Demonstrações Matemáticas – Parte 1
Uma afirmação matemática não provada é chamada de uma conjectura. Depois de pro-vada, ela passa a ser chamada de teorema (ou lema ou corolário). O objetivo desta aula é mostrar como provar/demonstrar uma conjectura.
Nesta aula, vamos focar em conjecturas que descrevem propriedades válidas para um grande número de valores. Segue um exemplo:
“Para todo inteiro a, temos: se a é par, então a2 é par”
Nesta afirmação, a pode ser qualquer dos infinitos valores inteiros (do conjunto Z). A conjectura acima só é verdadeira se, substituindo todos esses valores, tivermos sempre afirmações (mais simples) verdadeiras. Por exemplo:
“se 0 é par, então 02 é par” (verdade)
“se 1 é par, então 12 é par” (verdade, porque a condição é falsa)
“se 2 é par, então 22 é par” (verdade)
“se 3 é par, então 32 é par” (verdade, porque a condição é falsa)
“se 4 é par, então 42 é par” (verdade)
...
Uma maneira de provar que uma conjectura está errada consiste simplesmente em mos-trar um valor em que ela falha. Isso é chamado de uma prova por contra-exemplo. Na verdade, isso seria uma prova da negação da conjectura inicial!
Porém, como provar que uma dada conjectura P é verdadeira?
Para valer em todos os casos, o ideal é demonstrar a veracidade de conjecturas desse tipo usando argumentos lógicos. Na aula passada vimos algumas demonstrações sim-ples e explicamos, que, em essência, uma demonstração de uma afirmação P consiste em seguir um processo de inferência lógica em que:
• As premissas do argumento (da demonstração) são: as definições com seus axi-omas, e os teoremas (afirmações já provadas).
• A conclusão desejada é P, ou seja, a própria afirmação que queremos provar. Vamos chamar esta “conclusão desejada” de objetivo.
Porém, existem métodos de demonstração que acrescentam premissas adicionais e definem um novo objetivo (diferente de P), geralmente mais simples. Fazendo uma analogia com variáveis de programação imperativa, poderíamos chamar essas premissas e objetivos adicionais de “locais”, no sentido de que valem apenas no contexto da de-monstração.
Se provar teorema é um jogo, um método de prova é como uma mudança temporária nas regras de jogo, mas que garante o mesmo resultado. Assim, se, partindo das premis-sas adicionais, você conseguir concluir o novo objetivo (ou seja, se você resolver o jogo
alterado), a conjectura P é dada como provada (você resolve o jogo original).
Vamos começar vendo o método de prova alternativo mais simples, que é a prova dire-ta. Depois, veremos uma variação deste método.
1. Prova Direta
Aplica-se a teoremas que podem ser entendidos logicamente como P → Q. Vamos usar esta nomenclatura para identificar as partes desses teoremas:
• P é a condição
• Q é o resultado
Textualmente, na Matemática, estes teoremas podem ser escritos assim:
• Q é verdade, se P é verdade
• P é condição suficiente para Q
• Q é condição necessária para P
Sem nenhum método, a demonstração da afirmação P → Q deveria ser montada assim:
• Premissas: definições, axiomas, etc.
• Conclusão desejada: P → Q
Porém, na prova direta, esta estrutura de demonstração muda para:
• Premissas: definições, axiomas, etc. (deixadas subentendidas),
• Premissa temporária (hipótese): P
• Conclusão desejada temporária (objetivo): Q
Assumindo P como “premissa temporária” (hipótese) e chegando à conclusão Q, você pode considerar que foi provado P → Q. Abaixo, resumimos este método:
A prova direta de um objetivo P→Q consiste em criar um argumento lógico estrutura-do assim:
• Assumir (acrescentar) a hipótese P
• Trocar o objetivo para Q
Exemplo 1: Provar, usando apenas os axiomas dos inteiros, esta conjectura para todo a inteiro: “se a < 0, então (-a) > 0”
Para provar pelo método básico, deveríamos criar um argumento de demonstração com esta estrutura:
• (Premissas que não precisam ser declaradas: Os axiomas dos números inteiros, vistos na aula passada.)
