultado profissional que fez da minha passagem pela CONSEJ importante, a família que encontrei nos seus membros e que me acolheu por mais de 2 anos foi indispensável na minha caminhada.

À Diretoria da CONSEJ de 2017, em especial, que me recebeu enquanto ainda estava no 2º período, mas que nem por isso duvidou ou deixou de acreditar no meu potencial, fica o registro do meu amor. Graças a vocês eu ousei me desafiar e tive forças para não só superar os desafios que nos foram propostos ao longo da gestão, como também de alçar voos mais altos. A paixão e dedicação de vocês foi algo que marcou profundamente e que para sempre carregarei comigo. Obrigada por terem sido as minhas primeiras fontes de inspiração no curso.

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RESUMO

O processo de internacionalização dos direitos humanos levou a consequente sedimentação das condutas atentatórias a humanidade como crimes internacionais como normas de jus cogens. A tipificação desses core crimes no ordenamento jurídico internacional implica em uma obrigação

erga omnes de os Estados combaterem tais condutas e responsabilizarem os seus perpetuadores.

Todavia, no contexto da justiça de transição, com vistas a assegurar a transição pacífica de um regime totalitário ou autoritário para um rule of law, é comum que sejam editadas leis de anistia e estabelecidas normas de prescrição penal como forma de estimular a cooperação dos agentes do regime anterior. Assim, o direito das vítimas e seus familiares é colocado em xeque, no âmbito da jurisdição doméstica, uma vez que não possuem meios de acionar o Judiciário e ter acesso a justiça. Nesse sentido desponta a relevância da jurisdição universal como uma possível alternativa para a proteção dos direitos das vítimas e para assegurar a ordem internacional, ao cumprir com o dever comum de responsabilizar os perpetuadores de core crimes. O presente estudo busca, então, compreender como o princípio da universalidade da jurisdição pode ser utilizado para assegurar a justiça de transição e proteger os direitos das vítimas. Para tanato, a pesquisa possui caráter descritivo e é adotado o método lógico-dedutivo. Conclui-se que há um dever de exercício da jurisdição universal por parte dos Estados quando cometidos core crimes, de modo que o estabelecimento de limites ao exercício da jurisdição em âmbito doméstico não possui o condão de limitar a jurisdição universal.

Palavras-chave: Jurisdição Universal. Justiça de Transição. Core crimes. Direito Internacional Penal.

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ABSTRACT

The internationalization of human rights led to a consequently process of implementing conducts that threat the humankind as international crimes through jus cogens norms. The criminal definition of these core crimes on the international legal order leads to a erga omnes obligation of the States to fight these conducts and hold accountable the guilty. However, on the context of transitional justice, with sights to guarantee a pacific transition from a totalitarian/authoritarian regime to the rule of law, it’s common to give amnesties and establish statute of limitations to encourage the cooperation of agents from the ancient regime. Therefore, the rights of victims and their families is put on second plan on the domestic jurisdiction, once there is no way for them to file a lawsuit and have access to justice. In this regard the relevance of universal jurisdiction emerges as a possible alternative for the protection of victims’ rights and for securing the international order by fulfilling the common duty to hold perpetrators of core crimes accountable. The present study then seeks to understand how the principle of universality of jurisdiction can be used to ensure transitional justice and to protect the rights of victims. Thus, this a descriptive research and it’s adopted the deductive method. The conclusion is that there is a duty to exercise universal jurisdiction on core crime cases, so even when the home State sets limits on the exercise of its domestic jurisdiction that does not have the power to limit universal jurisdiction.

Keywords: Universal Jurisdiction. Transitional Justice. Core crimes. International Criminal Law.

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LISTA DE ABREVIATURAS

ATCA Alien Tort Claims Act

CVR Comissão da Verdade e Reconciliação Corte IDH Corte Interamericana de Direitos Humanos

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LISTA DE SIGLAS

CDI Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas CIJ Corte Internacional de Justiça

ECOSOC Conselho Econômico e Social das Nações Unidas ICTJ International Center for Transitional Justice MPF Ministério Público Federal

ONU Organização das Nações Unidas STJ Superior Tribunal de Justiça

TIMN Tribunal Militar Internacional de Nuremberg

TMIEO Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente TPI Tribunal Penal Internacional

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 11

2 DO DIREITO INTERNACIONAL CLÁSSICO AO CONTEMPORÂNEO: A CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO VOLTADO A PROTEÇÃO DO INDIVÍDUO ... 14

2.1 A lógica Vestfaliana no direito internacional ... 15

2.2 A idade contemporânea: o impacto das guerras mundias na construção do dever global de proteção dos direitos humanos e da humanidade ... 17

2.3 O princípio da jurisdição universal ... 21

2.3.1 Das características e classificações... 25

2.3.2 Da relação com o aut dedere aut judicare ... 27

3 JURISDIÇÃO UNIVERSAL E O DIREITO INTERNACIONAL PENAL ... 30

3.1 A jurisdição no Direito Internacional Penal ... 31

3.1.1 Das classificações da jurisdição ... 31

3.1.2 Dos princípios norteadores da jurisdição internacional ... 33

3.1.2.1 Aparentes conflitos entre a jurisdição universal e outros princípios ... 35

3.1.3 Da aplicação do Direito Internacional Penal e da jurisdição universal pelos Estados .... 37

3.2 Os crimes do Direito Internacional Penal ... 39

3.2.1 Crimes submetidos ao exercício da jurisdição universal ... 40

3.3 A responsabilidade e a culpabilidade no Direito Internacional Penal ... 43

4 A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO ... 48

4.1 A primeira fase: Pós-Segunda Guerra Mundial ... 50

4.2 A segunda fase: Pós-Guerra Fria ... 52

4.3 A terceira fase: steady-state ... 54

4.4 Reflexões necessárias sobre a justiça de transição ... 55

5 A RELAÇÃO DA JUSRIDIÇÃO UNIVERSAL E A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO ... 59

5.1 As leis de anistia e a justiça de transição ... 60

5.1.1 A vedação do direito internacional quanto as anistias ... 63

5.2 A prescrição penal na justiça de transição ... 65

5.3 A problemática da anistia e da prescrição penal na justiça de transição e o papel da jurisdição universal ... 68

6 CONCLUSÃO ... 71

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1 INTRODUÇÃO

A história recente da humanidade vem sendo marcada por períodos de instabilidade política, guerras civis e regimes autoritários e totalitários. Nesse contexto diversas são as violações de direitos humanos perpetuadas, as quais muitas vezes se enquadram como core

crimes, ou seja, crimes cristalizados pelo direito consuetudinário internacional e que geram uma

violação não só dos direitos da vítima, mas de toda a ordem internacional.

Com o advento das duas grandes guerras no século passado, se tornou latente a necessidade de se estabelecer um rol de direitos indisponíveis e intransponíveis pelos Estados, protegendo assim a pessoa humana. Ao passo que esses direitos foram reconhecidos pelo direito internacional, como consequência também foram reconhecidas as condutas que os vilipendiavam, consagrando o que acima referimos como core crimes por meio das normas de

jus cogens.

