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Outra preocupação do direito internacional com relação aos mecanismos de justiça transicional diz respeito às normas de prescrição nacionais que atingem os core crimes, as quais estabelecem um limite ao exercício da jurisdição do Estado com relação a investigação e persecução penal de tais condutas.

A prescrição é a regra que proíbe a persecução penal quando um período fixo de tempo tiver passado desde o cometimento do crime. O fundamento por trás dessa norma reside, por um lado, que com o decorrer do tempo o interesse social no julgamento diminui e, do outro, na crescente dificuldade em constituir um lastro probatório e assegurar um processo eficiente após tanto tempo. (AMBOS, 2013, p. 427)

A grande maioria dos Estados possuem normas de prescrição penal, normalmente estabelecendo o prazo de 10 a 20 anos para crimes como homicídio e roubo (CASSESE, 2003, p. 316). A problemática surge quando leis domésticas estabelecem um prazo prescricional para condutas tipificadas como core crimes, que são tuteladas pelo direito internacional penal.

A prática adotada pelos Estados difere bastante nesse quesito. Enquanto na Alemanha esses crimes são imprescritíveis, em consonância com o que estabelece o direito internacional, na França apenas o genocídio e os crimes contra a humanidade são atingidos pela imprescritibilidade. (AMBOS, 2013, p. 428)

No âmbito da justiça de transição, essas normas de prescrição desempenham um papel significativo. O processo transicional é demorado, envolve, via de regra, investigações detalhadas acerca dos atos do regime anterior, o que implica em inúmeras audiências e entrevistas para tornar possível a reconstituição dos fatos e construção da história nacional.

É apenas durante esse processo de investigação, normalmente realizado pelas Comissões da Verdade e Reconciliação, que muitas condutas criminosas vêm ao conhecimento público e que se encontram indícios suficientes de autoria e materialidade das mesmas. Todavia, por essa investigação depender da cooperação dos agentes envolvidos no regime anterior e em razão de alguns mecanismos de estímulo a essa cooperação (como a impossibilidade de usar os testemunhos em ação judicial), muitos crimes acabam não sendo registrados ou tendo a sua responsabilidade atribuída a um agente específico.

Assim, a problemática da prescrição de crimes cometidos pelo regime anterior acaba surgindo anos depois, quando a sociedade tem meios para processar tais condutas, como bem leciona Keiti Teitel (2002, p. 16). Um caso exemplar dessa afirmação é o que ficou conhecido como “efeito Scilingo”, em que após cerca de duas décadas do governo da junta militar argentina, um dos membros da marinha confessou o cometimento de crimes contra a humanidade, o que levou a reabertura de investigações de crimes da época (TEITEL, 2002, p. 63).

Esse caso demonstra que o interesse na persecução penal, quando se trata de crimes internacionais violadores de direitos humanos, não há redução do interesse social no julgamento com o decorrer do tempo. Esse “efeito Scilingo” está associado a não linearidade da justiça de transição, em que é comum a demora no ajuizamento de ação, até pela necessidade, muitas vezes, de uma reestruturação nacional para legitimar as instituições e possibilitar certas investigações (TEITEL, 2014, p. 60 e 61).

Nesse mesmo sentido, é preciso observar que o caráter desumano de tais crimes, com práticas sistematizadas e uma ampla violação dos direitos mínimos dos indivíduos, leva à sociedade internacional um inerente dever de agir. Ora, assim como há uma obrigação global dos Estados combaterem os core crimes, em razão de seu caráter de norma de jus cogens, também deve se depreender que de tal obrigação vem o dever de não extinguir a pretensão punitiva dos Estados com relação a essas condutas, o que também se cristaliza enquanto norma de jus cogens (CARVALHO; MOREIRA, 2013, p.11).

Em 1968 foi elaborada a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade e em 1974 a Convenção Europeia sobre esse mesmo tema, o que demonstra a preocupação de se cristalizar essa questão. Todavia, ambas convenções possuem um pequeno número de ratificações.

