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GAMBIARRAS, TRAMOIAS CENAS E ESQUEMAS PRÁTICA DOCENTE, COTIDIANO E MEMÓRIA NA ESCOLA DE TEATRO MARTINS PENNA

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Academic year: 2021

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DOUTORADO EM EDUCAÇÃO

HEITOR COLLET

GAMBIARRAS, TRAMOIAS CENAS E ESQUEMAS

PRÁTICA DOCENTE, COTIDIANO E MEMÓRIA NA ESCOLA DE TEATRO MARTINS PENNA

NITERÓI 2017

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GAMBIARRAS, TRAMOIAS CENAS E ESQUEMAS

PRÁTICA DOCENTE, COTIDIANO E MEMÓRIA NA ESCOLA DE TEATRO MARTINS PENNA

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação, sob orientação da Profª Drª Maria Teresa Esteban e co-orientação do Profº Drº Rodrigo Torquato da Silva.

NITERÓI 2017

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C383 Collet, Heitor.

Gambiarras, tramoias, cenas e esquemas: prática docente, cotidiano e memória na Escola de Teatro Martins Penna / Heitor Collet – 2017.

275 f.

Orientadora: Maria Teresa Esteban do Valle. Co-orientador: Rodrigo Torquato da Silva.

Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2017.

Bibliografia: f.207-210.

1. Prática docente 2. Pesquisa visceral 3. Escola de Teatro Martins Penna. I. Esteban, Maria Teresa; Silva, Rodrigo Torquato da. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título.

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A minha avó querida Gleitze. A professora Regina Leite Garcia.

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da Escola Municipal Joaquim da Silva Peçanha; Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense – UFF; ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ; Ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; À Prefeitura Municipal e a Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias; à Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Social do Estado do Rio de Janeiro – SECTIDS/RJ; à Secretaria de Estado de Cultura do Estado do Rio de Janeiro – SEC/RJ; à Fundação de Apoio à Escola Técnica – FAETEC; à Fundação Anita Mantuano de Artes do Estado do Rio de Janeiro – FUNARJ; à Fundação Carlos Chagas de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ; à Biblioteca Nacional; à Fundação Casa de Rui Barbosa; ao Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado do Rio de Janeiro – SATED/RJ.

À minha trinca superfantástica de orientação – profª. drª. Regina Leite Garcia (in memoriam), profª. drª. Maria Teresa Esteban e profº. drº. Rodrigo Torquato da Silva; às profsª. drsª. Elza Maria Ferraz de Andrade e Luciana Pires Alves; profsº drsº Carlos Eduardo Ferraço e Wallace de Deus Barbosa.

Ao grupo de pesquisas Alfavela/UFF; aos colegas da turma do doutorado; aos colegas da orientação coletiva e do grupo de pesquisa em Avaliação.

Aos meus amigos e amigas pelas trocas potentes, ajudas e aprendizados ao longo da vida, em especial a: Vílson Sebastião, Orlando Djoko Chemane, Luiz Costa-Lima Neto, Marcelo Reis, George Ritter, Luciano Loureiro, Daniele Geammal, Ana Paula Brasil, Vera Lopes, Charles Kahn, Mario Mendes, Christiane Messias, Régis Argüelles, Vanise Dutra, Edna Olímpia, Adriano Batista, Luam Paranatinga, Wesley Cardozo, Renata Batista e Rafael Lage (in memoriam).

À minha família, meus pais, filhos e irmãos;

Em especial, minha companheira Sylvia Pessôa pelo carinho, parceria e atenção constantes e fundamentais.

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Professor Girafales: Suponhamos que seu pai

ganhe 50 mil por dia. Quanto ganharia em um mês?

Chiquinha: Entre 4 e 5 milhões. Professor Girafales:

Não, Chiquinha. Cinquenta mil por dia vai dar 1 milhão e 500 mil por mês...

Ah, deixa pra lá, Você não entende mesmo de multiplicação!

Chiquinha:

E o senhor não entende nada de trambiques do meu pai.

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Programa de Pós-Gaduação em Educação da Universidade Federal Fluminense – UFF, no campo dos Estudos do Cotidiano e da Educação Popular, com orientação das profsª. drsª. Regina Leite Garcia (in memoriam) e Maria Teresa Esteban, e co-orientação do profº drº Rodrigo Torquato da Silva. O trabalho trata de uma pesquisa que se debruça e objetiva discutir questões e reflexões que permeiam a prática docente na escola pública. Nesse sentido, fundamenta-se metologicamente tendo o professor-pesquisador sincronicamente como sujeito e objeto da pesquisa visceral, a partir da análise de alguns de seus percursos de formação e, sobretudo, a partir das suas escavações e vivências, respectivamente, na memória e no cotidiano da Escola de Teatro Martins Penna – hoje Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna –, centenária instituição que é apontada como a primeira escola pública de teatro do Brasil e a mais antiga escola pública de teatro em atividade na América Latina. Para tanto, além de investir em observações, conversas e experiências que se deram in loco no dia a dia da Escola de Teatro por um período aproximado de quatro anos (2014-2017), dedicou-se também a explorar e analisar uma centena de fontes documentais, reunidas nos arquivos vigentes da instituição, nas matérias de periódicos disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional e no Centro de Memórias Luiza Barreto Leite – instalado na prória Escola. Por conseguinte, com a finalidade de impetrar algumas formulações teóricas, serve-se de um debate que aciona e articula ideias postuladas por Frantz Fanon, Jacques Rancière, John Dewey e Paulo Freire, dentre outros pensadores, tendo construção de conhecimento, hierarquia das inteligências, unidade de experiência e materialidade como conceitos centrais do tratado. Conclui com proposições que associam os conceitos de ausência e compromisso para pensar prática docente na escola pública com as classes populares e, em especial, na centenária Escola de Teatro Martins Penna.

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del Programa de Post-Gaduación en Educación de la Universidad Federal Fluminense - UFF, en el campo de los Estudios del Cotidiano y de la Educación Popular, con orientación de las profs. Drsª Regila Leite Garcia (in memoriam) e Maria Teresa Esteban, e co-orientación de lo profº drº Rodrigo Torquato da Silva. El trabajo trata de una investigación que se centra y objetiva discutir cuestiones y reflexiones que permean la práctica docente en la escuela pública. En ese sentido, se fundamenta metológicamente teniendo el profesor-investigador sincronicamente como sujeto y objeto de la investigación visceral, a partir del análisis de algunos de sus recorridos de formación y, sobre todo, a partir de sus excavaciones y vivencias, respectivamente, en la memoria y en el cotidiano De la Escuela de Teatro Martins Penna - hoy Escuela Técnica Estadual de Teatro Martins Penna -, centenaria institución que es apuntada como la primera escuela pública de teatro de Brasil y la más antigua escuela pública de teatro en actividad en América Latina. Para ello, además de invertir en observaciones, conversaciones y experiencias que se dieron en el día a día de la Escuela de Teatro por un período aproximado de cuatro años (2014-2017), se dedicó también a explorar y analizar un centenar de fuentes, como las materias de revistas disponibles en la Hemeroteca Digital de la Biblioteca Nacional y en el Centro de Memorias Luiza Barreto Leite – instalado en la proria Escuela. Por lo tanto, con el fin de impetrar algunas formulaciones teóricas, se sirve de un debate que acciona y articula ideas postuladas por Frantz Fanon, Jacques Rancière John Dewey y Paulo Freire, teniendo construcción de conocimiento, jerarquía de las inteligencias, unidad de experiencia y materialidad como conceptos centrales del tratado. Concluye con proposiciones que asocian los conceptos de ausencia y compromiso para pensar práctica docente en las escuelas públicas con las clases populares y, en especial, en la centenaria Escuela Técnica Estadual de Teatro Martins Penna.