O fim das grandes guerras, e a luz das lições com isso aprendidas, contudo, não foi capaz de fazer cessar os atos de violência e a ascensão de regimes totalitários e autoritários, colocando em risco os direitos dos indivíduos. Na América Latina, por exemplo, até hoje esse processo é evidente, ao passo em que os Estados ainda lutam para o restabelecimento e fortalecimento de regimes democráticos e da paz nacional. Esse processo de transição de regimes autoritários e totalitários para um rule of law é denominado justiça de transição, tendo como principal objetivo a reconciliação nacional.

Todavia, em meio a esse processo de estabelecimento de paz no território, algumas medidas tomadas acabam por colocar em xeque os direitos das vítimas, limitando o seu acesso a justiça criminal, como é o caso da edição de leis de anistia e de leis de prescrição penal para os core crimes.

O direito internacional, nesse sentido, apresenta uma solução pautada na ideia de internacionalização dos direitos humanos e na cooperação internacional: a jurisdição universal. Apesar de relativamente recente, o princípio da universalidade da jurisdição se apresenta como uma forma de assegurar o direito a justiça, fortalecendo assim a justiça transicional, ao mesmo tempo em que reafirma a ordem internacional e o principal valor defendido por esta: a proteção dos direitos humanos e da humanidade.

Compreender a relação entre a justiça de transição e a jurisdição universal ainda é, contudo, um grande desafio, uma vez que ambos institutos passaram a ser objeto de pesquisa e reflexão aprofundadas há pouco tempo. Em que pese assuntos recentes, apresentam relevância ímpar para o direito e relações internacionais, seja pela instabilidade política que muitos países

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estão passando, o que certamente levará a um processo de justiça transicional, ou pelo fato de que os Estados nunca se encontraram em um contexto tão cooperativo, o que reforça os alicerces e a possibilidade de exercício da jurisdição universal.

Assim, é evidente a necessidade e urgência de se estabelecer esse paralelo, de modo que a problemática a ser trabalhada ao longo do presente estudo pode ser sintetizada da seguinte forma: há a possibilidade e um dever de os Estados exercerem a jurisdição universal sob os core

crimes quando, em sede de justiça transicional, o Estado de origem estabelece mecanismos que

impossibilitam o julgamento dos mesmos em corte nacional?

Os objetivos desta análise podem ser sintetizados em: (i) compreender o papel desempenhado pela jurisdição universal na proteção das normas de jus cogens em um contexto de internacionalização dos direitos humanos e proteção do indivíduo; (ii) examinar os diferentes mecanismos adotados no processo de justiça transicional e o papel da persecução penal nesse contexto; e (iii) averiguar o nível de responsabilidade da sociedade internacional para com a efetivação da justiça de transição por meio da jurisdição universal.

Para tanto, a revisão bibliográfica, análise de decisões de cortes internacionais e nacionais, bem como o estudo dos tratados, convenções e resoluções de Organizações Internacionais e Não Governamentais, foram as priç4ncipais ferramentas utilizadas para a realização dessa pesquisa que tem caráter descritivo e em que se adotou o método lógico-dedutivo.

A relevância desta pesquisa reside no fato de que diversos países ainda enfrentam desafios quanto a responsabilização dos perpetuadores de crimes lesa-humanidade durante regime anterior autoritário ou totalitário, bem como, diante do contexto de instabilidade política na América Latina, África e sul da Ásia em que há de se pensar em um processo transicional para que possam reestabelecer governos democráticos.

Nesse sentido, é possível identificar também o importante papel desse estudo para o Brasil, uma vez que em setembro deste ano o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reascendeu o debate acerca dos crimes lesa-humanidade perpetuados durante o regime militar brasileiro. No voto vencedor, se distinguem argumentos em sentido contrário ao caminhar do direito internacional, exigindo, por exemplo, a tipificação no ordenamento doméstico para que seja possível punir crime internacional, atribuindo as normas de jus cogens status infraconstitucional e reconhecendo a prescrição dos crimes do regime militar.1

1BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp nº 1798903. Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Diário

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Ato contínuo, o primeiro capítulo traz uma análise acerca do desenvolvimento do direito internacional, desde o Direito Internacional Clássico pautado no ideal de soberania absoluta, até o recente processo internacionalização dos direitos humanos e humanização deste campo de estudo. Tais fundamentos possibilitam a compreensão do princípio da universalidade da jurisdição, que é explorado logo a seguir, tendo os seus fundamentos apresentados e sendo feita a diferenciação deste princípio de outros institutos de direito internacional.

No capítulo seguinte são introduzidas as noções básicas do direito internacional penal, de modo a tornar possível a compreensão de quais princípios e normativas devem ser observadas no exercício da jurisdição universal pelos Estados.

No terceiro capítulo é introduzido o conceito de justiça de transição. São tratadas, então, as três fases de seu desenvolvimento e os mecanismos adotadas pela mesma para o estabelecimento da reconciliação nacional.

Por fim, no último capítulo é feita uma análise de dois pontos sensíveis no âmbito da justiça transicional, e que impossibilitam, a priori, a persecução penal dos core crimes: as leis de anistia e as normas de prescrição penal. Posteriormente, apresenta-se como a jurisdição universal deve atuar, no âmbito da justiça de transição, para promover tais julgamentos e assegurar os direitos das vítimas e proteger a ordem internacional.

https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo =REsp%201798903. Acesso em: 21 nov. 2019

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2 DO DIREITO INTERNACIONAL CLÁSSICO AO CONTEMPORÂNEO: A

CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO VOLTADO A PROTEÇÃO DO INDIVÍDUO

O direito se desenvolve junto com o caminhar dos fatos sociais, devendo ser compatível com a realidade daquela sociedade e com os seus valores, possibilitando que as normas tenham não só eficácia jurídica, mas também a necessária eficácia social para que possa produzir efeitos na realidade que se insere.

Essa dinâmica de adequação normativa pode ser identificada com um certo grau de facilidade no direito interno, em que há um direito positivo forte e diretrizes normativas claras sobre o processo de elaboração e revogação das leis. Ao adentrar no campo do direito internacional, todavia, percebe-se que esse processo de adequação das normas e princípios à realidade social é mais nebuloso.

Assim, para compreender o caminhar do direito internacional e o processo de cristalização de seus princípios e solidificação de suas normas é preciso conhecer a trajetória percorrida pela história mundial, os jogos de poder, o advento das Guerras Mundiais e as suas consequências no plano normativo, bem como a evolução do próprio Direito Internacional como disciplina autônoma no campo do saber.

O atual panorama deste campo de estudo traz as noções de universalismo e humanidade como importantes alicerces de sua aplicação. Tais conceitos, contudo, não são novos e sua história remonta a meados do século I d.C., período marcado pelas obras de Sêneca, filósofo da terceira fase do estoicismo.

Os estóicos pautavam-se em ideais cosmopolitas de que, apesar das diversas polis, haveria um senso de unidade que conectaria todos os indivíduos, independente de sua origem, raça ou gênero, construindo assim um ideal de fraternidade e solidariedade universais (CANÇADO TRINDADE.; TRINDADE, V., 2016). Essas ideias, contudo, por muitos anos restaram adormecidas, ressurgindo tão somente com o advento do Renascimento e do Iluminismo.

A Idade Média, também chamada de “Idade das Trevas” pelos renascentistas, foi um período marcado pelo declínio dos grandes impérios e pela ascensão do modelo feudalista e do cristianismo. Os grandes impérios e cidades, com complexas organizações políticas e jurídicas, são substituídos pelos feudos e sua consequente descentralização do poder, que trazem relações menos complexas e usam primordialmente dos dogmas religiosos para resolução de conflitos.