• Objetivo: “Se a < 0, então (-a) > 0”
Porém, usando a prova direta, a estrutura da demonstração será esta:
• Hipótese (premissa temporária): “a < 0”
• Objetivo: “(-a) > 0”
Nesta disciplina, não precisa citar todas premissas. No início, basta dizer qual a hi-pótese, com alguma frase como “seja <hipótese>” ou “assumindo que <hipótese>”.
Então, desenvolva um argumento que conclua o objetivo. A prova completa ficará assim:
Demonstração (prova direta):
Seja a um inteiro, tal que que:
a < 0
Pelo axioma do oposto aditivo, existe um inteiro (-a). Somando-o a ambos os
la-dos:
(-a)+a < (-a)+0
Usando os axiomas, podemos simplificar cada um dos lados, chegando a:
0 < (-a)
Mas isso é o mesmo que:
(-a) > 0
(Chegamos exatamente à afirmação que tínhamos como objetivo). (Provado).
Nos exemplos iniciais, apenas por questões didáticas, vamos indicar a hipóteses e o ob-jetivo (indicados pelo método) que vamos usar para estruturar uma demonstração.
Veremos mais alguns exemplos de prova direta a seguir. Nos próximos exemplos, con-sidere as seguintes definições:
• n é um número par sse n = 2k para algum k ∈ Z
• n é um número ímpar sse n = 2k+1 para algum k ∈ Z
Exemplo 2: Provar que (nos inteiros) “Se x e y são números pares, então x+y é par”. Uma prova direta consiste em estruturar a demonstração desta forma:
• Hipótese: x e y são números pares
Demonstração (prova direta):
Sejam x e y dois números pares. Pela definição de número par, concluímos que:
x = 2k1, onde k1 é algum inteiro
y = 2k2, onde k2 é algum inteiro
Somando os lados correspondentes das duas equações acima, obtemos:
x+y = 2k1 + 2k2
= 2(k1 + k2)
Como k1 e k2 são inteiros, a soma deles também é. Seja essa soma representada
pela (nova) variável k3:
k3 = k1 + k2
Pelo fechamento dos inteiros para a adição (veja os axiomas dos inteiros),
sa-bemos que k3 é inteira.
Assim, podemos reescrever a equação anterior, para x+y, assim:
x+y = 2k3, onde k3 é inteiro
Vemos que x+y satisfaz a definição de par, logo:
x+y é par.
(Provado).
Exemplo 3: Provar que (para n inteiro): “Se n é par, então n2 é par”. Uma prova direta consiste em estruturar a demonstração desta forma:
• Hipótese: n é par
• Objetivo: n2 é par
Demonstração (prova direta):
Seja n um número par. Pela definição de número par, podemos afirmar que:
n = 2k1, onde k1 é um inteiro
Elevando ambos os lados da equação acima ao quadrado temos:
n2 = 4k12
= 2.(2k12)
Seja a nova variável k2=2k12. Pela propriedade de fechamento dos inteiros para
a multiplicação, sabemos que k2 é inteira. Assim, podemos reescrever a equação
anterior como:
n2 = 2k2, onde k2 é inteiro
Exemplo 4: Provar que (nos inteiros) “Se 0 < a < b, então a2 < b2”. (Qual a hipótese e qual objetivo da demonstração abaixo?)
Demonstração (prova direta):
Seja a um inteiro tal que 0 < a < b.
Esta hipótese, na verdade, envolve duas inequações:
0 < a
a < b
Como a é positivo (primeira inequação), ao multiplicar a por ambos os lados da
segunda inequação, temos:
a2 < ab
Como b é maior do que a (segunda inequação), b também é positivo. Agora,
multiplicando a segunda inequação por b, obtemos:
ab < b2
Por transitividade entre estas duas últimas inequações, concluímos que:
a2 < b2
(Provado).
Vamos voltar a discutir demonstração de teoremas como um “quebra-cabeça” ou outro “jogo single-player” (tal como discutimos na aula anterior). Neste caso, um método de prova oferece a você a oportunidade de mudar (parcialmente) as peças do quebra-cabeça ou as regras do jogo.
Para ilustrar, imagine um quebra-cabeça que, se você montar, ele forma duas figuras, uma em cada face. Também suponha que uma das figuras seja muito confusa para você. Usar um método de prova seria como virar as peças do quebra-cabeça para que você monte a figura que está do outro lado. Quando você montar esta segunda figura, auto-maticamente, a primeira figura estará montada também!