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Post-Gaduation Program in Education of the Federal Fluminense University - UFF, in the field of Daily Life and Popular Education, with the guidance of the professors. Drs. Regina Leite Garcia (in memoriam) and Maria Teresa Esteban, and co-orientation of Prof. Rodrigo Torquato da Silva. The paper deals with a research that is focused and objective to discuss questions and reflections that permeate the teaching practice in the public school. In this sense, it is based on the metho- dology, having the professor-researcher synchronously as the subject and object of the visceral research, based on the analysis of some of his training courses and, above all, from his excavations and experiences, respectively, in memory and in daily life Of the Martins Penna Theater School - now the State Technical School of Martins Penna Theater -, a centennial institution that is designated as the first public theater school in Brazil and the oldest public theater school in activity in Latin America. In order to do so, in addition to investing in observations, conversations and experiences that were given locally in the day-to-day Theater School for a period of approximately four years (2014-2017), he also devoted himself to exploring and analyzing a hundred sources Documentaries, gathered in the current archives of the institution, in the subjects of periodicals available in the Digital Library of the National Library and in the Memories Center Luiza Barreto Leite – installed in the School. Therefore, in order to formulate some theoretical formulations, a debate is used that triggers and articulates ideas postulated by Frantz Fanon, Jacques Rancière, John Dewey and Paulo Freire, having knowledge construction, hierarchy of intelligences, unit of experience and materiality as central concepts of the treaty. It concludes with propositions that associate the concepts of absence and commitment to think teaching practice in public schools and, especially, in the centennial State Technical School of Martins Penna Theater. Keywords: teaching practice; visceral research; School of Theater Martins Penna.

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Pág 10

PRIMEIRA PARTE

Percursos e reflexões de um professor-pesquisador nas artes Capítulo 1

O tao da pesquisa

A redescoberta da escola como protagonista Pág 14

Capítulo 2

Manel, Chiquinho e Cachorrão

Entre ruas, cruzamentos, pedintes e esmolas Pág 34

Capítulo 3

Quando a sala de aula ofusca a lupa

O que sabemos e não sabemos sobre estudantes das classes populares? Pág 50

Metodologia

Um e meio por trinta, doze em sala, tempo de experiência A pesquisa visceral com o cotidiano

Pág 64

SEGUNDA PARTE

Buscando pistas na memória e no cotidiano da escola Capítulo 4

Martins sem pena

Cem anos entre produções, crises, resistência e artivismo Pág 81

Capítulo 5

Uma escola pública de teatro na Pequena África

A vista de um ponto: uma pré-história possível da Escola de Teatro Martins Penna Pág 119

Capítulo 6

Entre a quarta parede, o contemporâneo e a gira

Perspectivas éticas, estéticas e políticas dentre docentes e discentes da Martins Penna Pág 152

CONSIDERAÇÕES FINAIS Que fizemos, Deus meu?

Ausência e compromisso como perspectiva pedagógica na escola pública

Pág 192

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANEXOS

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INTRODUÇÃO

Para além desta brevíssima introdução, a presente tese organiza-se em mais duas seções. Na primeira, apresenta narrativas e reflexões acerca de alguns percursos trilhados por este autor como professor-pesquisador, situando o leitor acerca de quem fala, da onde fala e por quê fala. O trabalho aqui colocado é desenvolvido tendo a Educação como grande campo de investigação e o campo da Arte como interlocutor. Dessa forma, desenrola-se nas palavras de um sujeito que se encontra mergulhado no efetivo exercício da prática docente e que, neste fluxo, afeta-se e se expõe em seu impacto. Assim, ao passo em que mergulho nas narrativas e reflexões, mais justifico a ideia posta no campo do Cotidiano de que ao pesquisar me pesquiso, materializando os riscos e os limites de quem se assume como sujeitobjeto de uma investigação. Dessarte, os questionamentos construídos neste percurso inicial vão pontuando e anunciando as interrogações da tese, evidenciando que ela segue uma trilha onde a unidade de relação <professor e estudante> apresenta-se constante e com papel principal.

Intitulada Percursos e reflexões de um professor-pesquisador nas artes, a primeira parte está dividida em três capítulos. No primeiro, retomo uma ideia que me impactou fortemente no mestrado – e que me influencia com vigor hoje nas pesquisas com o Cotidiano – que é aquela que posiciona a escola – ou a instituição formal de educação – como lugar protagonista na investigação. Neste sentido, corroborando com a razão já posta do quem fala, de onde fala e por quê fala, trago algumas questões que se manifestam a partir das minhas experiências como professor de Artes no Ensino Básico em escolas públicas das classes populares, articuladas com meu período de formação como estudante em uma instituição formal – o curso de Educação Artística na universidade federal. Já no segundo capítulo, chamo para o debate aquele que, para mim, foi outro rico espaço de formação, que me inspira e me provoca no sentido de formular interrogações. Trata-se de uma experiência vivida nas ruas como malabarista em cruzamentos de sinais de trânsito, onde, por fortuna, tive a oportunidade de conviver e um pouco aprender com três crianças: Manel, Chiquinho e o menino apelidado Cachorrão. Por fim, no terceiro capítulo, convoco um outro conjunto de experiências que considero fundamentais em minha formação, que são as vivências com o grupo de pesquisas Alfavela/UFF no projeto Imagem, Som e Alfabetização, realizado em Niterói e na Baixada Fluminense, de onde pululam uma série de outras indagações acerca do exercício da prática docente com as classes populares.

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Levado a investir na reflexão sobre os métodos empregados na investigação – e fortemente provocado pela ideia de uma possível complementaridade desenhada pelas metodologias da pesquisa com o cotidiano e da pesquisa visceral –, ao fim desta primeira seção, rumo a um primeiro ponto de virada1, tento projetar a liga teórica que amálgama os dois contextos apresentados na tese: o primeiro, que apresenta um docente-sujeito em constante formação nas áreas periféricas, na universidade, nas ruas, no grupo de pesquisa etc; e o segundo, que traz este mesmo docente submerso em um profundo mergulho na memória e no cotidiano de uma escola de Teatro, considerada uma das principais e mais conceituadas entidades de ensino de Artes no Brasil. Portanto, encerro esta primeira seção com uma pequena subseção tentando estabelecer a práxis articulada à unidade de relação <professor e estudante> como lugar comum e intrínseco ao debate postulado, defendendo a ideia de que é a partir da visceralidade encarnada e delimitada nas experiências do primeiro – o professor – que se encadeia o nexo entre os contextos apresentados.

Mantendo então essa unidade de relação como campo de jogo, e devidamente encaminhado a um segundo ponto de virada – como já colocado acima, sob a noção de uma liga que amarra os dois contextos da tese –, na segunda seção trato de aprofundar algumas problematizações anunciadas nas interrogações da primeira parte, refletindo junto a alguns acontecimentos do cotidiano que são organizados em paralelo ao resgate de pistas da memória desta conceituada instituição de ensino de Artes. Em síntese, esse esforço se dá na tentativa de situar o leitor acerca de projetos que a permearam e a permeiam a escola no ontem e hoje.

Esta segunda parte, intitulada Buscando pistas na memória e no cotidiano da escola, também está dividida em três capítulos. No primeiro, além de narrar o cotidiano de um grave período de crise vivido na história bem recente da Escola e resgatar uma série de períodos de contenda explícitos na imprensa num intervalo aproximado de cem anos, faço uma reflexão acerca da postura dos estudantes na resistência e defesa da instituição pública de ensino. Já no segundo capítulo desta seção, trato de resgatar nuances de uma possível pré-história da Escola de Teatro, relacionando as tensões de seu curso a um universo estético que não só pode ter colaborado para sua criação e implementação, como vem tensionando forças que se materializam na construção de seus currículos ao longo do século e ainda nos dias atuais. Por fim, fecho esta parte com um capítulo que analisa algumas perspectivas éticas, estéticas e

1 Ponto de virada trata de um conceito utilizado nas narrativas desenvolvidas pelos roteiros de cinema que tratam

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políticas observadas nas relações entre colegas docentes e, também, nas relações postas entre professores e estudantes, explicitando um relato de experiência vivido na implementação da disciplina de Legislação e Produção Teatral sob o viés do campo do Planejamento.

