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Por onde começa nossa mudança?

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Academic year: 2021

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Por onde começa nossa mudança?

Como escreve Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, com sua personagem Romualdo, “o importante nesta vida é que as pessoas não estão nem nunca terminadas”. Somos mesmo sujeitos em construção. Nunca estaremos prontos. No entanto, temos o péssimo hábito de pensar o contrário e julgarmos os outros de uma forma fixa, medindo o mundo com a nossa própria régua, com o rigor de quem se considera um sujeito pronto, mais evoluído que outros ou cuja visão, opinião e argumento fosse de alguma forma mesmo superior ao de outra pessoa por mais modernos que talvez possamos parecer.

Achamos bonito defender a dialética, mas quase nada sabemos sobre discutir com a diferença. É inteligente calar e escolher a forma e o momento para agir comunicativamente e mais que isso, reaprender a ter relações sociais comunicativas com a diversidade, com a diferença de pensamento e de crenças, porque em geral não sabemos ouvir. Mesmo quando somos nós a levantarmos a bandeira da inclusão e da diversidade precisamos ouvir a diferença por mais absurda que nos pareça. É o que exigimos dos outros em relação a nós mesmos, então façamos a mesma coisa.

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Não deveria nos incomodar ouvirmos alguém que não pensa como a gente pensa. Não deveríamos nos sentir incomodados quando não concordamos com posições e pensamentos, ou por decidirmos silenciar em certas situações. Por que não podemos silenciar nunca? O silêncio nos incomoda? Quando o silêncio incomoda, então esta é uma comunicação não violenta contra quem silencia e deveríamos ser os primeiros a lutarmos para não exercê-la em busca de aceitação, acomodação, medo ou o que quer que seja. Quando digo que podemos silenciar evidentemente eu não falo aqui deste silêncio que causa sofrimento e anula o sujeito, falo de um silêncio estratégico, inteligente, e sensível, capaz de reconhecer que a voz do outro também é legítima de se erguer ainda que não concordemos com uma palavra do que esteja sendo dito.

Esse sentimento de achar que o silêncio é ruim pode estar também na raiz da cultura que diz de modo mitômico que quem cala consente, embora saibamos todos que não é bem assim, da mesma forma que quem acena balançando a cabeça positivamente não está necessariamente concordando com o que dizemos, nem talvez nos ouvindo, ou apenas esteja nos dando um sinal convencional de que esteja dando atenção e entendendo.

Entender alguém é algo muito distinto de concordar com a pessoa.

Não deveria nos incomodar a impressão de desconforto de quem não quer nos escutar porque sentimos que nossas opiniões não são aceitas. A disposição para a comunicação é uma atitude que precisa ser livremente arbitrada. O que deveria importar é

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quando nós nos sentimos valorosos por sabermos oferecer a condição da escuta, tão fundamental ao diálogo com a diferença e sermos capazes de exercer a verdadeira democracia que é a democracia da escuta. Se quisermos mudar o mundo, devemos começar a mudança em nós mesmos. Portanto, não exigindo de quem não nos ouve, mas sendo alguém capaz de ouvir. E ouvir a igualdade é muito fácil.

A democracia que diz e exerce o direito de todos se expressarem mesmo a quem não pensa como nós é que é o grande desafio.

Não importa de que lado cada um de nós esteja num debate dialético. Ou será que pensamos presunçosamente que uma consciência moral (em geral, a nossa, claro), ou religiosa, intelectual, e etc seja maior que a do outro ou que ela esteja acima da do outro? Quem disse que só eu tenho direito à diferença? O que me faz pensar que quando se fala em diversidade é de minha singularidade que estão falando?

Outras questões incômodas porque desalojam nossa confortável forma como aprendemos as coisas precisam ser recolocadas:

Quem disse que preciso ser democrático? Quem disse que preciso ser vanguardista? E mais: quem garante que eu seja mesmo democrático ou que eu seja de fato mais evoluído que alguém? Quem me oprime e me exige ser liberal? Quem me impõe um valor de superioridade em relação ao que pensa diferente de mim? Quem é este que se julga no direito de me oferecer um rótulo porque no seu mundo de etiquetas é assim que ele me classifica?

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Só vamos ser civilizados quando formos capazes de conviver não apenas RESPEITANDO o negro, o gordo, o gay, o pobre, ou seja qual for a nossa diversidade, mas, quando estas diversidades não fizerem mais a menor diferença. Quando olharmos uma pessoa e não repararmos na sua cor, cabelo, barriga ou na grife de sua roupa. Quando a vermos não pelo que ela representa em nossos mundinhos, quando aprendermos a olhar para as pessoas sem colocá-las nas gavetas de nossos rótulos, como separando as pessoas do meu mundo e do mundo que eu não quero ou não tenho.

