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A responsabilidade e a culpabilidade no Direito Internacional Penal

O processo de internacionalização dos direitos humanos e a consequente aceitação dos indivíduos como detentores de personalidade e capacidade jurídica internacional não só possibilitou a sua proteção no âmbito internacional e o acesso a procedimentos supraestatais de proteção, mas também tornou possível a sua responsabilização por tribunais com base em normas de direito internacional.

Esse processo teve seu início no Pós-Segunda Guerra Mundial, onde não mais se considerou suficiente a aplicação de sanções aos Estados em razão de condutas criminosas, despontando um ideal de justiça internacional e de combate a impunidade dos perpetuadores de crimes internacionais.

Surge, pois, a questão de até onde vai a responsabilidade penal dos indivíduos por crimes internacionais. Para uma melhor compreensão desses limites, necessário se faz uma pequena digressão histórica desde os julgamentos do Tribunal de Nuremberg, que estabeleceram importantes paradigmas nesse campo, até o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.

O estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, aprovado em anexo a Carta de Londres de 1945, estabeleceu em seu artigo 6º a competência para julgar os perpetuadores de crimes seja como indivíduos ou enquanto membros de uma organização.

Nos artigos 7º e 8º trata do não cabimento de algumas exceções de responsabilidade, quais sejam: chefes de Estado e responsáveis oficiais de departamentos do governo não se eximem de responsabilidade; indivíduos que atuaram sob a ordem de um superior ou do governo também deveriam ser responsabilizados, mas suas penas poderiam ser reduzidas em razão disso.

Já os artigos 9º e 10º trazem previsões controversas, pois consideram que a mera participação em uma organização criminosa seria considerada um crime, independente do caráter voluntário ou não da participação. Caberia, portanto, ao Tribunal definir que organizações se enquadrariam no conceito de criminosas.

No andar dos julgamentos o TMIN acabou por descreditar a teoria “objetiva” deste tipo penal, reconhecendo que o enquadramento das organizações nesta categoria deveria ser pautado em princípios bem sedimentados e que o objetivo não seria de uma punição em massa, mas sim de identificar os verdadeiros culpados (CASSESE, 2003, p. 138).

As normas estatutárias e as decisões do TMIN serviram de paradigma para a implementação da responsabilidade penal individual e de uma teoria da culpabilidade em crimes internacionais. Nesse sentido, as Resoluções da ONU nº 95 e 117, aprovadas pela Assembleia Geral, respectivamente, consagraram os princípios do Estatuto do Tribunal de Nuremberg e definiram os sete princípios inferidos nos julgamentos, dentre eles a culpabilidade pessoal.

Os julgamentos Pós-Segunda Guerra Mundial e a posterior criação de diversos tribunais ad hoc pela ONU levantaram a necessidade de se estabelecer uma jurisdição centralizada e permanente, em âmbito internacional, surgindo assim o Tribunal Penal Internacional. O Estatuto de Roma, que o regulamenta, não só traz suas regras de funcionamento, como também contribuiu materialmente para a consolidação do Direito Internacional Penal, com ênfase no que diz respeito aos crimes e a culpabilidade e responsabilidade penal.

Segundo classificação de Kai Ambos (2013), as normas relativas à responsabilidade penal individual estão dispostas nos artigos 25, 28 e 30 e os excludentes de responsabilidade constam nos artigos 26, 27, 29 e 31-33. Nesse sentido, é no art. 30 que resta implícita a culpabilidade em matéria de crime internacional (CLEMENTINO, 2010, p. 61).

O Estatuto de Roma, em pleno compasso com a prática internacional que se estabelecia, seguiu diversos entendimentos consolidados nos julgamentos de Nuremberg e Tóquio. Por exemplo, a impossibilidade de alegar o cumprimento de ordens de superior ou do governo, bem como a irrelevância da qualidade oficial, como escusa de responsabilidade.

O artigo 25 disciplina a matéria da responsabilidade criminal individual, trazendo não só as hipóteses de autoria, como também de concurso de pessoas na prática dos crimes internacionais:

1. De acordo com o presente Estatuto, o Tribunal será competente para julgar as pessoas físicas.

2. Quem cometer um crime da competência do Tribunal será considerado individualmente responsável e poderá ser punido de acordo com o presente Estatuto.