Nessa trilha, verticalmente, sou provocado por ideias que se articulam e desarticulam nos fundamentos apresentados por Jacques Rancière, Frantz Fanon, John Dewey e Paulo Freire, sendo ainda atravessado pelas centelhas de luzes lançadas por Walter Benjamim, Michel de Certeau, Boaventura de Sousa Santos, Edward Palmer Thompson, dentre outros pensadores. Junto destes – e orientado por uma rota rizomática –, tento problematizar questões que se imprimem na ideia da relação dos sujeitos com aquilo que entendo por construção de conhecimento, nomeando o binômio <escola e não-escola> como terreno do saber/fazer e refletindo sobre práticas e regulações que dialogam com conceitos como embrutecimento e emancipação; igualdade como potência; e mestre explicador – apresentados por Ranciére. Da mesma forma, no exercício de confrontar e complexificar as primeiras ideias – assim como estabelecendo uma leitura mais materialista sobre a qual imperam os contextos de uso destas – invisto em refletir também em mais algumas formulações: dupla tomada de consciência; aparato conceitual; e força e fraqueza da espontaneidade – ideias expostas por Fanon.

Em um exercício de tradução e analogia, tento ficar atento às contradições e tensões que me afetam e me transformam, a fim de contribuir de alguma maneira com outros pensamentos que, em termos gerais, instalam-se no campo da Educação Brasileira e, amiúde, no campo da Educação para/com às Artes. Neste sentido, junto às articulações feitas a partir das reflexões que conjugam prática e teoria, o conjunto reunido de dados e informações levam-me ainda a imprimir um debate sobre formas de saber/fazer que operam sob dois incitamentos aqui assim compreendidos: a conjunção de fatores estético-expressivos e a negociação de conceitos sobre conceitos. Sob ambos, derramo um arcabouço de concepções que se instala numa quadra teórica articulando construção de conhecimento, hierarquia das inteligências, unidade de experiência e materialidade.

Em termos gerais, fico com a forte impressão de que, mais uma vez – assim como ao findar da minha experiência no mestrado –, o curso do doutorado, árduo e extremamente desafiador – com todos os percalços e regalos –, torna-me uma pessoa diferente, que subtrai um sem número de certezas em face das surpresas da investigação. Ainda que titubeando em face do impacto do novo – e tentando estar atento as suas pistas –, sinto-me privilegiado por embarcar

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numa viagem junto às ideias do mestre Rancière, contudo, devo admitir, foi com Fanon que atraquei meu pensamento ao súbito. E por necessidade de responder a este último que navego corajoso pelo rio da conclusão, com ajuda de John Dewey e Paulo Freire, relacionando e pensando as ideias de ausência e compromisso na educação.

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PRIMEIRA PARTE

PERCURSOS E REFLEXÕES DE UM PROFESSOR-PESQUISADOR NAS ARTES

Capítulo 1

O tao da pesquisa

A redescoberta da escola como sujeito protagonista

Postas as primeiras balizas, penso que gostaria de escrever como quem escreve poemas. Na prática desse gênero que tem a síntese como mola mestra, costumo partir do princípio de que a construção e apresentação do primeiro verso são determinantes para o bom desenvolvimento do que vem em seguida. Anúncio em um poema, o primeiro verso traz com ele uma série de carregados sentidos que se desdobram e tomam força ao longo dos demais e, assim também como em uma boa peça de teatro, operam a narrativa em um encadeamento de proposições que transitam sob a manta fina de certa magia. E é relativamente assim o desenvolver dessa magia: se a primeira fala não for construída e apresentada na medida necessária, a segunda que virá não terá o impulso que precisa para engrenar, a terceira vai agonizar fora do tempo e, de forma sucessiva, o texto e as ações do espírito atuante dormirão junto à atenção do espectador. Se não são tomadas pelas vibrantes e possíveis formas dos discursos, as palavras no papel não passam de códigos legíveis e insensíveis. Na poesia, se perdem porque falam de nada a ninguém. No palco, são veladas pela reza das falas decoradas em mantras sem sentido de um teatro moribundo2.

Das experiências que o contato com as Artes me proporcionou e proporciona, emerge a impressão de que fazer uma boa peça de teatro é como fazer um bom poema. Cada cena é como um verso que diz e não diz, caldeirão das expectativas. O último verso de um poema – ou o primeiro antes do tempo do silêncio – é sempre aquele que faz a roda girar. Dentre alguns espertalhões, escravos do show business, já ouvi dizer que uma boa peça de teatro poderia ser feita apenas de uma cena cativante no começo mais uma cena triunfal no final. O que há no meio entre o início e o fim do drama não importa, é apenas enxerto, coisa de encher linguiça. Particularmente – e creio que não é difícil pensar assim –, dizer que uma boa peça de teatro só precisa de um bom começo e um bom final é um descompromisso com nossa potência e, para além, de alguma forma, há de ser também descaso com a própria ideia de existir.

2 BROOK, Peter. O espaço vazio: um livro sobre o teatro: moribundo, sagrado, rústico, imediato. Rio de

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Como coisa que se sabe e faz, poesia e teatro surgiram na minha vida em tempos diferentes. A primeira começou a me acompanhar no início do Ensino Médio, ocupando meu tempo durante algumas aulas chatas. Uma dessas aulas – por incrível que pareça – era a aula de Literatura e a outra – coisa mais incrível ainda – era a aula de História da Arte. O incrível dos acontecimentos não está necessariamente no fato de uma aula de Literatura ou de História da Arte ser chata. A aula chata não escolhe o campo. Regulador e sem jeito, como nos provoca Rancière, basta um pastor colocar-se como juiz entre um e outro sujeitos que o confronto das inteligências3 se esvai e uma aula chata nasce aqui ou acolá. A meu ver, o incrível se dá porque este que aqui disserta, possuidor do privilégio da fala, hoje mesmo está no cargo de professor de Artes em duas redes de ensino público, lotado em duas escolas bem distintas: na primeira, onde leciona há quase dez anos, trabalha com jovens e adultos matriculados nos cursos da Educação Básica, especificamente, no segundo segmento do Ensino Fundamental; e, na segunda, onde está há quase cinco anos, trabalha também com jovens e adultos que, já formados no Ensino Médio, procuram a escola com o fim de obter a formação técnica em um curso profissionalizante de Arte Dramática.

No exercício de buscar e tentar definir melhor a grande questão que me inculcava na pesquisa – e após apresentar um e outro textos –, constantemente era provocado pela minha então orientadora4 quando ela dizia que eu não estava levando a sério minha pesquisa. Passado este primeiro momento de enfrentamento, sinto-me à vontade para admitir que ela tinha toda razão. No curso de Mestrado, em várias ocasiões, recordo-me claramente que a escrita da dissertação cortava minha carne, pois, na medida em que escrevia e pensava sobre educação e, em especial, sobre o cotidiano na escola em que trabalhava, voltava ao seu chão para beber, experimentar, debater e provocar. Eu estudava para poder mudar aquele lugar e, assim, quase sempre, dele saía reflexivo e com vontade de escrever mais e mais sobre o que acontecia com os estudantes e com meus colegas. Depois de algum tempo, comecei a entender que, na maioria das vezes, muito do que escrevia servia mais para compreender o que acontecia comigo, tal qual o caçador de mim5 de Ferraço. Ao longo do curso, até o dia em que se deu a defesa da minha dissertação, pude confirmar aquilo que minha então orientadora

3 RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre emancipação intelectual. Belo Horizonte:

Autêntica Editora, 2015. Págs 30-34, grifo nosso.