Esse período, como se pode perceber, não foi marcado por grandes avanços no campo das ciências jurídicas. Todavia, no campo da filosofia, em que pese absolutamente associada

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aos ideais cristãos, há de se referenciar Santo Tomás de Aquino e Santo Agostinho, que por meio de suas obras construíram um ideal humanista de igualdade e fraternidade.

Com o declínio do sistema feudalista surge a Idade Moderna, marcada por importante movimento que influenciou o direito internacional: o renascimento. Como exposto anteriormente, nesse período os cientistas bebem das produções estoicas e ressurgem com os ideais cosmopolitas, propondo uma visão universalista e colaborativa para nova estrutura social que estava a se definir.

Além disso, é nesse período também que o Direito Internacional Público desponta como uma disciplina autônoma, tendo como seus principais precursores Francisco de Vitória, Francisco Suarez e Hugo Grócio (BITTAR FILHO, 1992). Dada a tamanha relevância dessa época para a construção do Direito Internacional, necessário se faz compreender mais a fundo os impactos da celebração da “Paz de Vestfália” que trouxe diversas contribuições para esse campo da ciência.

2.1 A LÓGICA VESTFALIANA NO DIREITO INTERNACIONAL

A “Paz de Vestfália”, celebrada em 1648, colocou fim a Guerra dos Trinta Anos e estabeleceu os novos limites territoriais de diversas nações europeias. A sua relevância, de início, pode ser identificada pelo simples fato de ser um tratado deliberado e assinado por diversos Estados, englobando todo um continente, feito esse até então não realizado.

Uma das principais contribuições desses tratados foi, sem sombra de dúvidas, a construção do paradigma realista no campo do direito e das relações internacionais por meio da definição de um conceito clássico de soberania.

A ideia de soberania ora estabelecida foi trabalhada por diversos teóricos, dentre eles salutar rememorar os ensinamentos de Jean Bodin. Para o autor, a soberania fundamentava-se em um poder absoluto e perpétuo, sendo dotado de liberdade ilimitada no campo decisório e não reconhecendo poder interno ou externo a ela superior.

Nesse mesmo sentido, Emmerich Vattel estabelece um paralelo entre a soberania estatal e o direito natural ao Estado, fundamentando, assim, o poder discricionário dos Estados na tomada de decisões no plano internacional.

Com fundamento nesses e tantos outros teóricos, a composição do cenário internacional se dava por Estados independentes entre si, que em razão de sua soberania absoluta pautavam tão somente os seus interesses e não se atentavam a questões de inerentes a sociedade internacional como um todo.

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Percebe-se que apesar de existente a possibilidade de firmar tratados (treaty-making

power), o direito internacional só se aplicava quando havia livre vontade do Estado em aderir

a tanto. Desse modo, a subsistência do sistema estaria sempre condicionada ao equilíbrio de poder entre os Estados, sendo esse o mecanismo de controle de suas relações (SILVA; PICININ, 2015). Essa dinâmica enquadra-se no que hoje se entende por teoria voluntarista, em que a única fonte de Direito Internacional seria a manifestação de vontade dos Estados.

A dinâmica estabelecida pela soberania absoluta no panorama global era, portanto, pautada na lógica de poder, principalmente o militar, que ditava a forma como os Estados se relacionariam e não na proteção de direitos ou no cooperativismo. Em razão disso, era possível justificar guerras e práticas que hoje são consideradas abomináveis.

Assim, sob o pretexto do desenvolvimento econômico e expansão territorial, qualquer medida tomada seria válida, ainda que o interesse da população fosse outro. Essa supremacia do poder estatal frente ao interesse dos indivíduos é evidente quando se percebe que na época o único sujeito de Direito Internacional era o Estado, não existindo nenhum mecanismo internacional de proteção a pessoa humana.

Outra contribuição importante trazida pela celebração da “Paz de Vestfália” foi a do princípio da igualdade entre Estados, que está em pleno compasso com o ideal de soberania absoluta e prevê não só o reconhecimento e respeito as decisões tomadas por outros Estados soberanos, como também a não intervenção em seus assuntos internos.

Nesse passo, podemos sinalizar também que os tratados de Vestfália estabeleceram a liberdade religiosa entre as nações, consequentemente reconhecendo a supremacia da soberania temporal sob a religiosa. Isso quer dizer que as decisões estatais passariam a ser tomadas por seus soberanos, levando em consideração os interesses de seus Estados, e não por instituições religiosas ou em razão de seus interesses.

Essas três importantes consequências da “Paz de Vestfália” – soberania absoluta, princípio da igualdade entre Estados e liberdade religiosa entre as nações – se perpetuaram ao longo dos anos e, como exposto, foram usadas como justificativa para guerras e o que hoje entendemos como violação de direitos humanos.

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2.2 A IDADE CONTEMPORÂNEA: O IMPACTO DAS GUERRAS MUNDIAS NA CONSTRUÇÃO DO DEVER GLOBAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DA HUMANIDADE

O ideal de soberania absoluta não só marcou a Idade Moderna, como também foi característica marcante da parte da Idade Contemporânea. Após os acordos da “Paz de Vestfália”, os países europeus iniciaram um grande processo de expansionismo imperialista para os demais continentes, anexando novas terras aos seus territórios e ampliando a sua relevância nos jogos de poder da época.

Nesse processo, surgem diversos teóricos que buscam justificar e elucidar as relações de poder vigentes, dentre eles podemos citar Hegel. Sua obra repercutiu até meados do século XX, dada a sua relevância e adequação com as necessidades políticas vigentes. Defendia que o Estado era um fim em si mesmo, sendo o povo submisso a sua vontade, justificando assim tanto as atrocidades cometidas contra o povo quanto as cometidas pelo povo em nome do Estado. (CANÇADO TRINDADE.; TRINDADE, V., 2016, p. 74 e 75)

Essa teoria influenciou diretamente a doutrina internacionalista da época, que já vinha pautando seus estudos em questões territoriais e militares, sempre em atenção ao princípio da não intervenção nos assuntos internos de outras nações e na ideia de soberania absoluta. Nesse período, as questões de direitos humanos e o enquadramento do indivíduo como pessoa de direito internacional ainda eram concepções consideradas absurdas.

A influência dessas ideias perdurou até o fim da Segunda Guerra Mundial, contudo, nesse espaço de tempo, algumas conquistas foram atingidas, sendo importante rememorá-las. A Primeira Guerra Mundial teve início em 1914 e seu fim 1918, com vitória de Tríplice Entente sob a Tríplice Aliança. Para negociar um acordo de paz após a Guerra, os Estados vencedores se reuniram em Versalhes, França, em 1919.

Nesse encontro foi celebrado o Tratado de Versalhes, documento importante para o que viria a ser o novo Direito Internacional. Com o objetivo máximo de estabelecer as bases para uma política de paz, as nações criaram a Sociedade das Nações ou Liga das Nações, cuja a Carta foi assinada por 44 Estados de diferentes continentes.