3. Nos termos do presente Estatuto, será considerado criminalmente responsável e poderá ser punido pela prática de um crime da competência do Tribunal quem:

a) Cometer esse crime individualmente ou em conjunto ou por intermédio de outrem, quer essa pessoa seja, ou não, criminalmente responsável;

b) Ordenar, solicitar ou instigar à prática desse crime, sob forma consumada ou sob a forma de tentativa;

c) Com o propósito de facilitar a prática desse crime, for cúmplice ou encobridor, ou colaborar de algum modo na prática ou na tentativa de prática do crime, nomeadamente pelo fornecimento dos meios para a sua prática; d) Contribuir de alguma outra forma para a prática ou tentativa de prática do crime por um grupo de pessoas que tenha um objetivo comum. Esta contribuição deverá ser intencional e ocorrer, conforme o caso:

i) Com o propósito de levar a cabo a atividade ou o objetivo criminal do grupo, quando um ou outro impliquem a prática de um crime da competência do Tribunal; ou

ii) Com o conhecimento da intenção do grupo de cometer o crime;

e) No caso de crime de genocídio, incitar, direta e publicamente, à sua prática; f) Tentar cometer o crime mediante atos que contribuam substancialmente para a sua execução, ainda que não se venha a consumar devido a circunstâncias alheias à sua vontade. Porém, quem desistir da prática do crime, ou impedir de outra forma que este se consuma, não poderá ser punido em conformidade com o presente Estatuto pela tentativa, se renunciar total e voluntariamente ao propósito delituoso.

4. O disposto no presente Estatuto sobre a responsabilidade criminal das pessoas físicas em nada afetará a responsabilidade do Estado, de acordo com o direito internacional. (TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 1998) Nessa esteira, o artigo 3018 do referido instrumento estabelece os elementos psicológicos para configuração de responsabilidade penal, estabelecendo como imprescindível a existência de vontade de cometer o crime e conhecimento de seus elementos materiais. Assim, necessária se faz a intenção de praticar a conduta e de causar os efeitos dela decorrentes ou de estar ciente destes.

Conforme se pode verificar, é necessária a existência de dolo (“vontade de o cometer”) e conhecimento de que a conduta é típica (“conhecimento dos seus elementos materiais”) para configuração da responsabilidade do agente.

O artigo 27 do Estatuto de Roma prevê a sua aplicação “de forma igual a todas as pessoas sem distinção alguma baseada na qualidade oficial. Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo”. Assim, para fins da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, a priori, não há empecilho a aplicação da norma penal em razão de alegação de imunidade pessoal.

Todavia, segundo entendimento da Corte Internacional de Justiça no julgamento do Mandado de Prisão de 10 de abril de 2000, não há no direito costumeiro previsão de

18 Artigo 30. 1. Salvo disposição em contrário, nenhuma pessoa poderá ser criminalmente responsável e punida

por um crime da competência do Tribunal, a menos que atue com vontade de o cometer e conhecimento dos seus elementos materiais. 2. Para os efeitos do presente artigo, entende-se que atua intencionalmente quem: a) Relativamente a uma conduta, se propuser adotá-la; b) Relativamente a um efeito do crime, se propuser causá-lo ou estiver ciente de que ele terá lugar em uma ordem normal dos acontecimentos. 3. Nos termos do presente artigo, entende-se por "conhecimento" a consciência de que existe uma circunstância ou de que um efeito irá ter lugar, em uma ordem normal dos acontecimentos. As expressões "ter conhecimento" e "com conhecimento" deverão ser entendidas em conformidade.

flexibilização da imunidade dos Chefes de Estado e/ou Governo e dos Ministros das Relações Exteriores enquanto estes estão no exercício do cargo. Após a sua saída do cargo é pacífico o entendimento de que o agente poderá sofrer ação penal pelos atos praticados quando no poder (AMBOS, 2013, p.418 e 419).

Então, no exercício da jurisdição universal se faz necessário aplicar este entendimento, conforme se depreende da decisão negativa da corte espanhola com relação a possibilidade de julgamento de Fidel Castro enquanto este ainda era Chefe de Estado. (CASSESE, 2003, p. 272) O Estatuto também faz previsão expressa, em seu artigo 28, com relação a responsabilidade dos chefes militares e outros superiores hierárquicos, afastando, assim, o princípio da imunidade soberana ou da capacidade oficial (CLEMENTINO, 2010, p. 57):