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A prof. drº. Regina Leite Garcia, minha orientadora até julho de 2016 que, infelizmente, veio a falecer durante a produção desta tese.

5 FERRAÇO, Carlos Eduardo. Eu, caçador de mim. In: Regina Leite Garcia (org.). Método: pesquisa com o

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me em nossa primeira conversa, exatamente na minha entrevista para o ingresso no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense: você está fazendo uma pesquisa-intervenção? – indagou ela. E eu falei, falei e falei, tentando achar a explicação, para só no final perder o fio da meada e admitir: é, estou fazendo uma pesquisa-intervenção. Ela riu.

A resposta que dou agora é arriscada, talvez me deixe em uma situação delicada, mas é, em absoluto, o que sinto. De fato, para que eu possa levar a sério todos os procedimentos da academia e, como resultado, cuspir a escrita, sinto a necessidade de fazer uma pesquisa-visceral6. Se eu não misturar a ideia de pesquisar com alguma aplicação prática do meu trabalho no cotidiano – digo assim porque me faltam palavras melhores – e, para além, se eu pelo menos não achar que posso mudar alguma coisa no local onde trabalho e vivo, acabo por me perder na roda da retórica e viro uma grande farsa. Mas, para além da ideia de uma pesquisa com o cotidiano – e apropriando-me dos sentidos da mesma –, descubro uma outra perspectiva de inquirição, imanente as minhas alegrias e tristezas, apatias e fúrias, certezas e dúvidas: a pesquisa visceral. Desta forma, a fim de fazer valer o investimento que o Estado Brasileiro está fazendo em mim quando me agarro em minha vaga no curso do doutorado, concluo que só posso começar a falar de um lugar ou de um lugar de fala: da posição de professor e, mais especificamente, do posto de professor de Artes em escolas públicas.

O que é ser professor? O que é ser professor de Artes? O que é ser professor de Artes em uma escola? O que é ser professor de Artes em uma escola pública? Dado os diferentes níveis de abstração, cada uma das questões apontadas é capaz de produzir longas horas de debate, amparadas pelo universo rico das experiências de cada sujeito que, caso seja provocado, esteja disposto a falar. Contudo, meu trabalho aqui não é um ensaio. Por ser pesquisa visceral, antevê a possibilidade de dar respostas, ainda que estas venham a partir de mais perguntas. Pensando junto com Deleuze quando este diz que uma teoria é sempre local7, trato de optar por ter como lócus e matéria da pesquisa o meu próprio corpo – no sentido mais amplo possível –, transitando e tramando dentro de uma das escolas onde efetivamente trabalho. E

6 Este conceito funda-se nas experiências dos projetos de pesquisa com o Grupo Alfavela/UFF e já vem sendo

problematizado em outras oportunidades através de: SILVA, Rodrigo Torquato da. Escola-Favela e Favela-Escola: "esse menino não tem jeito!" Petrópolis: De Petrus et Alii, 2012. Págs 147-177; SILVA, Rodrigo Torquato da; ALVES, Luciana Pires; COLLET, Heitor. Alfavela: pesquisas viscerais em educação. Lisboa: Chiado Editora, [2014], grifo nosso.

7 DELEUZE, Gilles. Os intelectuais e o poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro:

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essa opção é, ao mesmo tempo, tática e estratégia8, como nos ensina Certeau. Estratégia porque, respeitando o investimento que o Estado Brasileiro faz em mim, preciso tornar concreto meu pensamento, dar respostas, ter sobre o que pensar, debater, falar e escrever, consubstanciando um produto que vai me dar a prerrogativa de um título desejado e que me dá algum poder. Tática porque, ao ser professor-pesquisador, transformo cada dia de trabalho em experiência de pesquisa e, camuflado na assinatura do ponto, sou capaz de ter acesso e colher informações que não me seriam dadas se fosse um outsider, reconhecido no olhar que estranha o forasteiro9, como nos fala Maxine Greene.

Se uma grande questão se faz necessária com o objetivo de legitimar a investigação, é a partir da ideia da visceralidade da minha prática docente que ela aqui se apresenta. Nesse fluxo, funda-se sob um movimento longitudinal e centrífugo, que percorre um sem número de indagações tendo um arcabouço de experiências mantido por quatro pilares, a saber: 1º) as impressões construídas acerca das ideias de vocação e formação docente; 2º) a percepção das relações que nomeiam a escola como lugar de preparação para o mundo do trabalho; 3º) o juízo que condiciona, desequilibra e impede a tradução entre lógicas epistêmicas; e, por fim, 4º) o espírito de busca de um sentido para a escola pública.

Ao assumir que o privilégio da escrita dado a mim neste momento reflete percepções de um professor que, há aproximadamente quinze anos, transita entre os campos da Arte e da Educação, devo também assumir que reflete percepções de um sujeito que: 1º) se reconhece como marginal em uma classe média da qual é filho; 2º) agoniza ao reconhecer a importância de uma dupla tomada de consciência10 no trânsito de suas experiências pelas fronteiras das relações entre classes; 3º) se fez artista de rua para poder ter os direitos de estudar e ter lazer; 4º) confunde suas práticas de ator e encenador com as práticas de professor, iniciadas em cursos livres de teatro, lugar onde descobriu a vontade de ensinar; e 5º) consolidou esta vontade fazendo concurso para redes públicas de ensino onde teve – e tem – a oportunidade de viver experiências com as chamadas classes populares. Nesse sentido, cabe uma primeira provocação-enunciação: quais são os limites de ação de um professor, sujeito de vontades,

8 CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Edidora Vozes, 2003. Págs

97-102, grifo nosso.

9 GREENE, Maxine. Teacher as Stranger: Educational Philosophy for the Modern Age. Califórnia: Wadsworth

Pub., 1973, grifo nosso.

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dentro da esfera de compreensão do seu trabalho como servidor público em uma escola pública?

No lugar de professor de Artes, por exemplo, creio ser importante dizer que me vi – e ainda me vejo – recorrentemente como um ripário nas escolas de Ensino Básico onde lecionei e leciono. Não sinto que seja difícil perceber que, via de regra, o lugar da Arte em uma escola deste nível de ensino é, muitas das vezes, tratado como um lugar menor e, neste caso, não vale empregar a máxima popular tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais. A ordem dos fatores não altera o produto, caso queiramos considerar que, na escola, a importância dessa disciplina ou desse campo do saber reflete de imediato, pura e simplesmente a forma como o sujeito-protagonista se coloca em sua possível operação. Este sujeito-protagonista de quem falo é propriamente o professor de Artes e sua vontade de participar concretamente, por maior que seja, pode não ser capaz de furar o bloqueio da fundação disciplinar. Quando a escola organiza seu currículo em disciplinas – e não é difícil perceber que a maioria delas assim o faz –, esta condição se impõe pujante. A distribuição da carga horária por turma, por exemplo, é apenas um elemento concreto que por si só deflagra essa condição.

E também uma recorrente pergunta: professor, Artes reprova? Essa adorável pergunta me persegue em todos os anos letivos. Ao adentrar qualquer sala de aula, sei que, mais cedo ou mais tarde, serei levado a responder a essa inquirição quando indagado por um aluno ou uma aluna mais sagaz. Há bem da verdade, não é difícil entender que uma disciplina torna-se mais ou menos importante do que outra pelo simples fato de que, via de regra, também em muitas das vezes, uma leva o estudante a retenção e a outra não, sendo esta última, também em diversas ocasiões, encarada por muitos como um passatempo, uma prática nonsense, uma matéria que não serve de nada porque não vamos usar nunca.