A criação dessa organização internacional reviveu o projeto cosmopolita de sociedade, ao objetivar uma sociedade internacional cooperativa e coesa em prol de um objetivo comum:

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a paz. Além disso, conceitos como normas de jus cogens2 e obrigações erga omnes3 passam a ser aplicados no plano internacional, o que representa um importante avanço (CANÇADO TRINDADE.; TRINDADE, V., 2016, p. 79).

Infelizmente, a atuação insípida da Liga da Nações e o desrespeito de seus próprios membros com seus objetivos fez com que a sua relevância no cenário internacional fosse diminuta. Com a deflagração da Segunda Guerra Mundial restou claro o fracasso da organização em assegurar a paz mundial, o que levou a sua dissolução em meados de 1942.

A Segunda Guerra Mundial se iniciou em 1939 e chegou a termo em 1945. Esse conflito armado envolveu nações de todos os continentes que se polarizaram entre os Aliados e o Eixo. As marcas dessa guerra são percebidas até hoje, com cerca de 70 milhões de vidas perdidas, algumas das maiores atrocidades praticadas pelo homem ocorreram nesse período, como o Holocausto e o uso de armas nucleares.

Com o fim do conflito, houve um processo de distanciamento da doutrina hegeliana e neo-hegeliana, bem como uma quebra com o paradigma vestefaliano. Justificar os atos cometidos ao longo da guerra como decorrentes da vontade estatal e dentro do campo de discricionariedade da soberania absoluta da nação não mais era suficiente para a sociedade internacional.

A exposição da realidade e das consequências da Segunda Guerra Mundial levaram os Estados a refletirem sobre os limites de sua atuação e sobre os objetivos em comum das nações, visto que com o avanço tecnológico se tornou clara a iminente destruição mútua entre os países, caso a relação entre os mesmos permanecesse da forma como estava.

Assim, na Conferência de São Francisco, em 1945, os Estados se reuniram e criaram a Organização das Nações Unidas (ONU), com 50 países fundadores. A criação da ONU trouxe um novo paradigma para o Direito Internacional: o da cooperação e da proteção de direitos humanos. Foram criados órgãos para acompanhar e controlar os países, de modo a evitar e sancionar violações de direitos humanos. Além disso, por meio das Comissões e Comitês, os Estados foram convidados a de forma colaborativa estabelecer as prioridades da Agenda Internacional e a encontrar soluções para as problemáticas enfrentadas.

Dessa forma, a soberania do Estados perde o seu caráter absoluto e abre espaço para a subsunção de imperativos universais de direito internacional, quais sejam: a paz e a proteção

2 Segundo Jorge Miranda (2009, p. 105), normas de jus cogens são “princípios que estão para além da vontade ou

do acordo de vontades dos sujeitos de Direito Internacional; que desempenham uma função eminente no confronte de todos os outros princípios e regras; e que têm uma força jurídica própria, com os inerentes efeitos na subsistência de normas e actos contrários.”

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dos direitos humanos, que devem ser observados a todo momento pelas nações, independente de seus interesses econômicos e particulares. Esse é o processo de internacionalização dos direitos humanos, em que a proteção do indivíduo e da humanidade passa a estar no centro das relações externas e internas dos Estados.

Nesse sentido, o Direito Internacional também foi capaz de influenciar as legislações internas dos países, havendo um gradual processo de abertura das constituições à proteção internacional dos direitos humanos (CANÇADO TRINDADE; TRINDADE, V., 2016, p.80).

Por meio desse processo, se construiu um ordenamento jurídico supra estatal, composto não só pela ratificação de tratados, mas também pelas normas de jus cogens, de modo que, conforme leciona Ferrajoli, os Estados não estão apenas vinculados entre si pelos pactos que firmam, mas por um pacto de sujeição às regras de Direito Internacional dos Direitos Humanos. (2002, p. 39 e 40)

Dentre as transformações no campo do Direito Internacional no Pós-Segunda Guerra Mundial, tem-se também o processo de humanização deste ramo do direito. Como marco desse identifica-se a Carta Internacional dos Direitos Humanos, composta pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) e pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966).

Conforme leciona Flávia Piovesan (2000, p. 94), por meio desses instrumentos, notadamente da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que veio imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, se construiu a concepção contemporânea de direitos humanos, que tem como características a universalidade4, pois se aplicam a todos os indivíduos, e a indivisibilidade.

Nesse mesmo sentido, a cristalização do princípio da humanidade no Direito Internacional, enquanto norma de jus cogens, reflete justamente a imprescindibilidade da proteção da pessoa humana, a qual deve ser assegurada independente de sua positivação em tratados (JUSTO; ALMEIDA, 2016, p.152).

Evidente que, como alerta Ramos (2012), quando aplicado como fonte não convencional, em razão de um Estado não ter ratificado um tratado que assegure este princípio,

4 Com relação a essa característica (defendida pela corrente universalista), importa observar que há também a

doutrina relativista, que apregoa o multiculturalismo dos direitos humanos. Nesse sentido, Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 19) traz a seguinte reflexão: “Mas serão os direitos humanos universais enquanto artefacto cultural, um tipo de invariante cultural, parte significativa de uma cultura global? Todas as culturas tendem a considerar os seus valores máximos como os mais abrangentes, mas apenas a cultura ocidental tende a formulá-los como universais. Por isso mesmo, a questão da universalidade dos direitos humanos trai a universalidade do que questiona pelo modo como o questiona. Por outras palavras, a questão da universalidade é uma questão particular, uma questão específica da cultura ocidental,”.

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há uma segurança jurídica menor do que quando há um texto convencional. Essa mesma lógica se aplica aos direitos humanos em si, que ainda são objeto de debate com relação a sua classificação: se seriam normas consuetudinárias ou princípios gerais de direito internacional.

Ainda no âmbito da aplicação do Direito Internacional, a Cláusula Martens, presente na Convenção de Haia de 1899 e em outros instrumentos, ganha particular importância. Ela assegura a proteção da população civil nos tempos de conflito e traz vedação expressa ao non

liquet, ou seja, há um dever de julgar e responsabilizar os violadores de direitos humanos.

Ainda, em sua aplicação hermenêutica, entende-se que com base nela deve haver uma aplicação restritiva dos tratados, nessa linha de pensamento o que não está expressamente proibido não está permitido (CANÇADO TRINDADE.; TRINDADE, V., 2016, p. 83).

Nesse contexto de evolução da doutrina internacionalista em prol da proteção do ser humano, outro grande avanço foi o reconhecimento do indivíduo como sujeito de direito internacional.5 Atualmente, os indivíduos possuem capacidade jurídica, tendo acesso às jurisdições internacionais, como também podendo ser responsabilizados por seus atos nesse âmbito.

Diante do exposto, é certo que como consequência desse processo de internacionalização dos direitos humanos se fez necessário repensar a noção de soberania absoluta do Estado e relativizá-la, uma vez que os Estados passaram a admitir intervenções em seus territórios em prol da proteção da pessoa humana. (PIOVESAN, 2000, p.95)

Se de um lado há a relativização da soberania, em razão das políticas de monitoramento e responsabilização internacional em matéria de direitos humanos, por outro percebe-se que a adesão dos Estados a tratados e organizações que tutelam esses direitos é manifestação máxima e definitiva de sua soberania estatal. Isso ocorre porque, atualmente, o ideal de soberania deve ser encarado dentro de um contexto de cooperação internacional, sendo um fator positivo o engajamento nacional em prol das finalidades comuns da sociedade internacional.

