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3.1 A jurisdição no Direito Internacional Penal

3.1.2 Dos princípios norteadores da jurisdição internacional

No âmbito do Direito Internacional Penal existem princípios que estabelecem os casos que em que há legítimo exercício da jurisdição, seja ela territorial ou extraterritorial. Com relação ao primeiro caso, segundo Ian Brownlie (1990, p.321), o princípio da territorialidade caracteriza-se por fixar a competência do tribunal do local onde o crime foi cometido, sendo uma aplicação da territorialidade essencial da soberania. Para tanto, a vertente objetiva deste princípio estabelece que a consumação de qualquer elemento essencial do crime é suficiente para a sua aplicação.

A territorialidade é a regra no campo de fixação de competência jurisdicional, uma vez que consagra a liberdade dos Estados exercerem sua jurisdição livremente dentro de seus territórios (RYNGAERT, 2015, p.36). Importante evidenciar, que em que pese a sua ampla aceitação, este princípio não pode ser encarado como absoluto, havendo outros princípios norteadores do exercício da jurisdição prescritiva do Estado.

Além disso, em caso de crimes internacionais em que o suspeito da conduta goza de imunidade ou está acobertado por lei de anistia, resta evidente que a aplicação absoluta do princípio da territorialidade nesses casos iria diretamente em encontro com os interesses da sociedade internacional e com a salvaguarda dos direitos humanos. Assim, o princípio da jurisdição universal se apresenta como importante ferramenta na efetivação desses interesses, uma vez que os demais Estados não estão sujeitos as normas internas de outras nações acerca de imunidade e anistia.

Ato contínuo, os demais princípios buscam justamente fundamentar o exercício extraterritorial da jurisdição, ou seja, quando o Estado exerce sua jurisdição sob fatos ocorridos em território estrangeiro. Para tanto, o direito consuetudinário usa dos princípios da nacionalidade ativa e passiva, da proteção e da universalidade.

O princípio nacionalidade ativa prescreve a competência do Estado para julgar os crimes cometidos por seus nacionais no exterior. No campo do Direito Internacional Penal, para o seu exercício basta o enquadramento da conduta como crime internacional, seja com base em tratados ou direito consuetudinário.

Sua aplicação, segundo ensina Ryngaert (2015, p. 104), não tem sido contestada pela sociedade internacional, levando a sua sedimentação. Além disso, enfatiza que o princípio da nacionalidade atinge tanto as pessoas que adquirem uma nova nacionalidade, perdendo, portanto, a nacionalidade do Estado que pretende julgá-lo, quanto aqueles que adquirem a nacionalidade do Estado de foro após a prática do crime.

Nesse sentido, Cassese (p. 2003, p. 282) rememora que, com lastro nesse princípio, diversos Estados editaram leis acerca da competência para julgar os criminosos da Segunda Guerra Mundial, uma vez que muitos buscaram refúgio em outros Estados e adquiriram nova nacionalidade.

Por outro lado, acerca do princípio da nacionalidade passiva:

De acordo com este princípio, os estrangeiros podem ser punidos por actos praticados no estrangeiro que causem prejuízos aos nacionais do Estado do foro. Como princípio geral, este é o menos justificável dos vários fundamentos para o exercício da jurisdição, estando, em todo o caso, algumas das suas aplicações sujeitas aos princípios da protecção e da universalidade. (BROWNLIE, 1990, p. 324).

Este princípio tem como fundamento a proteção dos nacionais que vivem no exterior, contudo, ao defrontá-lo com a dogmática internacional, resta evidente a sua incongruência com a ideia de crimes internacionais, que são aqueles que afetam as noções de humanidade da sociedade internacional (CASSESE, 2003, p. 282 a 284).

Em que pese não ser objeto de consenso em meio aos estudiosos do Direito Internacional, necessário se faz destacar que a sua importância na repressão dos crimes de guerra, como no caso Eichmann, de 1961 (JANKOV, 2005, p.100). Todavia, nesse sentido, Cassese (2003, p. 284) leciona que a persecução dos crimes internacionais deve refletir valores universais e a consequente preocupação do Estado de foro em assegurá-los, baseando-se no princípio da territorialidade, nacionalidade ativa ou universalidade; sendo essa uma possível saída para casos futuros e evitando a aplicação do controverso princípio da nacionalidade passiva.

O princípio da proteção, no entanto, possui ampla aceitação pela sociedade internacional e é de aplicação pacífica pela doutrina. Constitui, em síntese, na capacidade de exercício jurisdicional por um Estado quando no exterior são cometidas condutas que ameaçam a sua sovereignty. (RYNGAERT, 2015, p. 114)

Por fim, o princípio da universalidade também é um dos fundamentos do exercício extraterritorial da jurisdição. Como já apresentado, a competência universal absoluta é pautada na natureza dos crimes, que devem ser internacionais, independente de elementos de conexão para estabelecer a jurisdição do Estado de foro.

Já a jurisdição universal condicionada admite que sejam estabelecidas condições ao seu exercício, sendo, atualmente, a modalidade adotada pela grande maioria dos Estados (FUNDACIÓN BALTASAR GARZÓN, 2015). Um dos requisitos apresentado no tópico

anterior é o da presença do acusado no território do Estado de foro, como forma de vedar o julgamento in absentia.

Nessa esteira, muitos Estados têm incorporado os princípios base da extraterritorialidade antes mencionados (nacionalidade ativa, nacionalidade passiva e proteção) como elementos de conexão para o estabelecimento da jurisdição universal condicionada. Esse processo gera divergências na doutrina se, em razão do uso desses outros princípios, não haveria uma descaracterização da universalidade da jurisdição.