Além de outras fontes de responsabilidade criminal previstas no presente Estatuto, por crimes da competência do Tribunal:

a) O chefe militar, ou a pessoa que atue efetivamente como chefe militar, será criminalmente responsável por crimes da competência do Tribunal que tenham sido cometidos por forças sob o seu comando e controle efetivos ou sob a sua autoridade e controle efetivos, conforme o caso, pelo fato de não exercer um controle apropriado sobre essas forças quando:

i) Esse chefe militar ou essa pessoa tinha conhecimento ou, em virtude das circunstâncias do momento, deveria ter tido conhecimento de que essas forças estavam a cometer ou preparavam-se para cometer esses crimes; e

ii) Esse chefe militar ou essa pessoa não tenha adotado todas as medidas necessárias e adequadas ao seu alcance para prevenir ou reprimir a sua prática, ou para levar o assunto ao conhecimento das autoridades competentes, para efeitos de inquérito e procedimento criminal.

b) Nas relações entre superiores hierárquicos e subordinados, não referidos na alínea a), o superior hierárquico será criminalmente responsável pelos crimes da competência do Tribunal que tiverem sido cometidos por subordinados sob a sua autoridade e controle efetivos, pelo fato de não ter exercido um controle apropriado sobre esses subordinados, quando:

i) O superior hierárquico teve conhecimento ou deliberadamente não levou em consideração a informação que indicava claramente que os subordinados estavam a cometer ou se preparavam para cometer esses crimes;

ii) Esses crimes estavam relacionados com atividades sob a sua responsabilidade e controle efetivos; e

iii) O superior hierárquico não adotou todas as medidas necessárias e adequadas ao seu alcance para prevenir ou reprimir a sua prática ou para levar o assunto ao conhecimento das autoridades competentes, para efeitos de inquérito e procedimento criminal. (TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 1998)

Nesse sentido, no que tange a responsabilidade por omissão, o Primeiro Protocolo Adicional da Convenção de Genebra, em seu artigo 86, parágrafo primeiro, também cristaliza tal possibilidade. Como já exposto, os tratados só são oponíveis, a priori, aos seus signatários,

contudo, diante da evolução da praxe internacional nesse sentido, se reconhece o seu caráter de princípio geral, independente da previsão convencional (CASSESE, 2003, p.201).

Segundo Cassese (2003, p. 205), há então o pressuposto de uma responsabilidade universal, que recai sobre qualquer comandante ou autoridade, de prevenir e suprimir condutas criminosas de seus subordinados, advindo daí a sua responsabilidade por omissão. Complementa ainda (p.208 e 2009), que os requisitos cumulativos para tanto são: exercício efetivo de comando, controle ou autoridade sobre os perpetuadores; ter conhecimento ou informações suficientes para inferir o cometimento do crime, ou, devido as circunstâncias, possuir o dever de saber; e ter falhado em prevenir ou reprimir a conduta criminosa.

Importante compreender também o instituto das excludentes. O TPI adota como maior idade penal 18 anos (art. 26) e estabelece a imprescritibilidade dos crimes lá tipificados (art. 29). Em seu artigo 31 traz rol de excludentes de responsabilidade, sendo em síntese: enfermidade ou deficiência mental, estado de intoxicação, estado de defesa própria ou de terceiro e coação em razão de ameaça iminente de morte ou grave dano para si ou outrem. Ademais, em seu parágrafo terceiro, estabelece que podem ser levadas em consideração outras excludentes, desde que em conformidade com o art. 21.

Com relação ao cumprimento de decisão hierárquica, o artigo 33 reconhece a isenção de responsabilidade criminal quando: houver uma obrigação legal de cumprir tal decisão, não tiver conhecimento do caráter ilegal da decisão ou a decisão não for manifestamente ilegal. Complementa ainda que decisões no sentido de cometer genocídio ou crime contra a humanidade são consideradas manifestamente ilegais para fins de aplicação da norma penal.

Como dito, o Estatuto de Roma atuou no sentido de codificar normas de direito costumeiro, delineadas por meio dos tribunais ad hoc e de tribunais nacionais em julgamentos de matéria internacional, assim, tais disposições devem ser levadas em consideração no exercício da jurisdição universal, objeto de estudo do presente trabalho.

4 A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO

Esclarecidos os principais aspectos acerca do princípio da universalidade da jurisdição, necessário se faz adentrar na análise e compreensão da justiça de transição, para que se possa, por fim, compreender a relação entre esses dois campos de estudo do direito internacional.