Agora, vejamos que contrassenso. Desperdiçando parte da sua experiência na desconfiança dos estudantes, este mesmo professor que vos fala é levado também a lecionar em uma escola onde, respectivamente, as artes e suas obras são tema-propulsor e produto-fim. Uma escola onde o estudante chega advindo das mais diversas localidades do país e – pasme! – do mundo, empenhado e focado em participar de uma difícil seleção através de provas de habilidades específicas, com a esperança de conquistar a oportunidade de estudar e se formar em um terreno ímpar que, por muitas das vezes, é sabotado pela escola de Ensino Básico. E se em

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muitas das vezes a escola de Ensino Básico sabota o aprender com a arte, da forma como nos ensina Cora Coralina, a vida – através do seu mestre maior, o tempo – encarrega-se logo de fazer a correção do curso entre aqueles que estão sedentos por aprender com ela. Faz-se arte nas ruas, nos becos, nas vielas, nos playgrounds, nos parques, nas igrejas, nos clubes, dentre outros tantos lugares. Como nos ensina Alves, grupos se formam e se informam na tentativa de se auto-educar quando o espaçotempo11 da escola é pouco e quando ela não demonstra a vontade política de se abrir para outras epistemologias. As histórias nos ensinam que não é preciso uma escola para aprender, menos ainda uma escola para aprender arte. Mas se ela existe, qual será o seu papel?

Pondo em diálogo educação e arte e suas respectivas influências, pergunto: o que a memória e o cotidiano de uma escola pública de teatro têm a nos ensinar? Do que falamos quando tratamos de teatro no Brasil? Em que contexto e por que motivos foi criada uma escola pública de teatro no Brasil? Por que, como e em que condições essa escola se manteve ao longo de mais de cem anos? Quem eram/são os sujeitos que a habitaram/habitam? O que esperavam/esperam dela? O que refletiu/reflete o caráter público desta escola em diálogo com o caráter público da nossa educação? Qual era o perfil dos seus estudantes e professores ao longo do tempo e qual é o perfil destes hoje? Essa escola recebeu/recebe estudantes das classes populares? Se sim, o que esperavam/esperam da escola estes estudantes? Como encaravam/encaram as proposições e as realidades dos seus currículos? O que nos ensina a prática política-pedagógica nessa escola pública de teatro? Como se organizam as relações no cotidiano dessa escola de teatro hoje? Sendo escola e pública, qual seria/é seu propósito de formação? Com quais movimentos do teatro, das artes e da cultura dialogou/dialoga? O que a escola e seus sujeitos entenderam/entendem como teatro ontem e hoje? Por ser pública, o que deve oferecer a fim de que se justifique como investimento do Estado? E como o teatro em si é encarado pelo Estado, a fim de que se justifique uma ação de política pública, no caso, através de uma escola pública?

Não é difícil perceber que, talvez, mais do que em outras profissões, a carreira do catedrático é assombrada por um estigma determinante que se materializa na ideia de ter vocação como pré-requisito fundamental para o bom desempenho no trabalho. E, sob este estigma, deságuam duas concepções que operam de forma contígua e que já demarcam a cena para quem deseja

11 ALVES, Nilda. Espaço e tempo de ensinar e aprender. In: Linguagens, espaços e tempos no ensinar e

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ser professor: primeiro, aquela que figura uma pessoa que já nasce pronta para o exercício da docência, munida de habilidades tais como paciência, capacidade de organização das ideias e, por consequência, capacidade de transmissão destas mesmas ideias de formas ordenada e nítida; segundo, a ideia de que, acima de todo e qualquer embargo posto pelas armadilhas da vida, espera-se que o professor esteja sempre disposto a atender a quem dele necessita, a quem por ele procura em condição de desnorteamento, aguardando a devida atenção do seu olhar e orientação mais cuidadosa, inquestionavelmente, uma prescrição mais segura, capaz de apontar respostas e, portanto, indicar aquele que seria o caminho da verdade.

Essa ideia de vocação traz com ela uma manobra ambivalente que, por um lado, enobrece a figura do catedrático e, por outro, minimiza sua evidente e substancial participação comprometida para com aquele que, diz-se por aí, virá a ser o produto ou o resultado da sua força de trabalho: o estudante ou, em melhor medida, o bom estudante. Conquanto, tal qual em um texto de teatro ou roteiro de cinema que, como obra de arte, é um produto inacabado, assim também será o bom – também, vez por outra, mal – estudante. O indivíduo em si, suas habilidades demonstradas de forma material em circunstâncias oportunas ou a função que este exerce na sociedade, mais ou menos valorizada, qualquer que seja a forma como avaliamos o resultado possível, ao ser manipulado pelo mestre, será um dado de forma inacabada. Desta maneira, se é bom, ao professor cabe o mérito, não obstante, logo ali à frente podemos ver o demérito. Se é mal, há a culpa, mas, logo ali mais na frente podemos encontrar a redenção. Em suma: o professor, então, é como um roteirista ou um dramaturgo – o produto do seu trabalho só é visível em ação e, mais do que isso, é um produto necessariamente social.

Se a ideia de uma vocação para ensinar resguarda ao professor um lugar especial na sociedade, em paralelo, é este mesmo estigma que lhe empurra a um lugar menor, um posto que se coloca através do discurso utilitário feito na provocação popular do quem não sabe fazer ensina. Sob este aspecto, se analisarmos com mais cuidado, seja qual for sua perspectiva e de maneira reiterada, o estigma da vocação há de colocar o professor em um lugar menor, seja na sua relação com aquilo que ele diz conhecer, seja na efetiva recompensa – imaginada – pela sua força de trabalho empregada. Uma e outra perspectivas levam o professor a uma condição dúbia, também tensionada pela ideia de uma relevância intelectual da profissão, relevância esta que de fato existe e que é usada para manter certo status quo nas sociedades escolarizadas. Contraditoriamente, observa-se que este status quo não se reflete materialmente no campo econômico. Neste caso, sob a égide de fazer valer sua condição de existência, o que

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restaria ao professor então senão empregar ações para replicar com todas as forças o sentido dessa reputação? Mas o que significa essa replicação ambientada e perseverada em uma escola pública de teatro, em um campo de trabalho reconhecidamente mais restrito e instável? Como impacta os sujeitos em suas relações no cotidiano?

Em particular, como professor, fico muito incomodado quando alguns colegas tratam estudantes como pessoas inferiores. Os chamados maus alunos assim são classificados por diferentes motivos: porque fazem bagunça, porque não fazem nada, porque conversam em hora indevida, porque não são frequentes, porque não são pontuais, porque não são aplicados, porque não são caprichosos, porque não têm compromisso, porque não entendem a matéria, porque não, porque não etc. E também fico incomodado quando os chamados bons alunos não são levados ao desafio de novas descobertas ou, sob outro aspecto, não são estimulados a investir em suas próprias descobertas que, em regra, são subestimadas e colocadas em segundo plano em detrimento da necessidade de nós, os professores, termos que seguir o programa do curso e, portanto, ter o que dizer ou o que explicar.

Há uma sorte de motivos para inferiorizar os estudantes e, em muitas das vezes, aqueles que são inferiorizados combinam todos estes motivos paralela e conjuntamente. Como explícito acima, devido a uma condição existencial, percebo e temo que o que leva um professor a inferiorizar o estudante é exatamente a necessidade de manutenção do seu respectivo status quo: você ignorante, eu iluminado. Uma necessidade evidente para a manutenção deste quadro é exatamente a preservação da ideia da importância de uma matéria a ser dada em determinado espaço de tempo – ou em determinado tempo no espaço. Contudo, pela falta do entendimento de que deve compreender isso, a importância da matéria a ser dada da maneira como ela tem que ser aplicada – ou a forma como ela, supostamente, deve ser transmitida –, o estudante inferiorizado tende a levar sua inteligência para longe do culto à matéria empregada pelo professor e, neste caso, caberia perguntar curiosamente: onde este estudante empregaria essa sua inteligência fugaz? Precisaríamos, inclusive, rever nossa noção da ideia necessariamente dialética de inclusão/exclusão. Quando inclui e insiste com o estudante que é inferiorizado na ordem da matéria a ser dada sem que este lhe oferte uma determinada e necessária qualidade da atenção, o professor automaticamente se exclui porque não entende que aquilo que ele diz pode simplesmente não fazer o menor sentido para o estudante. Por outro lado, de forma inevitável, havemos de pensar que, provocando e teimando nesta ação, o professor necessariamente inclui cada vez mais o estudante em outra lógica, uma lógica na

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qual, de fato, este vai empregar sua atenção e demonstrar sua inteligência. É como se a aplicação material ficasse surda enquanto o conceitual fala e vice-versa.