Assim, é natural que ao ratificar previsões de proteção e promoção de direitos humanos, em havendo falha do Estado em assegurar esses direitos, que sejam aplicados

5 Apesar da consolidação na doutrina e na jurisprudência com relação ao reconhecimento da pessoa humana como

sujeito de direito internacional, importante evidenciar que há uma corrente minoritária que discorda desse entendimento. Nesse sentido, segundo Rezek (2011, p. 182 e 183) “Não têm personalidade jurídica de direito internacional os indivíduos, e tampouco as empresas, privadas ou públicas. [...] a percepção do indivíduo como personalidade internacional pretende fundar-se na lembrança de que certas normas internacionais criam direitos para as pessoas, ou lhes impõem deveres. É preciso lembrar, entretanto, que indivíduos e empresas — diversamente dos Estados e das organizações — não se envolvem, a título próprio, na produção do acervo normativo internacional, nem guardam qualquer relação direta e imediata com essa ordem.”

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mecanismos de responsabilização, não podendo essa accountability ser encarada como um sobrepujamento de sua soberania.

2.3 O PRINCÍPIO DA JURISDIÇÃO UNIVERSAL

Ante todo a trajetória histórica, que desempenha papel de extrema relevância na compreensão dos institutos a serem apresentados, necessário se faz adentrar agora no cerne do presente trabalho, qual seja o estudo da jurisdição universal, também conhecida como princípio da universalidade, da competência universal ou da justiça mundial.

Segundo a Comissão de Direito Internacional (CDI) da ONU (2014, p.08), a jurisdição universal pode ser definida como: “competência para estabelecer jurisdição territorial sobre pessoas por crimes extraterritoriais, quando nem a vítimas nem o acusado são nacionais do Estado de foro e não houver alegação de nenhum dano/ofensa aos interesses do Estado de foro” (tradução livre)6.

Este princípio aparece de forma embrionária no Alien Tort Claims Act (ATCA) em 1789, na legislação interna estadunidense, como uma forma de combate a pirataria. Quase um século depois, em 1856, encontramos a sua primeira positivação em um diploma normativo internacional, por meio do Congresso de Paris, em que também aparece sendo aplicado na proibição da pirataria e na possibilidade de julgamento deste crime.

O fundamento inicial para existência dessa competência universal para julgamento do crime de pirataria residia em dois pilares: (i) a gravidade do crime para a sociedade internacional e (ii) os navios piratas não possuíam bandeira de nenhum Estado, impossibilitando assim a fixação de competência territorial para julgamento.

Contudo, é no século XX que o princípio da jurisdição universal passa a tomar a forma que hoje possui, principalmente no que diz respeito ao seu fundamento de validade. Essa mudança de perspectiva ocorre em razão da mudança de mindset pela qual a sociedade internacional passou nesse período, tendo vivido duas grandes guerras mundiais e presenciado inúmeras atrocidades e violações de direitos humanos.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os Aliados, vencedores da guerra, consideraram necessário o julgamento dos responsáveis pelos crimes contra humanidade cometidos, de modo que criaram 2 (dois) tribunais ad hoc para tanto. Importa esclarecer que

6 “... exercise of universal jurisdiction, which is ‘the jurisdiction to establish a territorial jurisdiction over persons

for extraterritorial events’ where neither the victims nor alleged offenders are nationals of the forum State and no harm was allegedly caused to the forum State’s own national interests.”

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tribunais ad hoc são aqueles instituídos com o fim de julgar um caso específico, após a ocorrência dos fatos, e de caráter temporário, sendo também conhecidos como tribunais de exceção.

O Tribunal Militar Internacional de Nuremberg (TIMN) foi o responsável por julgar os criminosos de guerra nazistas por crimes contra a paz, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e conspiração para cometer tais transgressões. O TIMN foi constituído por meio da Declaração de Moscou, de 1943, e seu Estatuto foi instituído por meio do Acordo de Londres, de 1945. Ao todo foram selecionados 24 (vinte e quatro) réus, que representavam as diversas frentes da liderança nazista, dos quais apenas 3 (três) foram absolvidos.

Ao Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente (TMIEO) restou a competência de julgar os criminosos de guerra japoneses por crimes contra a paz, crimes contra humanidade e crimes contra as convenções de guerra, sendo sua formação constituída na Conferência do Cairo, em 1943, e sua Carta instituída em 1946. O TMIEO julgou 28 (vinte e oito) militares e políticos de alto escalão e absolveu apenas 2 (dois) deles.

A criação desses tribunais trouxe diversas consequências para o desenvolvimento do Direito Internacional Penal. Contudo, antes de adentrar no campo de suas contribuições, é essencial evidenciar algumas críticas quanto a constituição desses tribunais. A fragilidade das instituições internacionais daquela época é fato notório, bem como a precariedade no desenvolvimento de uma jurisdição internacional penal, em razão disso houve uma tipificação posterior dos crimes que seriam levados a julgamento.

Além disso, os juízes forem escolhidos pelos Aliados, países vencedores da Segunda Guerra Mundial, constituindo uma verdadeira justiça dos vencedores, que controlaram toda a constituição do Tribunal que viria a julgar tão somente os crimes cometidos pelos perdedores. Isso, somado a tipificação posterior dos crimes, leva a questionamentos sobre a existência de uma efetiva paridade de armas nesses processos.

Por outro lado, é preciso reconhecer que pela primeira vez houve uma preocupação em escala global em responsabilizar os perpetuadores de violações de direitos humanos. Assim, não só se trouxe justiça para as vítimas e suas famílias, como se estabeleceu um novo paradigma para o Direito Internacional, em que não mais seriam toleradas tais violações.

Sob essa égide, a jurisdição universal começou a florescer na Idade Contemporânea. Isso porque, após os julgamentos desses tribunais ad hoc, foram estabelecidas as bases para o dever internacional de responsabilizar os perpetuadores de crimes contra a humanidade. Nesse sentido, o Estado de Israel procedeu com o julgamento de 2 (dois) nazistas responsáveis por tais crimes: Adolf Eichmann e Ivan Demjanjuk.

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O primeiro foi capturado na Argentina pelo serviço secreto israelense, sendo levado para Israel, onde foi processado e condenado a forca por crimes de guerra. O fundamento jurisdicional para o seu julgamento teve como base principal a nacionalidade passiva, tendo em vista a conexão do Estado com o povo judeu, contudo, é inquestionável o precedente estabelecido em prol da jurisdição universal, uma vez que se pode entender que este foi um exercício de tal jurisdição de forma condicionada.

Já Demjanjuk estava em território norte-americano, tendo Israel requisitado a sua extradição em 1985, pleito este atendido pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Na decisão que deferiu este pedido, o Tribunal afirmou o princípio da jurisdição universal com fulcro na ideia de que “alguns crimes são tão universalmente condenados que os perpetradores são inimigos de todos os povos” (BARROS, 2016, p. 58).

Com o advento da ONU restou clara a preocupação das nações com a promoção da paz e com a proteção dos Direitos Humanos. Nesse sentido, foi natural o caminhar no sentido de uma positivação de condutas vedadas pela sociedade internacional, com base em normas de

jus cogens e princípios de Direito Internacional, bem como na história recente da humanidade.