Todavia, é preciso reconhecer o desenvolvimento deste princípio e o papel desempenhado pelas relações internacionais e as legítimas preocupações suscitadas com relação ao abuso de poder e discricionariedade política ao exercer sua forma absoluta. Assim, ao invés de se encarar esse processo como uma limitação da competência universal, é preciso reconhecer o seu caráter de compatibilização do princípio com as pautas internacionais, possibilitando a sua manutenção na prática do direito internacional e a coexistência pacífica dos Estados.

3.1.2.1 Aparentes conflitos entre a jurisdição universal e outros princípios

Os princípios da não intervenção e da igualdade entre os Estados são importantes balizas estabelecidas pelo costume internacional no campo da jurisdição, como forma de assegurar a coexistência pacífica entre os Estados. São, portanto, normas negativas de exercício jurisdicional. Nesse sentido, a competência universal entra em um aparente confronto com algumas construções e conceitos de direito internacional, razão pela qual é necessário compreender e diferenciar esses institutos.

No âmbito do direito e das relações internacionais pode-se identificar duas premissas máximas que possibilitam o relacionamento entre as nações: os ideais de soberania e igualdade entre Estados. Nesse sentido, Brownlie apresenta os principais fundamentos destes institutos:

1) jurisdição, prima facie exclusiva, sobre um território e sobre a população permanente que nele vive; 2) dever de não ingerência na área de jurisdição exclusiva dos outros Estados ; e 3) subordinação às obrigações resultantes do Direito consuetudinário e dos tratados concluídos com o consentimento do Estado obrigado. (BROWNLIE, 1990, p. 309).

Esse esclarecimento se faz necessário para que possamos compreender as críticas com relação a aparentes violações da soberania e do princípio da não intervenção quando há aplicação da competência universal.

A primeira análise a ser feita diz respeito a relação do princípio da jurisdição universal e da soberania estatal. Consoante tratado alhures, a noção tradicional de soberania está associada a um ideal de poder absoluto do Estado em fazer escolhas e cumprir com suas obrigações, estando tudo dentro do seu campo de discricionariedade e tendo como norma maior o respeito à soberania, principalmente territorial, dos outros Estados.

Sob esse viés, de fato, torna-se quase impossível compreender uma aplicação da jurisdição universal que esteja em consonância com esses parâmetros. Contudo, importa observar que essa noção tradicional se alinha com o Direito Internacional Clássico e suas premissas valorativas, as quais estavam voltadas a um ideal soberano absoluto e ao fortalecimento dos Estados.

Todavia, o Direito Internacional Contemporâneo apresenta outros paradigmas e tem em seu centro a salvaguarda dos direitos humanos e a cooperação internacional. Frente a mudança sistemática do núcleo valorativo do Direito Internacional, necessário se fez reinterpretar conceitos e institutos para que estejam no compasso das novas tendências, processo esse que também ocorreu com as noções de soberania.

O ideal de soberania estatal na atualidade traz em seu amago a subsunção dos Estados as normas de jus cogens de proteção aos direitos humanos, devendo, evidentemente, haver um respeito mútuo entre os Estados, mas que ao defrontar-se com condutas violadoras desses direitos, deve-se flexibilizar a soberania estatal para que seja possível intervir e assim assegurar a ordem internacional.

Assim, o conceito de soberania perde seu caráter absoluto e as decisões tomadas pelo Estado não podem mais ser de todo discricionárias, encontrando limite na internacionalização dos direitos humanos. Sob essa ótica, não há que se falar em conflito entre o a soberania estatal e o princípio da jurisdição universal, muito pelo contrário, este princípio atua fortalecendo e assegurando a nova ordem internacional.

Por meio da jurisdição universal é possível certificar a proteção dos Direitos Humanos e efetivar o ideal de cooperação internacional, pois na omissão de um Estado em responsabilizar perpetuadores de condutas violadoras de normas de jus cogens, há essa via de responsabilização extraterritorial. Nesse sentido, seguimos para a análise do princípio da não intervenção e sua relação com a competência universal.

O princípio da não intervenção consiste no dever de os Estados se absterem de intervir nos assuntos, sejam eles internos ou externos, dos outros Estados (BROWNLIE, 1990, p. 312), no que diz respeito as regras de competência e a responsabilidade do Estado. A questão da

competência trata de domínio reservado ao Estado e sua jurisdição interna, contudo, a extensão desse domínio reservado depende do Direito Internacional (BROWNLIE, 1990, p. 313).

Desta feita, as obrigações advindas do Direito Internacional, seja consuetudinário ou convencional, são capazes de vincular e limitar a competência territorial interna, não sendo oponível o argumento de insuficiência do direito interno para justificar uma alegada violação de obrigações internacionais.

O princípio da jurisdição universal, em razão do descumprimento de uma norma de

jus cogens que prevê o dever de julgar condutas atentatórias a humanidade, portanto, relaciona-

se com o princípio da não intervenção ao limitar a competência territorial interna para permitir um exercício de uma competência universal.

Assim, frise-se, por meio de sua aplicação não há uma negação da competência interna, mas tão somente há a aplicação de um princípio de direito internacional quando há omissão do Estado em proceder com o julgamento. Não configurando uma intervenção deslegitimada pelo Direito Internacional, mas sim pautada no próprio fundamento de validade das noções de soberania e igualdade entre Estados. Nesse mesmo sentido também se posiciona Kai Ambos (2005).

Na prática, diversos Estados têm estabelecido elementos de conexão, por meio de seus ordenamentos internos, para possibilitar o exercício da jurisdição universal, como consequência, a existência de tais requisitos acaba por reforçar que não há violação do princípio da não intervenção, uma vez que há previsão expressa legitimando a atuação do Estado. (BARROS, 2016, p. 73)