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A justiça de transição tem se desenvolvido na busca pelo equilíbrio entre a reconciliação nacional, com a consequente restruturação do rule of law, e a salvaguarda dos direitos das vítimas. Para tanto, na história pode-se identificar as três fases pelas quais essa justiça passou em busca de estabelecer os alicerces do que é necessário e eficiente para atingir os seus objetivos. Nesse sentido, importante compreender o conceito de justiça, segundo Relatório do Secretário Geral da ONU:

Para as Nações Unidas, “justiça” é um ideal de responsabilidade e integridade na proteção e reclamação de direitos e na prevenção e punição dos erros. Justiça implica o cuidado com os direitos humanos do acusado, com os interesses das vítimas e com o bem-estar da sociedade como um todo. É um conceito enraizado em todas as culturas e tradições e, enquanto sua aplicação normalmente implica o uso mecanismos judiciais formais, mecanismos tradicionais de resolução de dispostas são igualmente relevantes. A sociedade internacional tem trabalhado coletivamente para articular os requisitos materiais e procedimentais para a administração da justiça por mais de meio século. (2004, p.4)22 (tradução livre)

A preocupação da justiça transicional é, portanto, não consolidar uma vingança ou punição arbitrária dos participantes do regime anterior, pelo contrário, seu compromisso é com a justiça, devendo haver a proteção de todos os envolvidos no processo de reconciliação, seja por meio judicial ou não.

Desse processo surgem alguns dilemas, como já suscitado em linhas gerais nos tópicos acima e que agora será pormenorizado.

Um dos grandes dilemas que pode ser identificado diz respeito a responsabilização penal: seria ela necessária? Quem deve ser responsabilizado: os que estão no topo da hierarquia e planejaram os atos, ou os que efetivamente os executaram? Todos devem ser responsabilizados ou deve-se selecionar responsáveis específicos?

22 “For the United Nations, ‘justice’ is an ideal of accountability and fairness in the protection and vindication of

rights and the prevention and punishment of wrongs. Justice implies regard for the rights of the accused, for the interests of victims and for the well-being of society at large. It is a concept rooted in all national cultures and traditions and, while its administration usually implies formal judicial mechanisms, traditional dispute resolution mechanisms are equally relevant. The international community has worked to articulate collectively the substantive and procedural requirements for the administration of justice for more than half a century.”

Na esteira do ensinamento de Ruti Teitel (2014, p. 156 e 158), o processo judicial tem se mostrado uma das principais respostas da justiça transicional, uma vez que atende as aspirações de publicidade dos fatos ocorridos, contribuindo pra construção da narrativa histórica e corrobora de forma enfática a mudança política na construção de uma ordem democrática, sendo assim uma forma de legitimação do novo governo.

Apesar de uma vertente dos estudiosos advogarem que os julgamentos podem prejudicar o reestabelecimento democrático ou de alguma forma colaborar com a perpetuação da violência, de acordo com pesquisa publicada por Sikkink e Walling (2007), na América Latina o que se percebe é justamente o contrário, tendo ocorrido na realidade uma melhora de índices associados a direitos humanos.

Ainda segundo as pesquisadoras (2007, p. 437), 14 (quatorze) países latino-americanos realizaram julgamentos de direitos humanos durante o processo de transição, de modo que os 7 (sete) países que possuíram maior índice de julgamentos obtiveram uma melhora de 0.9 pontos na Political Terror Scale (PTS), enquanto os demais, com menor número de julgamento, obtiveram uma melhora de apenas 0.3. Assim, percebe-se que há uma relação factível, comprovada por dados empíricos, entre a persecução penal dos indivíduos durante o novo regime e o fortalecimento do rule of law e da proteção dos direitos humanos na região.

Além disso, importa observar ainda que os Estados da América Latina que possuíram Comissão da Verdade e realizaram julgamentos apresentaram um índice de melhora na escala PTS superior aos que apenas realizaram julgamentos ou constituíram CVR (SIKKINK; WALLING, 2007, p. 437). Não há que se falar, então, na superioridade de um método sob o outro, uma vez que isoladamente ambos se mostram insuficientes, mas sim em formas de alinhar estes mecanismos em prol da justiça de transição.