Desta feita, foram elaborados diversos tratados prevendo a tipificação de crimes a serem tutelados pelo Direito Internacional, como: a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade (1968), a Convenção sobre o Apartheid (1973) e a Convenção contra a Tortura (1984). É importante observar que em todas essas convenções não só a há a tipificação dessas condutas, como também há previsão do dever universal de combate as mesmas, positivando o exercício da jurisdição universal.

Em meio a esse processo de convencionalização, que assegurou o devido espaço da jurisdição universal na prática internacional, desponta o caso Pinochet. Em 1998, o ex-ditador chileno foi detido, em Londres, em cumprimento de ordem judicial emitida por juiz espanhol, para que fosse interrogado pelo assassinato e desaparecimento forçado de espanhóis ao longo do regime militar chileno. Assim como no caso de Eichmann, a jurisdição universal não foi o único fundamento utilizado, contudo é evidente a sua relevância.

Apesar de Augusto Pinochet nunca ter ido a julgamento, devido ao seu frágil estado de saúde, que culminou em seu falecimento em 2006, esse caso estabeleceu um importante precedente, pois pela primeira vez houve expressamente a suspensão da imunidade de um ex-chefe de Estado por crimes contra os direitos humanos.

Ato contínuo, no que diz respeito a construção de uma jurisdição internacional penal em si pela ONU, de início, foram criados diversos outros tribunais ad hoc, seguindo os moldes e precedentes estabelecidos pelo TMIN, para os julgamentos de crimes específicos, como o

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Tribunal Penal Internacional para a Ruanda e o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia. Estes novos tribunais ad hoc, contudo, já demonstram uma evolução frente aos primeiros, pois não houve mais tipificação posterior dos crimes, assegurando assim a possibilidade de uma efetiva ampla defesa.

Ainda se fazia necessário, entretanto, a criação de um tribunal permanente, de modo a assegurar maior celeridade e segurança jurídica, bem como para facilitar o processo de denúncias. Assim, por meio do Estatuto de Roma, de 1998, foi criado o Tribunal Penal Internacional (TPI) que, segundo o seu artigo 5º, tem como competência julgar os seguintes crimes: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão.

Ocorre que, segundo o artigo 4º deste diploma, o TPI só poderá exercer sua jurisdição no território de um Estado Parte ou, mediante acordo especial, no território de qualquer outro Estado. É clara, portanto, as limitações das prerrogativas do Tribunal Penal Internacional na persecução penal, uma vez que se submetem a sua jurisdição apenas os países que assim o desejarem de forma expressa e livre.

Todavia, a responsabilização de violações perpetuadas contra a humanidade e a ordem internacional não deve estar sujeita a discricionariedade de um Estado de se submeter, ou não, a jurisdição do TPI. Como antes exposto, ao reconhecer diplomas de proteção e promoção desses direitos, presume-se que o Estado deverá estar sujeito as sanções cabíveis.

Assim, onde o TPI encontra uma barreira em seu exercício jurisdicional, o princípio da jurisdição universal encontra campo para se desenvolver. Consoante dito, ao longo das últimas décadas diversas convenções fizeram previsão expressa acerca do dever universal de responsabilização dos perpetuadores de crimes contra a humanidade, possibilitando a persecução penal por este meio.

Além disso, independente da previsão expressa em tratado, o princípio da jurisdição universal já se cristalizou como norma de jus cogens devendo ser aplicado independente de positivação. (BARROS, 2016, p. 85; ANNONI, DUARTE, 2016, p. 147; RYNGAERT, 2015, p. 127; BROWNLIE, 1990, p. 537)

Diante desse contexto, tem-se que a jurisdição universal desponta como outro ramo da justiça internacional penal a ser seguido. Ao longo das últimas décadas, em meio a julgamentos por tribunais ad hoc, a jurisdição universal veio sendo aplicada com vistas a assegurar a ordem pública internacional. E, mesmo a criação do TPI não foi capaz de fragilizar o uso desse princípio, muito pelo contrário, as suas bases teóricas e procedimentais continuaram a se desenvolver e a sua aplicação aumentou de incidência.

(27)

A crescente importância deste princípio despertou a atenção dos estudiosos em Direito e Relações Internacionais, culminando na elaboração, por um estudo da Universidade de Princeton em 2001, dos Princeton Principles on Universal Jurisdiction. O objetivo deste estudo foi trazer fundamentos e premissas para uma aplicação homogênea do princípio da jurisdição universal, trazendo, assim, uma maior segurança jurídica.

Nesse mesmo sentido, anos depois, no I Congresso Internacional de Jurisdição Universal, foram elaborados os Princípios de Madrid-Buenos Aires, com o objetivo de complementar os estudos feitos pela Universidade de Princeton. Em âmbito regional, temos o

The Cairo-Arusha Principle on Universal Jurisdiction in Respect of Gross Human Rights Offenses, que estabeleceu diretrizes de aplicação no território africano.

2.3.1 Das características e classificações

A luz de toda a trajetória percorrida para a construção do princípio da jurisdição universal até os moldes de hoje, é preciso evidenciar o que fundamenta o seu exercício. Consoante exposto, seu alicerce reside no processo internacionalização dos direitos humanos, fase em que a sociedade internacional direcionou seus esforços para a proteção da humanidade e que os Estados passaram a internalizar em seus ordenamentos jurídicos tais premissas de proteção.

Nessas linhas, verifica-se que o exercício da competência universal está associado a uma necessidade de assegurar a ordem pública internacional frente a condutas vilipendiadoras das normas e princípios de direito internacional. Sob essa lógica, a ocorrência de um crime internacional viola valores universalmente reconhecidos e vai de encontro ao processo de humanização deste campo.

A CDI (2014, p. 09) reconhece que a “jurisdição universal é componente crucial para processar acusados de perpetuar crimes internacionais, principalmente quando o acusado não é processado no território onde o crime foi cometido” (tradução livre)7. Para tanto,

fundamenta-se na Convenção de Genebra de 1949 e na Convenção Contra Tortura, as quais determinam o exercício universal da jurisdição como forma de assegurar a execução dos tratados.

Conforme aponta Cédric Ryngaert (2015, p. 122), ao contrário da jurisdição supletória ou representativa, em que o Estado que julga é ferramenta no exercício de direito de um outro

7 “Universal jurisdiction is a crucial component for prosecuting alleged perpetrators of crimes of international

concern, particularly when the alleged perpetrator is not prosecuted in the territory where the crime was committed”

(28)

Estado, na jurisdição universal, o Estado está a exercer a sua função enquanto parte da sociedade internacional em prol da proteção da humanidade e da ordem internacional. Assim, o que fundamenta o seu exercício são as obrigações internacionais que vinculam os Estados.

Essa jurisdição tem caráter originário, ou seja, independe de consentimento do Estado de conexão originária. Em razão disso, o seu exercício é condicionado a verificação de se há ou não demanda ajuizada previamente no país de origem, de modo a evitar a dupla incriminação do acusado. Fica ressalvado, contudo, os casos em que é evidente a existência de scham trials no Estado de origem, em que há o ajuizamento de demanda tão somente para evitar o processamento do indivíduo por outros meios, não havendo a devida observação do processo legal e nem o compromisso com a responsabilização pelas práticas realizadas.