No âmbito dos tribunais internacionais, o Estatuto de Roma, em seu artigo 29, traz previsão expressa de que os “os crimes da competência do Tribunal não prescrevem”, englobando assim: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e o crime de agressão. Ao contrário das convenções acima mencionadas, o Estatuto de Roma foi ratificado por 122 países, de modo que, independente de terem ratificado ou não tais Convenções, de todo modo esses países estão vinculados a imprescritibilidade dos crimes citados.

Além disso, assim como nos casos referenciados no tópico sobre anistia, na Convenções e Tratados em que há previsão expressa do dever de julgar não há compatibilidade com o instituto da prescrição, pois este limitaria o exercício de tal obrigação pelo Estado. Nesse

mesmo sentido são aplicáveis a prescrição os comentários referentes ao efeito erga omnes das normas de jus cogens.

Ademais, evidencia Antonio Cassese (2003, p. 318) a incongruência que seria aplicar leis domésticas de prescrição para crimes internacionais, uma vez que seus efeitos são sentidos por toda a sociedade internacional e não só pelo Estado em que o crime foi perpetuado. Entender em sentido contrário seria uma negação a possibilidade da jurisdição universal, ao reconhecer que uma norma nacional pode limitar a universalidade da jurisdição, que encontra fundamento no direito internacional. Além disso, levaria a diversos conflitos de jurisdição, uma vez que por meio da avocação dos princípios fixadores de competência, seria possível o crime estar prescrito em um Estado e no outro não.

Na jurisprudência, encontramos casos ratificando a imprescritibilidade dos core

crimes tanto em cortes nacionais quanto internacionais. No caso Barbie, julgado pelo Cour de Cassation da França, a corte reconheceu o caráter costumeiro da norma de imprescritibilidade

dos crimes contra a humanidade (AMBOS, 2013, p. 428).

Com relação as cortes internacionais, no caso Barrios Altos junto a Corte IDH, para além de reconhecer a impossibilidade de anistia para os core crimes, também se reconheceu a incompatibilidade de normas de prescrição domésticas com tais crimes.

Apesar do aparente consenso com relação a imprescritibilidade desses crimes, alguns Estados ainda demonstram resistência em acompanhar a evolução das normas de direito internacional. É o caso, por exemplo, do Brasil em decisão de setembro de 2019 do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1798903.

O referido recurso especial buscava o destrancamento de ação penal contra agentes acusados de envolvimento no atentado do Riocentro durante a ditadura militar, conduta enquadrada como crime lesa-humanidade pelo Ministério Público Federal (MPF). O fundamento do MPF residiu justamente na tipificação da conduta como crime contra humanidade sendo, portanto, imprescritível segundo as normas de direito internacional.

Em que pese não ser possível extrair a ratio decidendi dessa decisão, alguns argumentos levantados pelos ministros em seus votos demonstram o total desrespeito dos julgadores frente a construção jurídica internacional. Dentre estes cabe evidenciar o reconhecimento da prescrição dos crimes contra humanidade cometidos, uma vez que o Brasil não ratificou a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade (1968), e a incompatibilidade, a priori, das normas de jus cogens de

prescrição com o ordenamento jurídico brasileiro, cabendo ao Supremo Tribunal Federal fazer esse juízo de adequação em caráter final.27

Os pontos levantados ao longo do voto vencedor, que foi acompanhado pelo voto de 5 ministros, sendo vencidos os ministros Rogerio Schietti e Sebastião Reis Júnior, despertam a preocupação da adequação dos ordenamentos pátrios as normas de direito internacional e aos posicionamentos proferidos pelas cortes internacionais.

Contudo, este caso do tribunal brasileiro, apesar de preocupante, não reflete o caminhar dos tribunais domésticos da maioria dos Estados quanto a aplicação da imprescritibilidade dos core crimes.

5.3 A PROBLEMÁTICA DA ANISTIA E DA PRESCRIÇÃO PENAL NA JUSTIÇA DE