Neste caso, de forma contraditória e aos olhos do senso comum, quem estaria incluído socialmente seria o professor, e o estudante estaria excluído, o que, creio, não é uma realidade possível. O que acontece, parece a mim, é uma construção de hegemonia/subalternidade sobre as lógicas de emprego das inteligências, algo que, naturalmente, levaria-nos a empreender a visão de que o estudante inferiorizado estaria excluído socialmente. Dentro de um sistema de disputa – como é o sistema capitalista – isso seria um fato, porém, dentro de um sistema de cooperação, onde a potencialização da construção do conhecimento seria um direito líquido e certo para todos, isso seria uma falácia. No sistema de disputa, tão grave quanto excluir o estudante supostamente inferiorizado, seria excluir o estudante que supostamente não é inferiorizado, negando a este a possibilidade de construir novos e importantes conhecimentos, de avançar para além do espaçotempo da instituição, de progredir bem mais ou em outro curso, diferente do conjunto de ações hegemônicas que regulam o espaçotempo da instituição. Quem sabe se neste outro caminho não encontramos as soluções para a distribuição das riquezas do mundo de forma mais igual e justa ou, ainda, soluções práticas que tornem nossa relação com a natureza menos predatória e mais simbiótica. A utopia é um horizonte. Nesse sentido, quando tomados pela compreensão da importância da matéria a ser dada, o professor e o bom aluno – sim, porque a compreensão não está imbricada na relação professor e mau aluno – tendem a tornar o momento potente da construção do conhecimento em um momento de luto, onde a compreensão, como nos conta Rancière, estará sempre arquitetada sob a ideia de uma hierarquia das inteligências12.

Quando estudante nas aulas de Língua Portuguesa e Literatura do Ensino Fundamental, costumava ouvir elogios das professoras que, recorrentemente, parabenizavam-me pelo desenvolvimento nas redações. Na minha adolescência, os estímulos positivos e propositivos da minha família contribuíram para meu interesse em produzir textos e, junto a outros saberes desenvolvidos fora do contexto escolar, levaram-me à participar de uma série de produções que permeavam intimamente os mundos da comunicação e das artes. Assim, em um universo lúdico e com a fortuna de, na época, ter acesso a modernos equipamentos de registro como gravadores, microfones, aparelhos de som etc, junto de alguns amigos, divertia-me com a

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oportunidade de elaborar roteiros de radionovelas e criar histórias mirabolantes, assim como investia na produção de matérias jornalísticas sobre o dia a dia do condomínio onde morava, sempre com uma razoável pitada de humor. Recordo-me que, naquelas horas, modestamente, costumava incorporar o espírito dos multiperformers, escrevendo, dirigindo e atuando com a sede própria de um Chaplin ou de um Chespirito. Neste percurso, no tempo em que findava o Ensino Fundamental e se aproximava a chegada ao Ensino Médio, o gosto pelo exercício da criação e da escrita, incentivado pela orientação constante de um pai jornalista, levaram-me a apontar o interesse para ingresso em uma escola técnica de Comunicação, visando conquistar o terreno da Publicidade como um campo de trabalho em um futuro próximo. Quem saberia?

Essa escola técnica transita em minhas recordações como um lugar onde tive a oportunidade de muito aprender e construir diversos conhecimentos – fundamentais para mim – e que até hoje me acompanham potencializando aquele que é o meu mundo do trabalho, onde se incluem minhas ações como professor de Artes nas escolas públicas onde leciono. Dentre os conhecimentos específicos citados, por exemplo, aponto para a habilidade no uso de determinados programas de design gráfico e tratamento de imagens, algo que não é necessariamente alicerce comum no magistério e que me permite preparar aulas tendo a estampa como forte recurso de tradução e diálogo. Outrossim, observo que essa mesma escola contribuiu muito para fortalecer outras habilidades minhas no uso dos saberes nos campos da Informática, da Mídia e do Mercado, saberes estes que, conjuntamente, permitem que eu consiga organizar dados e informações com razoável nível de eficiência, otimizando o uso do meu tempo e, naturalmente, oferecendo-me maior qualidade de vida. Como fábula, e para justificar o porquê do meu sentimento, basta que eu diga que tenho saudades dessa escola, onde tenho a certeza de que muito aprendi.

Conquanto, também naquele tempo, por estar interessado em exercitar a escrita e a livre criação, digamos assim, fui tomado pela sensação de que, no campo da Publicidade, onde me formaria técnico, estaria condicionado a criar sob determinadas e constantes limitações. Via de regra, fosse através de qualquer texto ou imagem, meus colegas de turma e eu éramos levados a pensar que qualquer manifestação voltada à prática da criação artística deveria, antes de mais nada, ser regulada e estar subordinada a um documento que conhecíamos sob o nome de plano de mercado. Desta forma, ainda que aprendesse coisas muito interessantes nas disciplinas e no universo da Publicidade como um todo, pressentia que me debilitaria no rumo

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de manifestar minha vontade de criação de forma plena e, desta maneira, creio, começou ali algum interesse meu – observadamente consciente, digamos assim – sobre o campo das Artes.

Mais tarde, no intervalo entre o fim do Ensino Médio e o ingresso na universidade, pelo fato de não ter conseguido passar direto no vestibular para o curso de Comunicação Social, vivi um ano que classifico como ocioso no curso oficial da minha vida escolar. A consequência desta ociosidade foi então me dedicar a estudar em duas atividades paralelamente: a primeira, voltada para o ingresso no curso de nível superior, dava-se diariamente no comparecimento em um curso de pré-vestibular; e a outra, voltada para o exercício da livre criação, dava-se na participação em dois cursos de teatro, onde, em um primeiro momento, matriculei-me sem grande pretensão, basicamente com o intuito de apenas conhecer a novidade.

Ao fim deste mesmo ano, estava convencido de que não tentaria mais a vaga para o curso de Comunicação Social e minhas intenções para com a continuidade da minha vida escolar oficial apontaram então para três possibilidades, todas sob o título do bacharelado: o curso de Cinema na Universidade Federal Fluminense – UFF; o curso de Direção Teatral na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; e, como terceira e última opção, o curso de Interpretação Dramática na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UniRio. Adiante, com a dificuldade própria de quem não experimentou as matérias clássicas de um Ensino Médio propedêutico13, consegui classificar-me para os dois últimos cursos. Assim, ingressei feliz nos estudos no campo das Artes, tendo o Teatro como campo específico de aprendizado e investigação.

Na universidade, após um ano e meio dedicando-me aos cursos de Interpretação e Direção, fui convidado a dar aulas de representação para iniciantes em um curso livre de teatro que acontecia em um centro cultural na cidade onde morava – e onde moro até hoje. Nos rastros da minha memória, recordo que foi exatamente essa experiência singular que fez despertar em mim a vontade de trabalhar como professor. Neste tempo, sob a orientação de uma avó que trabalhou trinta anos na Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, e a fim de saber se haveria a possibilidade de – além de ator e diretor – formar-me também como professor de teatro, fui até as secretarias acadêmicas dos cursos em que estava matriculado. Na ocasião,

13

Na escola técnica onde estudei, a formação dava-se em dois anos em vez de três e as matérias "normais" do Ensino Médio – como Língua Portuguesa, Matemática, História, Física Química etc – compunham apenas o primeiro ano do curso. No ano seguinte, estudávamos apenas as matérias específicas – como Teoria da Comunicação, Composição, Mídia, Marketing, Produção Gráfica, dentre outras.