Assim como o TPI, o exercício da competência universal tem sempre caráter subsidiário, sendo a prioridade para julgamento do Estado em que os fatos correram. Isso porque o Estado dos fatos possui ao seu alcance de forma facilitada e mais célere o acesso a provas, vítimas e testemunhas. Ademais, na forma do Princípio 8 dos Princípios de Princeton (2001), esse é um dos critérios a serem observados quando houver conflito entre jurisdições.

Ainda com relação a subsidiariedade da jurisdição universal, a priori, se houver conflito de competência com a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, deve-se observar o princípio da complementariedade, fixado no artigo 17 do Estatuto de Roma, que prevê que o TPI não pode requisitar a transferência de procedimentos enquanto estes estiverem pendentes em uma corte nacional. Todavia, alguns Estados optaram por fixar em suas legislações internas a subsidiariedade da jurisdição universal frente ao TPI (CORDERO, 2008, p. 79).

Importa observar ainda que há incidência do princípio da concorrência, que veda o ajuizamento e persecução penal por mais de uma jurisdição pelo mesmo tipo penal. Dessa forma, assegura-se, por um lado, o dever de cooperação dos Estados, permitindo investigações concorrentes enquanto não houve o ajuizamento de uma ação, e por outro protege os direitos do réu, evitando o bis in idem.

No que tange ao ne bis in idem, esse princípio assegura a impossibilidade de um novo julgamento com base nos mesmos fatos, o que é denominado pela doutrina como blocking

effect. Essa garantia está prevista em diversos tratados internacionais, como na Convenção de

Direitos Civis e Políticos de 1966, em seu artigo 14, bem como em diplomas de nível regional como a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, e o Sétimo Protocolo da Convenção Europeia de Direitos Humanos.

Apesar da previsão internacional do ne bis in idem, muitos Estados não reconhecem a aplicação do seu blocking effect quando se trata de decisões prévias de cortes de outros países

(29)

(CORDERO, 2008, p. 81). Todavia, sob a lógica de uma comunidade cooperativa e da proteção dos Direitos Humanos do réu, há que se entender pela necessidade de evolução da vedação ao

bis in idem ao se tratar de julgamentos de crimes internacionais, que são tutelados pelos

tratados, convenções e normas de jus cogens.

Em se tratando da possibilidade julgamento subsequente após decisões do Tribunais

ad hoc das Nações Unidas, é pacífica a aplicação do blocking effect, uma vez que em seus

Estatutos há previsão expressa nesse sentido, como no artigo 10 do Estatuto do Tribunal Penal Internacional par a ex-Iugoslávia.

Apesar do desenvolvimento desse princípio ao longo das últimas décadas, alguns países ainda encontram resistência na hora de aplicá-lo, razão pela qual atualmente existem duas formas de exercício dessa jurisdição: a absoluta e a condicionada.

A jurisdição universal absoluta, ou incondicionada, não apresenta maiores requisitos para o seu exercício, sendo necessário tão somente que a natureza dos crimes cometidos seja compatível com o instituto, ou seja, ser um crime internacional violador de norma de jus cogens e a ofensa a consciência de humanidade. Assim, não há que se falar em qualquer liame entre o Estado julgador e o caso julgado para que seja possível o julgamento (MELLO, 2017, p.62). Atualmente, o único país que prevê em seu ordenamento interno o seu exercício absoluto é a Alemanha.

Por outro lado, para o exercício da jurisdição universal condicionada se faz necessária a presença de certos elementos de conexão entre a situação julgada e o Estado julgador. Esses elementos são definidos por meio da legislação interna de cada nação, que relativiza o princípio e impõem condicionantes ao seu exercício, muitas vezes em razão de pressões da sociedade internacional por temerem o seu exercício absoluto. É o caso, por exemplo, da Bélgica, que outrora previa a jurisdição universal absoluta, mas que após reformas legislativas aderiu ao modelo condicionado (CORDERO, 2008, p. 64).

O exercício condicionado do princípio da universalidade da jurisdição desempenha um importante papel na adequação dessa norma de jus cogens a prática internacional, apresentando-se como um importante controle para asapresentando-segurar que no exercício jurisdicional não haverá abusos por parte do Estado nem nenhuma forma de perseguição política por trás do processo. Corroborando também para que haja uma maior adesão dessa jurisdição pelos Estados e assegurando que não haja eventual oposição pela sociedade internacional no seu exercício.

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Um princípio do Direito Internacional que em muito se aproxima da jurisdição universal é o do aut dedere aut judicare. Tendo em vista a competência universal dos Estados para julgarem os crimes internacionais, quando um Estado tiver em seu território o acusado de um desses crimes e outra nação desejar julgá-lo, esta irá aplicar o aut dedere aut judicare, dando duas opções ao outro Estado: julgar ou extraditar o acusado.

Assim, para parte da doutrina, a aplicação desse princípio não se pode confundir com a jurisdição universal. Um dos argumentos levantados é que, enquanto o aut dedere aut judicare é fundamentado em uma cláusula convencional, tendo aplicação restrita as partes signatárias, o princípio da jurisdição universal é pautado em normas de jus cogens sendo aplicado a todos os Estados.

Sob esse aspecto tradicional, esse princípio seria uma obrigação inter partes, não sendo oponível a um Estado terceiro (RYNGAERT; 2008, P.105). Todavia, há uma vertente que reconhece que atualmente o aut dedere aut judicare já tomou forma de norma costumeira de Direito Internacional (BARROS, 2016, p. 94 e 95), o que impactaria diretamente a validade do argumento tradicional.

Diante das teorias mais progressistas, que encaram o Direito Internacional como um ambiente de cooperação entre os Estados, com a sedimentação do aut dedere aut judicare como norma de jus cogens, no âmbito dos crimes internacionais, houve uma aproximação entre este princípio e o da jurisdição universal.

Nesse sentido, a Comissão de Direito Internacional da ONU, em 2014, estabeleceu algumas conexões entre estes princípios. De início, enfatiza que os eles não são sinônimos, mas que, nos casos em que o pleito do aut dedere aut judicare é fundamentado na jurisdição universal, há a convergências dos mesmos. Isso porque é plenamente possível que dois Estados tenham conflito de competência em razão de elementos de conexão como a nacionalidade do réu e das vítimas.

Nos casos em que há essa conexão, a CDI (2014, p. 08) entendeu que quando o crime foi cometido em outro território e não há conexão com o Estado de foro, então a obrigação de extraditar ou julgar refletirá necessariamente em um exercício de jurisdição universal. Nesse sentido, complementa que o estabelecimento de uma jurisdição é o primeiro passo lógico para a existência de uma obrigação aut dedere aut judicare, advindo, portanto, uma conexão essencial.

Certo é que a fundamentação da aplicação desse princípio encontra subsídio nas normas de direito internacional, seja na interpretação de que a sua obrigatoriedade se dá por cláusulas convencionais ou por ser norma de jus cogens. Tanto é que, de acordo com relatórios

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de diversos países, a maioria das nações não fazem previsão em seu ordenamento interno acerca dessa obrigatoriedade de julgar ou extraditar (CORDERO, 2008, p. 89 e 90).