2. Prova (Direta) pela (Forma) Contrapositiva
Assim como a prova direta, este método também se aplica a teoremas P → Q. (Na ver-dade, este método pode ser visto como um tipo de prova direta também).
Ele se baseia nesta equivalência lógica: P→Q ≡¬¬¬¬Q→¬¬¬¬P .
• Procure no material complementar ou prove por tabela-verdade você mesmo!
• Dizemos que a proposição ¬¬¬¬Q →¬¬¬¬P é a forma contrapositiva da proposição P → Q e vice-versa. Dai vem o nome deste método.
Com base nessa equivalência, podemos dizer que provar a afirmação P → Q é o mesmo
que provar ¬¬¬¬Q→¬¬¬¬P. Assim, se estiver difícil provar a afirmação P → Q pela prova
direta, você pode tentar uma prova direta da forma contrapositiva ¬¬¬¬Q→¬¬¬¬P. Podemos resumir essa ideia assim:
A prova pela contrapositiva de um objetivo P→Q consiste em criar um argumento com esta forma:
o Assumir (acrescentar) a hipótese ¬¬¬¬Q
o Trocar o objetivo para ¬¬¬¬P
Esse tipo de demonstração também pode ser chamado de:
• demonstração por transposição
• demonstração por contraposição
• demonstração da contra-recíproca.
Exemplo 1: Provar o teorema “(Para todo n inteiro:) Se 3n+2 é ímpar, então n é ím-par”.
Observe que a forma contrapositiva seria: “Se n não é ímpar, então 3n+2 não é
ímpar”. Assim, uma prova “direta” deste novo enunciado seria estruturada assim:
• Hipótese: n não é ímpar
Demonstração pela contrapositiva:
Seja n um inteiro não ímpar qualquer.
Como n é inteiro e não é ímpar, n só pode ser par. (Isso será provado nos
exer-cícios). Pela definição de número par:
n = 2.k1 , onde k1 é um inteiro
Vamos usar isso para desenvolver a expressão 3n+2:
3n+2 = 3(2k1) + 2
= 6k1 + 2
= 2(3k1+1)
Agora, seja k2 = 3k1+1. Vemos que k2 é inteira pois é definida como uma soma e
um pro duto de inteiros (pelo fechamento de Z para multiplicação e adição). A
equação anterior fica assim:
3n+2 = 2.k2 , onde k2 é um inteiro
Logo, 3n+2 é par.
Isso implica em afirmar que 3n+2 não é ímpar (que era nosso objetivo).
(Provado).
A demonstração acima “automaticamente” prova a afirmação inicial (“se 3n+2 é ímpar, então n é ímpar”), mas isso não precisa ser dito explicitamente! Também não
precisa-mos escrever a forma contrapositiva do teorema no início. Um bom matemático enten-derá tudo, sem problemas.
A seguir, faremos uma prova de maneira mais sucinta.
Exemplo 2: Provar que (para n inteiro): “Se n2 é par, então n é par”. (Qual a estrutura desta demonstração?)
Demonstração pela contrapositiva:
Seja n um inteiro não par. Como n não é par, n é impar. Pela definição de ímpar:
n = 2.k + 1, onde k é inteiro
Elevando ambos os lados ao quadrado:
n2 = (2k + 1)2
n2 = 4k2 + 4k + 1
Agora, vamos definir a seguinte variável inteira:
m = 2k2+ 2k
Sabemos que m é inteira porque ela é definida usando apenas multiplicação e
adi-ção de inteiros.
Substituindo na equação de n2, temos:
n2 = 2m + 1
Logo, pela definição de ímpar, n2 é ímpar. Isso nos permite afirmar que:
n2 não é par
(Provado).
Para finalizar, não queremos que você entenda este tipo de prova como um método re-almente “novo”. Afinal de contas, o que fazemos nele é:
1. Reinterpretar logicamente uma afirmação P→Q como ¬Q→¬P. 2. Aplicar uma prova direta sobre esta nova interpretação.
Na próxima aula de demonstrações, veremos um método mais “novo” e mais poderoso.
“Todo aquele que pratica o mal, odeia a luz e não se aproxima da luz,
a fim de não serem argüidas as suas obras”