Segundo relatório do Secretário Geral da ONU, a justiça de transição pode ser compreendida como:

todos os processos e mecanismos associados as tentativas da sociedade de encarar um passado de abusos, de modo a garantir responsabilização, a justiça e a reconciliação. Isso pode incluir tanto mecanismos judiciais quanto não- judiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou até mesmo nenhum) e julgamentos, reparações, busca pela verdade, reforma institucional, verificações e demissões, ou uma combinação dos mesmos. (2004, p.4) (tradução livre)19

Nesse mesmo sentido, Ruti Teitel (2014, p. 49) define a justiça transicional como um “conceito de justiça associado a períodos de mudança política, caracterizada por respostas legais as transgressões de um regime antecessor opressor” (tradução livre) 20.

Já o International Center for Transitional Justice (ICTJ) traz a seguinte definição: “é a forma como os Estados que emergem de um período de conflito e repressão lidam com violações de direitos humanos sistemáticas e em larga escala tão numerosas e graves que o tradicional sistema judiciário não será capaz de prover resposta adequada” (tradução livre)21.

Estabelecer uma definição para este instituto, todavia, ainda apresenta grandes dificuldades. Cada Estado que adentra nesse processo o faz de forma diferente, por razões particulares de sua realidade social, adotando diferentes mecanismos para atingir seus objetivos, os quais também podem variar, em que pese o objetivo geral ser, via de regra, a quebra com o regime anterior.

Em linhas gerais, e para fins de aplicação no presente trabalho, depreende-se que a justiça de transição é característica de períodos pós-conflito, ou até mesmo durante estes, em

19“The notion of ìtransitional justiceî discussed in the present report comprises the full range of processes and

mechanisms associated with a societyís attempts to come to terms with a legacy of large-scale past abuses, in order to ensure accountability, serve justice and achieve reconciliation. These may include both judicial and non-judicial mechanisms, with differing levels of international involvement (or none at all) and individual prosecutions, reparations, truth-seeking, institutional reform, vetting and dismissals, or a combination thereof.”

20 “Transitional justice can be defined as the conception of justice associated with periods of political change,

characterized by legal responses to confront the wrongdoings of repressive predecessor regimes”

21 “the ways countries emerging from periods of conflict and repression address large scale or systematic human

rights violations so numerous and so serious that the normal justice system will not be able to provide an adequate response.”

que há o objetivo de restaurar o rule of law. A definição, portanto, reside na finalidade máxima por trás desse processo e que se mostra comum aos Estados que já passaram pela justiça transicional.

Assegurar a retomada do rule of law implica dizer que todas as pessoas e instituições devem ser responsabilizadas, em razão de seus atos, perante a lei, bem como a supremacia da lei frente a atos discricionários do poder público. Implica também em assegurar não só a legislação interna, mas também as normas de direito internacional, com ênfase nas que dizem respeito a proteção de direitos humanos e nos core crimes.

Esse processo de transição, no âmbito interno, é marcado por uma grande mudança política, sendo difícil distanciar as medidas tomadas no período pós-conflito dos jogos políticos que podem ameaçar o estabelecimento da paz. No âmbito internacional, todavia, percebe-se um maior distanciamento dos dilemas políticos, assegurando a imparcialidade na análise de possíveis medidas e vislumbrando precipuamente a proteção dos direitos humanos.

A compreensão da justiça de transição também perpassa pelos direitos das vítimas, os quais devem ser observados ao longo de todo o processo: o direito a verdade, o direito a justiça (de ter acesso ao sistema judiciário ou outra modalidade que possibilite a satisfação de suas demandas) e a reparação (que inclui restituição, compensação, reabilitação, satisfação e reestabelecimento de seus direitos). (AMBOS, 2009, p. 35 a 39)

As medidas cabíveis para tanto, consoante sinaliza o Relatório da ONU (2004), podem ser judiciais ou não. Assim, esse período pode ser mercado, por exemplo, pela promulgação de uma nova Constituição, por sentenças penais e cíveis condenatórias, pela edição de leis de anistia, por investigações em diversos níveis de poder e instituição e elaboração de relatórios pela Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR).

Assim, resta evidente que cada Estado opta pela adoção de diferentes mecanismos ao longo do processo de transição, o que impossibilita o estabelecimento de um modelo padrão a ser seguido por todos os Estados, mas, por outro lado, permite que esse processo seja personalizado e adequado especificamente para a realidade daquela localidade, possibilitando uma maior eficácia das medidas adotadas.

O desenvolvimento da justiça de transição pode ser dividido em três fases: (i) Pós- Segunda Guerra Mundial, momento em que foi compreendida também como um processo internacional, (ii) Pós-Guerra Fria, que foi marcada pelo movimento de democratização dos Estados, e (iii) Steady-state, caracterizada pelo controle normativo da violência. (TEITEL, 2014, p.50)