No âmbito deste princípio é preciso entender ainda que não se trata de uma norma negativa, proibidora de uma conduta, mas, pelo contrário, de uma obrigação positiva do Estado fazer a escolha entre julgar ou extraditar o acusado (BARROS, 2016, p.96). Assim, não há nenhum tipo de repressão a competência jurisdicional do Estado, ao mesmo tempo em que o obriga ou a exercer o seu dever para com a ordem internacional ou permitir que outro Estado o faça.

Um emblemático caso que bem estabelece a relação entre esses institutos é o de Hissene Habre, ex-ditador do Chade, que em 2016 foi condenado por crimes contra humanidade, crimes de guerra e tortura. Após a queda do seu governo, Habre conseguiu refúgio no Senegal, sendo lá detido após pedido de extradição feito pela Bélgica com fundamento na jurisdição universal.

Assim, o Estado senegalês defrontou-se com duas possibilidades: julgá-lo ou extraditá-lo. Optou, portanto, por julgá-lo por meio de um Tribunal especial a ser constituído pela União Africana, que, após parecer positivo da Corte Internacional de Justiça (CIJ) reconhecendo a legitimidade da escolha do Senegal, foi constituído e procedeu com seu julgamento.

A CIJ também reconheceu que a vedação a tortura é uma norma de jus cogens e que a sua positivação por meio da Convenção contra Tortura serve de parâmetro para aplicação do

aut dedere aut judicare em outros casos de normas de jus cogens, como o genocídio, crimes

contra humanidade e crimes de guerra (Comissão de Direito Internacional, 2014, p. 08). Sob a mesma lógica, também pode ser parâmetro para a aplicação da jurisdição universal em casos de crimes não convencionados.

Desta feita, se depreende que a obrigação de extraditar ou julgar no âmbito dos crimes internacionais é uma importante ferramenta para assegurar a efetividade do princípio da jurisdição universal. O Princípio 1, parágrafo terceiro, dos Princípios de Princeton prescreve justamente nesse sentido, reconhecendo o fundamento da jurisdição universal como base para solicitação de pedido de extradição.

Ora, nesses casos se reconhece o caráter de norma de jus cogens da obrigação, de modo que nenhum Estado poderá se escusar de cumpri-la, garantindo assim que haverá efetivo julgamento dos crimes e viabilizando a possibilidade de exercício da jurisdição universal por meio do dever de extraditar.

(32)

3 JURISDIÇÃO UNIVERSAL E O DIREITO INTERNACIONAL PENAL

Para a devida compreensão do princípio da universalidade da jurisdição necessário se faz atentar para as construções teóricas do Direito Internacional Penal, uma vez que estas estão, principalmente, consignadas por meio do direito consuetudinário.

O campo do Direito Internacional Penal, conforme leciona Cassese (2003, p. 15), é o corpo de regras que tanto prescrevem quais são os crimes internacionais, quanto impõem aos Estados a obrigação de processar e punir esses crimes.

Com relação as suas fontes, por ser parte do campo do Direito Internacional Público, aplica-se o art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (CIJ), que estabelece o seguinte rol: convenções internacionais, costume internacional, princípios gerais de direito, decisões judiciárias e a “doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações”.8

No que diz respeito a hierarquia dessas fontes, o Estatuto de Roma, que estabelece o funcionamento do Tribunal Penal Internacional, traz codificação nesse sentido:

Artigo 21 [Direito Aplicável] 1. O Tribunal aplicará:

a. Em primeiro lugar, este Estatuto, os Elementos de Definição dos Crimes e as Regras de Procedimento e Prova;

b. Em segundo lugar, quando couber, os tratados aplicáveis e os princípios e normas do direito internacional, inclusive os princípios estabelecidos do direito internacional dos conflitos armados;

c. Na falta destes, os princípios gerais do direito que o Tribunal retire do direito interno dos diferentes sistemas jurídicos existentes, incluindo, se for o caso, o direito interno dos Estados que exerceriam normalmente a sua jurisdição relativamente ao crime, sempre que esses princípios não sejam incompatíveis com o presente Estatuto, com o direito internacional, nem com as normas e padrões internacionalmente reconhecidos.

2. O Tribunal poderá aplicar princípios e normas de direito tal como já tenham sido por si interpretados em decisões anteriores.

3. A aplicação e interpretação do direito, nos termos do presente artigo, deverá ser compatível com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, sem discriminação alguma baseada em motivos tais como o gênero, definido no parágrafo 3° do artigo 7°, a idade, a raça, a cor, a religião ou o credo, a opinião política ou outra, a origem nacional, étnica ou social, a situação econômica, o nascimento ou outra condição. (TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 1998)

8 Artigo 38. A Corte, cuja função é decidir de acordo com o direito internacional as controvérsias que lhe forem

submetidas, aplicará: a. as convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que estabeleçam regras expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; b. o costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como sendo o direito; c. os princípios gerais de direito, reconhecidos pelas nações civilizadas; d. sob ressalva da disposição do Artigo 59, as decisões judiciárias e a doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações, como meio auxiliar para a determinação das regras de direito.

(33)

Isto posto, no âmbito deste capítulo, trataremos tanto do estudo desses institutos, quanto do enquadramento da jurisdição universal nesse contexto.

3.1 A JURISDIÇÃO NO DIREITO INTERNACIONAL PENAL

A jurisdição, para fins de Direito Internacional, está relacionada a sovereignty, ou seja, o poder que o Estado tem, enquanto soberano, de desenvolver o sistema legal internacional e nacionalmente. Assim, o estudo da jurisdição é o estudo dos limites das leis dos Estados, uma vez que é a jurisdição internacional que dita até onde as jurisdições nacionais podem ser exercidas (RYNGAERT, 2015, p. 06).

Evidente, portanto, que a noção de jurisdição está associada com os direitos e poderes decorrentes da soberania estatal, não podendo, todavia, se limitar tão somente a isto. Nesse diapasão, podemos concluir, na esteira do ensinamento de Fernanda Jankov (2005, p.76) que “o conceito de jurisdição internacional designa o direito internacional do Estado de criar regras e de aplicá-las e executá-las a um determinado caso”.

3.1.1 Das classificações da jurisdição

Ato contínuo, a jurisdição pode ser dividida em três tipos: a prescritiva, a adjudicativa e a executiva. Em síntese, a primeira diz respeito a competência para estabelecer regras, a segunda a de estabelecer processos judiciais com o objetivo de averiguar supostas violações às regras e a terceira a de impor as consequências da transgressão (JANKOV, 2005, p. 79).

A jurisdição prescritiva está associada, como aponta Ryngaert (2015, p. 09), ao alcance geográfico das leis de um Estado. Ela está, como antes apontado, diretamente associada ao Direito Internacional, uma vez que os seus limites são estabelecidos por esse direito. Importa observar ainda que dentro deste âmbito podem ser enquadrados também os atos judiciais e executivos característicos do poder soberano (JANKOV, 2005, p. 82).

As limitações e direcionamentos trazidos pelo Direito Internacional, todavia, nem sempre estão determinados de forma clara, na maioria das vezes estão sedimentados em direito consuetudinário e em princípios, o que dificulta sua materialização para o direito interno. Essa questão será melhor aprofundada em tópico posterior que abordará a tipificação dos crimes internacionais e de sua relação com a jurisdição universal.

Já a jurisdição adjudicativa está mais associada a jurisdição das cortes estatais do que efetivamente está ao alcance da lei daquele Estado, sendo possível, assim, um Estado ter a

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