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descobri que não existiria a possibilidade na UFRJ, porém, na UniRio, havia a oportunidade de transferência para um tal curso de Licenciatura, me disseram na época, um curso focado basicamente na formação de professores de Teatro para trabalhar em escolas públicas. Assim feito, abandonei o curso de Direção e pedi transferência do curso de Interpretação Dramática para o curso de Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Cênicas.

Neste caso, em especial, poderia de certa forma afirmar que formar-me professor foi então uma escolha tão consciente quanto contingente. Ao fim de alguns processos decisórios que me acompanharam neste período de vida, entre abandonos, retornos e perspectivas, a única possibilidade de formação efetiva que me restou foi essa. Por outro lado, acho que vale um parênteses: também neste tempo, recordo bem que muitos dos meus e das minhas colegas que optaram pela transferência do curso de Bacharelado para o de Licenciatura assim o fizeram muito mais por uma questão de necessidade de sobrevivência do que pelo interesse envolto em uma ideia possível de vocação docente. Necessariamente, isso não significa dizer que um ou outro caso seria mais ou menos legítimo, mas, todavia, faz pensar: o que pode significar formar um professor em nossa sociedade, Planeta Terra, Brasil, Rio de Janeiro?

A fim de construir uma ação potente de diálogo com o mundo do trabalho, com a participação social e com uma perspectiva possível de progresso, em que sentido a necessidade de sobrevivência do sujeito e demais contingências podem contribuir para sua formação como mestre? Como elemento fundamental para a formação, é possível admitir uma primeira ideia de vocação própria do sujeito? E, no caso de uma sociedade permeada pela ordem moderna e envolta sob o espírito da colonialidade – como é o caso da nossa sociedade –, subordinada a quais condições e relações estaria essa suposta vocação pessoal e, adiante, quais seriam suas premissas? Para refletir sobre essas premissas e puxar fios que me conduzem à força centrípeta da tese – a investigação sobre prática docente com as classes populares –, convoco, confronto e alinho – ou desalinho – parte de um conjunto de ideias apresentadas por Rancière e Fanon, tendo como combustível propulsor das ideias o espírito anarquista do primeiro e o sopro revolucionário do segundo.

Ao reler e recriar a obra de Joseph Jacotot e da filosofia panecástica em seu mestre ignorante, Rancière impele um exame à sociedade moderna e, especialmente, desenvolve uma crítica feroz às instituições pedagógicas desta sociedade, dentre as quais a escola de instrução

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elementar, os conservatórios, as universidades etc. O próprio é bastante cuidadoso ao alertar para a importância desta obra nos dias de hoje, haja vista que se trata de uma recriação sobre o pensamento de um filófoso-pedagogo comprometido com a emancipação da população pobre em um período onde a escola moderna ainda dava seus primeiros passos. Ainda assim, é certeiro ao prever a escola como reprodução da sociedade.

Era bem isto que Jacotot tinha em mente: a maneira pela qual a Escola e a sociedade infinitamente se simbolizam uma à outra, reproduzindo assim indefinidamente o pressuposto desigualitário, em sua própria denegação. Não que ele estivesse animado pela perspectiva de uma revolução social. Sua lição pessimista era, ao contrário, que o axioma igualitário não tem efeitos sobre a ordem social. Mesmo que, em última instância, a igualdade fundasse a desigualdade, ela não podia se atualizar senão individualmente, na emancipação intelectual que deveria devolver a cada um a igualdade que a ordem social lhe havia recusado, e lhe recusaria sempre, por sua própria natureza. Mas esse pessimismo também tinha seu mérito: ele marcava a natureza paradoxal da igualdade, ao mesmo tempo princípio último de toda ordem social e governamental, e excluída de seu funcionamento "normal". Colocando a igualdade fora do alcance dos pedagogos do progresso, ele a colocava, também, fora do alcance das mediocridades liberais e dos debates superficiais entre aqueles que a fazem consistirem formas constitucionais e em hábitos da sociedade. A igualdade, ensinava Jacotot, não é nem formal nem real. Ela não consiste nem no ensino uniforme de crianças da república nem na disponibilidade dos produtos de baixo preço nas estantes de supermercados. A igualdade é fundamental e ausente, ela é atual e intempestiva, sempre dependendo da iniciativa de indivíduos e grupos que, contra o curso natural das coisas, assumem o risco de verifìcá-la, de inventar as formas, individuais ou coletivas, de sua verificação. Essa lição, ela também, é mais do que nunca atual.14

No cerne de suas ideias, percebo uma síntese que navega entre a tensão de dois conceitos fundamentais para pensar o sentido do conhecimento nessas instituições e na vida em si – e, ademais, o sentido da formação docente –, a saber, a emancipação e o embrutecimento intelectuais. Trato de formulações cardinais que vou tomar de empréstimo e transformar para sobrevoar e pensar educação e arte na memória e no cotidiano de um lugar onde, como mestre emancipador ou mestre explicador, ensino com paixão tudo o que acho que sei e que não sei: a Escola de Teatro Martins Penna, uma escola de teatro, mas não uma escola de teatro qualquer, pinçada à sorte dentre diversas que existem ou existiram. Uma escola considerada a mais antiga escola pública de teatro em atividade na América Latina, bem como a primeira escola pública de teatro do Brasil, fundada há mais de cem anos e desenvolvendo suas atividades ainda hoje na cidade do Rio de Janeiro. Mas o que uma escola de teatro, ou melhor, o que essa escola centenária e pública de teatro pode nos ensinar e nos ajudar a pensar sobre

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formação e prática docente quando arrolamos as ideias de embrutecimento e emancipação, a fim de contribuirmos com a melhoria da educação e das escolas públicas em nosso país?

Essa formulação me provoca circundando toda a narrativa e argumento do mestre ignorante proposto por Rancière no seu exercício de tradução do pensamento de Jacques Jacotot. Nesse sentido, o debate posto em sua teoria toma a forma de um móbile que orbita sobre as perspectivas de uso do método e da política como lugares possíveis de pensamento e ação no chão das escolas. Como o exercício dos métodos e as escolhas políticas postas e impostas nas escolas como um todo – e nessa escola pública de teatro em especial – podem nos ajudar a pensar formação e prática docente? Rancière nos apresenta um ponto de vista, uma forma de olhar as relações entre sujeitos tendo a unidade da <igualdade e desigualdade> como balança dos sentidos. E ele nos provoca quando diz que para emancipar é necessário partir da premissa da igualdade, uma igualdade que é potência15. Neste caminho, torna-se importante abrir um parênteses e balizar brevemente como toma forma um sujeito professor em nossa sociedade, para, a seguir, lançar um olhar mais atento e observar como essas ideias anárquicas podem contribuir neste trabalho e, especificamente, como o conceito de embrutecimento possivelmente traz com ele imbricados uma série de movimentos contíguos que refletem um conjunto de violências veladas e explícitas, comuns às sociedades colonizadas e denunciadas por Fanon.