O caso do Brasil também apresenta importante argumento na construção da relevância dos julgamentos na justiça transicional, uma vez que foi o único país da América Latina que não realizou julgamentos no novo governo. Na escala PTS, a pontuação do Brasil era de 3.2 nos 5 (cinco) anos antecedentes a transição e saltou para uma média de 4.1 no marco de 10 anos da transição democrática (SIKKINK; WALLING, 2007, p. 437).

Esse dado demonstra que o processo transicional per si é insuficiente para assegurar a proteção dos direitos humanos e reconciliação nacional, ainda que resulte em um novo governo democrático, de modo que é essencial que sejam observados os direitos das vítimas e a responsabilização dos indivíduos.

A importância do julgamento, em se tratando de crimes internacionais, transcende, inclusive, o âmbito nacional e permeia a efetividade e coercibilidade do direito internacional

penal. Além disso, reforça também os valores universais defendidos pela sociedade internacional, inserindo o novo regime nas relações com as demais nações ao assegurar, por exemplo, a dignidade da pessoa humana.

Neste campo, há de se questionar também até onde vai a legitimidade do judiciário para julgar tais casos quando as instituições estão de alguma forma implicadas nos crimes cometidos, sem que tenha havido uma efetiva reforma destas após a transição. Esse foi o caso, por exemplo, de diversos países latino-americanos, os quais pela ausência de legitimidade do judiciário ao julgarem certas condutas, acabavam por deslegitimar o próprio julgamento em si. (TEITEL, 2002, p. 57)

Essa preocupação é essencial, uma vez que, consoante o conceito de justiça apresentado, devem ser observados não só os direitos das vítimas, mas também o dos acusados e o bem-estar social. Um julgamento realizado por corte suspeita, em que não se é possível assegurar o devido processo legal e a imparcialidade judicial, sem sombra de dúvidas vai de encontro aos direitos humanos do acusado. Além disso, também não efetiva o ideal de transição das más práticas do regime anterior para a nova ordem democrática social, uma vez que não há legitimidade no julgamento.

A necessidade e relevância do julgamento não são motivos suficiente para que este se dê a revelia de garantias fundamentais do indivíduo. Nesse sentido, a jurisdição universal passa a exercer um importante papel na colaboração para uma efetiva justiça transicional, visto que as cortes estrangeiras não enfrentam a problemática da suspeição de sua legitimidade, assim como os tribunais ad hoc e o Tribunal Penal Internacional também não.

Estabelecida a importância do julgamento, é preciso se questionar acerca de quem deve ser efetivamente responsabilizado. No campo do direito internacional penal, com base nos fundamentos apresentados no capítulo anterior, é pacífica a ideia da responsabilização do superior hierárquico pelos crimes cometidos por seus subordinados.

Essa diretriz na atribuição de responsabilidade nos crimes internacionais se faz de extrema relevância para evitar o afogamento do judiciário com demandas extremamente semelhantes cometidas por diferentes agentes. Ora, em um crime contra a humanidade, por exemplo, diversas são as partes envolvidas na prática, indo desde os atos preparatórios até a execução de cada detalhe, de modo que todos possam ser responsabilizados.

Todavia, no campo da justiça de transição há a necessidade de se estabelecer uma narrativa histórica bem delimitada acerca das violências cometidas. Assim, de pronto julgar todos os envolvidos pode gerar uma morosidade danosa a reconstrução do rule of law e falhar

com o propósito de reconciliação nacional ao não permitir a devida apuração das condutas em um tempo razoável.

Nesse sentido, o ICTJ apregoa que “uma estratégia processual efetiva para crimes em larga escala normalmente se foca nos planejadores e organizadores desses crimes, ao invés dos indivíduos de baixa patente e responsabilidade” (tradução nossa)23. O objetivo de tal estratégia,

como exposto, é evitar o afogamento do judiciário com o alto número de demanda e assegurar que não haverá uma “impunity gap” em razão disso.

Por isso não se entende que devam ser feitos julgamentos seletivos, em que com uma certa dose de discricionariedade se decide quem deve ou não enfrentar um processo criminal, mas sim que a prioridade das investigações e denúncias devem se voltar para os idealizadores dos crimes e que possuíam efetivamente poder de mando com relação a sua execução.

A vedação as selective prosecutions policy se dá em razão de sua ameaça aos valores e propósitos do rule of law, que não deve ser fundado em seletividade, como normalmente ocorre em regimes autoritários e totalitários, mas sim na igualdade de todos perante a lei, que deve sempre ser aplicada de forma uniforme.