Quando ouvimos palavras como transgênero, gay, negro, gordo, pobre, homossexual, ou gringo, alemão, elite, branco, rico, etc., cada um de nós tem diferentes referentes sobre estes signos e podemos estar falando de objetos e sentidos diferentes quando numa situação de comunicação.

Marshall Rosenberg diz que quando atacado com agressões verbais por uma pessoa numa certa ocasião, ele não deu a menor atenção ao que essa pessoa dizia sobre o que ela pensava dele.

Quanta sabedoria saber viver assim, e nem assim Marshall ignorou a pessoa, apenas mudou o foco da situação. Damos muita importância ao que outras pessoas pensam de nós e nos importamos demais em dizer o que pensamos dos outros, quando deveríamos focar nos sentimentos das pessoas para dizerem o que dizem.

A civilização começa em termos não apenas do discurso, mas das práticas, porque ver um mendigo e se solidarizar com sua condição é uma coisa, mas sentir como se ele fosse parte da gente

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mesmo é que se torna a grande diferença. Nisso reside a real condição humana. Empatia é diferente de alteridade. Precisamos pensar um mundo em que estejamos falando todos das mesmas coisas ainda que com posições diferentes, que tenhamos clareza sobre os conceitos daquilo que discutimos, para não confundirmos raça com etnia, fenotipia com critério de direitos, mérito com privilégio, direito com exigência, princípios com vontades, fascismo com ideologia de direita, revolução com militância de esquerda, natureza com orientação, ou forma e substância e coisas assim.

Precisamos lembrar que inclusão não é colocar as pessoas num espaço determinado sem darmos a elas condições de lá estarem, porque é o mesmo que oferecer liberdade a quem sofre de alguma escravidão mas que não sabe nem pode viver fora dela. O mundo das diferenças é o mundo do respeito e não da tolerância - porque o vocábulo tolerar tem carga semântica de suportar e suportar parece um favor que fazemos aos outros. Somos mais do que aquilo que nos identifica visivelmente. Da mesma forma que não sou gordo, mas estou gordo, todos somos mais que as nossas características porque elas não nos constituem. Não são o que somos. Elas apenas são circunstâncias de nós mesmos.

Não precisamos de mais rótulos, de mais letras no leque das sexualidades identitárias inventadas por quem tem necessidade de rotular como se identidade do sujeito fosse uma etiqueta.

Talvez devêssemos reclamar e exigir o direito não a estas classificações, mas, justamente o contrário: de não sermos rotulados, de não darmos a ninguém o direito de achar que isso

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nos define ou que nossa sexualidade, situação social e financeira, nossa religião, nossos valores morais, e crenças, etc. devam ser públicas, porque afinal nada disso é da conta de ninguém. O que importa é se somos humanos, se somos capazes de ouvir sem tampar os ouvidos ou fingir ignorar quem fala o que não queremos ouvir, pois ignorar é a forma mais forte de violência.

Uma violência que em última instancia é contra quem age assim.

Uma formação discursiva que se coloque contra outra fala no fundo acaba promovendo-a. Um contradiscurso alimenta o discurso antagônico e o favorece. Aristóteles ensina em Arte Retórica que não se deve mencionar nem uma linha sobre o que não se concorda. Quem desqualifica o recalcitrante usa de uma estratégia muito antiga e geralmente tem menos êxito de quem se ocupa divulgando o que acredita.

Precisamos estar atentos a formações discursivas que chegam e lutam por dominação de sentidos na vida social; não podemos ser escravos delas, interpelados por uma linguagem que nos exige sermos politicamente corretos, tolerantes, ou seja lá o que for, quando temos sim todo o direito de não concordarmos com tolerâncias e querermos no lugar delas respeito que é muito mais dignificante, que queiramos antes de um politicamente correto um honesto e legítimo processo dialético, um diálogo baseado na disposição e nas vontades e uma sociedade em que as minorias ou nem tão minorias assim não exerçam suas liberdades em nome apenas de uma hegemonia ou de poder discursivo sobre outras formas igualmente válidas ainda que antagônicas de crer e sentir o mundo e a realidade em que vivem.

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Será que somos mesmo fruto da sociedade em que vivemos? O interacionismo simbólico não é a única forma de compreender como construímos nossa identidade. O contexto da comunidade a nossa volta não nos define nem talvez nos representa. Erwing Goffmann escreveu a respeito estudos controversos, tirando do social este caráter moldador da identidade e apostando na liberdade humana.

Professor Geder Parzianello São Borja, 3 de outubro de 2018

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