Volto brevemente ao curso da minha formação e faço uma reflexão. Hoje, após dez anos de prática como professor em escolas públicas que atendem as classes populares – e também com quase quinze anos de bagagem com trabalhos informais no campo da Arte, posso dizer com certa margem de segurança que minha experiência no curso de Licenciatura deixou marcas e, também, duas grandes lacunas. A primeira lacuna refere-se especificamente à uma elaboração teórica mais robusta estritamente no campo da Pedagogia e, de forma mais ampla, no campo das Ciências Humanas. Praticamente todas as minhas leituras e reflexões iniciais sobre os campos citados deram-se através do estudo sobre as bibliografias das provas de concursos públicos para ingresso na carreira do magistério. Neste sentido, observando as contingências, posso até compreender que foi a possibilidade de conquista do título que me levou ao movimento de pesquisar e estudar ou, ainda, que foram as circunstâncias propiciadas pelo meu vínculo com o curso de Licenciatura que impulsionaram o preenchimento desta

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lacuna. Mas, em contrapartida, pergunto-me: o que devemos esperar dos movimentos propositivos de um curso de Licenciatura e das expectativas criadas pelos estudantes acerca do conhecimento e de seu aparato conceitual? Apenas um poder que advém de uma matrícula e que, a depender hegemonicamente do interesse e do esforço pessoal, podem levar a uma formação específica mais ou menos intensa? Neste caso, impostas determinadas condições, onde ficam posicionadas as relações entre os sujeitos nos espaçostempos institucionalizados e obrigatórios de serem vividos pelos programas e grades curriculares das escolas? Fazemos esforço para pensar e rememorar tudo aquilo que esperávamos quando éramos estudantes e nos perguntamos: seria o mesmo que pretendemos dos estudantes, nós, os agora mestres? O que há de comum naquilo que estudantes e mestres esperam de uma escola?

A segunda lacuna diz respeito às relações que construí e venho construindo com estudantes, crianças, jovens e adultos nas experiências do magistério com as chamadas classes populares. Da mesma forma que a primeira lacuna, observo que o curso de Licenciatura não contribuiu muito no meu preparo para lidar com as mais diversas situações provenientes das tensões entre minha cultura de classe média e as diferentes culturas das classes populares com as quais me deparo frequentemente nas escolas públicas. Por outro lado, não imagino como esse tipo de preparo poderia ser possível, hoje, nos cursos de Licenciatura. Mas posso falar do que sei, dos fatos que vivi ou deixei de viver.

Por exemplo, conceitualmente, não me recordo de ter abordado em nenhuma disciplina do curso de Licenciatura nem a ideia de classe, muito menos a formulação de classes populares. Assim sendo, hoje, sinto-me à vontade para afirmar que tratar deste tema é algo mais do que necessário para aqueles que vão pisar no chão de algumas escolas públicas para trabalhar e viver em seus cotidianos. Mais cedo ou mais tarde, como professores, haveremos de nos impactar com premissas que nos são impostas e/ou que carregamos conosco, justificando materialmente nossas práticas. E de que maneira essas premissas violentam frontalmente os modos de saber e fazer das classes populares? De que forma nos violentam, violentam nossos modos de saber e fazer como docentes? Em que sentido o espectro da violência conjuga seus movimentos a fim de manter e sustentar a instuição pedagógica? Em um ambiente dialético, como reagir e operar com ou contra essa violência?

Para além da minha formação tradicional, já explicitada anteriormente, meu trajeto como professor/sujeito é marcado até aqui por duas experiências muito fortes, experiências estas

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que considero elementares e que me afetam profundamente na prática diária, todas elas imbricadas no diálogo com o mundo do trabalho: a primeira delas, desenhada como artista/malabarista em cruzamentos de sinais de trânsito, ainda quando cursava a universidade; e a segunda como pesquisador do grupo Alfavela/UFF, em especial, como bolsista e co-coordenador nas pesquisas do projeto Imagem, Som e Alfabetização, financiado pela FAPERJ16. Essas experiências constituem o bojo de um movimento que me leva a estimar a ideia de compreender ausência e compromisso como um recurso substancial para a prática docente na escola pública das classes populares, respeitando, naturalmente, os limites da exploração e dos mais diversos impactos da violência, impostos pelo ritmo intenso de uma sociedade capitalista moderno-colonial.

A escola como instituição consolidada em nossa sociedade consagra um tipo de lógica que está amparada nos preceitos da modernidade, tendo alguns valores como fundantes, tais como as estéticas produzidas e chanceladas pelo eurocentrismo, bem como as verdades fomentadas e petrificadas pelo cientificismo, ambas, sob a guarda de um estado nacional, que, hoje, cada vez mais, configura-se sob o lema positivista da ordem e do progresso. Neste sentido, talvez não seja necessário aprofundar o debate acerca da importância da escola pública para este tipo de sociedade, haja vista que uma infinidade de autores já abordaram e continuam a abordar o tema com maestria. O que me parece fundamental neste momento é aprofundar a abordagem dessa consagração tendo como paradigma um outro curso orientador, que é aquele que nos constitui como uma sociedade moderno-colonial. E para pensar essa constituição, vamos tomar de empréstimo um pensamento de Frantz Fanon:

O mundo colonizado é um mundo cindido em dois. A linha divisória, a fronteira, é indicada pelos quartéis e delegacias de polícia. Nas colônias o interlocutor legal e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o gendarme ou o soldado. Nas sociedades de tipo capitalista, o ensino religioso ou leigo, a formação de reflexos morais transmissíveis de pai a filho, a honestidade exemplar de operários condecorados ao cabo de cinqüenta anos de bons e leais serviços, o amor estimulado da harmonia e da prudência, formas estéticas do respeito pela ordem estabelecida, criam em torno do explorado uma atmosfera de submissão e inibição que torna consideravelmente mais leve a tarefa das forças da ordem. Nos países capitalistas, entre o explorado e o poder interpõe-se uma multidão de professores de moral, de conselheiros, de "desorientadores". Nas regiões coloniais, ao contrário, o gendarme e o soldado, por sua presença imediata, por suas intervenções diretas e freqüentes, mantêm contacto com o colonizado e o aconselham, a coronhadas ou com explosões de napalm, a não se mexer. Vê-se que o

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intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não torna mais leve a opressão, não dissimula a dominação. Exibe-as [...] com a boa consciência das forças da ordem. O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado.17

Dentre questões que constituem a sociedade moderno-colonial, temos a violência como uma determinante focal. Essa resolução é fundamental para compreendermos em que fundação estão amparadas as nossas institucionalidades e a partir de quais premissas construímos nossas ideias, em especial, as ideias que permeiam e materializam a escola como lugar possível de emancipação. Fundada na desigualdade, como nos aponta Rancière18, a instuição pedagógica moderna desempenha ardilosamente um papel ambivalente de formação e deformação, ao mesmo tempo, contribuindo para o chamado progresso do sujeito e para manutenção de diferenças entre eles, diferenças estas que são fundamentais para preservação de um mundo cindido em dois, como afirma Fanon.

Na minha leitura, o mestre ignorante de Rancière não se satisfaz na ideia de um tratado pedagógico. Para muito além, multiplica-se sob o sopro de um tratado filosófico importante que faz pensar conhecimento, classe, igualdade, desigualdade, emancipação, embrutecimento para muito além da escola. No centro deste debate, a ideia de um método para os pobres19, carregada nas páginas do livro bússola que, aqui, traduzimos na ideia de classes populares, concepção que a mim aqui é cara e que é o ponto de fusão, visceral, que liga minha história como sujeito e professor à história dos estudantes e das escolas que trago para a pesquisa. Não obstante, faz-se necessário apontar que, investigando a memória e o cotidiano da Escola de Teatro Martins Penna, opero a partir da provocação feita por Rancière no sentido de um enfrentamento a uma concepção especial de instituição moderna – especialmente pública, mas não somente – tida como exclusiva e restrita para as camadas características de uma sociedade colonial que repito aqui e nomeio como classes populares, em constante diálogo com a tensão que integra seu sistema e que identificarei com a unidade da <igualdade e desigualdade>.

A mim, foi necessário investigar quase até a última palavra do mestre ignorante para entender uma de suas primeiras provocações, que diz respeito a ordem explicadora em face do acaso e da vontade20. Neste rumo, surgem indagações e provocações dentre as quais destaco a ideia de

17

FANON, 1968, pág 28.

18 RANCIÈRE, 2015, págs 88-91. 19 RANCIÈRE, 2015, pág 111.

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