Além disso, as investigações não devem apenas visar os agentes de alta patente hierárquica, mas também aqueles que cometeram os crimes mais graves (os core crimes), independente do seu poder de mando. Como exposto, para atingir a reconciliação nacional é necessária a construção de uma narrativa histórica transparente acerca das violências cometidas, assim, não basta o reconhecimento das lideranças que perpetuaram tais condutas, sob pena desse processo virar uma efetiva “caça as bruxas”, mas também o reconhecimento das condutas

per si, que devem ser responsabilizadas independente de quem foram os seus perpetuadores.

Resta evidente que alguns dos principais desafios enfrentados pela justiça de transição, partindo do pressuposto aqui estabelecido da relevância e imprescindibilidade dos julgamentos, são: (i) legitimidade das instituições nacionais ao investigarem e punirem agentes do governo anterior, (ii) barreiras ao exercício jurisdicional, como prescrições, anistias e outros mecanismos que impossibilitem ou dificultem a persecução penal, e (iii) seletividade na responsabilização desses indivíduos.

Nesse sentido, há que se compreender como a jurisdição universal pode atuar em prol do desenvolvimento de julgamentos legítimos perante a comunidade nacional e internacional, corroborando assim para o processo de justiça transicional.

23 “Effective prosecution strategies for large-scale crimes often focus on the planners and organizers of crimes,

5 A RELAÇÃO DA JUSRIDIÇÃO UNIVERSAL E A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO

A jurisdição universal é uma importante ferramenta da justiça de transição. O princípio da universalidade da jurisdição, em semelhança ao processo de construção dos crimes contra a humanidade no direito internacional penal, surge de uma necessidade de expandir e assegurar a agenda internacional no campo da proteção dos direitos humanos e das noções coletivas da humanidade. Assim, as punições aplicáveis nesse âmbito se distanciam dos antigos julgamentos políticos, que careciam de fundamento jurídico, e buscam por meio das normas de jus cogens aplicar normas consolidadas no campo internacional.

Assegurar o exercício dessa jurisdição é também uma forma de garantir a efetividade e coercibilidade do próprio direito internacional penal, que ao não ser efetivado pelo país que,

a priori, teria a obrigação natural, em razão do tradicional elemento de fixação de competência

(territorialidade), poderá ser exercida por um Estado terceiro. Como dito alhures, essa é uma jurisdição subsidiária, não tendo como objetivo impor a jurisdição de um Estado terceiro sob a do Estado de origem e nem interferir ou ditar normas quanto ao processo transicional do país.

Ao compreender esse princípio a luz da justiça de transição, percebe-se que o processo de transição acaba, por vezes, sacrificando algumas normas de direito criminal, no que diz respeito a responsabilização penal, em nome da paz e da reconciliação nacional. Se, por um lado, esse processo pode ser feito dentro dos parâmetros do direito consuetudinário e convencional, ao se limitar a anistia de condutas não tuteladas pelo direito internacional, por outro, esse processo pode esbarar nas normas internacionais ao anistiar condutas enquadradas nos core crimes.

Não só a edição de tais leis limita o alcance jurisdicional sob condutas típicas, mas as Comissões da Verdade e Reconciliação por vezes são adotadas como forma alternativa a judicialização, ao invés de atuar de forma complementar. Assim, é essencial que, nesses casos, hajam medidas compensatórias da perda ou déficit de justiça enfrentada pelas vítimas e seus familiares (AMBOS, 2009, p.44), sob pena de violar o direito de acesso à justiça.

A jurisdição universal, então, se presta a garantir a responsabilização por tais condutas vilipendiadores do direito internacional penal, quando, por exemplo, o Estado não o pode fazer em razão de uma lei de anistia. Nesse mesmo sentido, outra preocupação que encontra na universalidade da jurisdição resguardo é a que diz respeito as prescrições determinadas em leis nacionais com relação a crimes considerados imprescritíveis pelo direito internacional.

Segundo Antonio Cassese (2003, p. 312), dois dos principais obstáculos que as legislações nacionais impõem ao estabelecimento de processos com relação a crimes

internacionais são justamente as leis de anistia e normas de prescrição, de modo que ambos vão ser objeto de análise no presente capítulo.