• Nenhum resultado encontrado

Esta e não outra é a minha carne. Este e não outro é o meu sangue. Este e não outro é o ar que respiro. Este e não outro é o meu corpo. Eu.

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "Esta e não outra é a minha carne. Este e não outro é o meu sangue. Este e não outro é o ar que respiro. Este e não outro é o meu corpo. Eu."

Copied!
9
0
0

Texto

(1)

Esta e não outra é a minha carne. Este e não outro é o meu sangue.

Este e não outro é o ar que respiro.

Este e não outro é o meu corpo. Eu.

Esta sou eu e não outra coisa.

Sou a que dá nome. Sou verbo, sou palavra. Ajoelho-me perante mim, perante o meu corpo soberano, leito da minha narração.

E nomeio.

Nomeio-me.

Este e não outro é o meu nome: Maria. Maria Madalena.

(2)
(3)

11

1

E

stou nesta cidade há cerca de dez anos e ainda nem sequer me adaptei ao território. Seria mais correto da minha parte admitir que o território, a atividade frenética de Éfeso, não se adaptou a mim. Neste momento, porém, isso não im- porta. Proponho-me finalmente passar a limpo tudo o que vivi. Aquilo que o tempo que me resta me permitir escrever.

Não será uma tarefa fácil e eu já sou velha. Não me sinto uma idosa, da mesma forma que nunca me senti uma jovem, mas, principalmente nas longas noites de insónia, os ossos e as ar- ticulações já me incomodam e aproximam-me cada vez mais do fim. Silêncio, minha coluna, murmuro sem perturbação a cada amanhecer.

Assim é, sem perturbação.

Sou Maria, filha de Magdala, a quem chamam Madalena.

Cheguei a uma idade em que já não temo o pudor que nun- ca tive. Eu, Maria Madalena, ainda tenho em mim a mesma fúria provocada pela estupidez, pela violência e pelo domí- nio que os homens impõem sobre outros homens e contra as mulheres.

Mas decidi que não vou escrever dominada pela fúria. Impus- -me fazê-lo como uma ave constrói um ninho, minuciosamente,

(4)

CRISTINA FALLARÁS

com amor e para memória futura. É um ninho que não vou ocupar, mas que está aberto a quem precisar de abrigo.

Sim, sou velha. Já vivi demasiado. Apesar de a minha idade não ser importante, sei que vou morrer em breve. Não enten- do o empenho das pessoas em contar os anos… um, catorze, trinta… O que se deve contar são os sucessos, os dias de dor e os dias de glória, os dias de amor e os de violência, devemos contemplar a beleza e a infâmia.

A vida não é apenas uma coleção de datas, mas sim de memórias, emoções e acontecimentos, de aprendizagens e derrotas. O que alcançaria eu se deixasse um mero inventário de anos, uns atrás dos outros? Num ano cabem um futuro e um passado inteiros.

Tive a imensa sorte de conhecer a luz que emana dos cor- pos e da ciência. No meio de tanta inquietação, de tanta cruel- dade vã e de mutilações contra a terra, eu, Maria Madalena, ganhei conhecimento, e neste conhecimento aquilo que sou permanecerá ao longo dos séculos. Porque nenhum conheci- mento é inútil.

A decisão de deixar registo daquilo que vi, dos êxitos extraordinários que me foram oferecidos sem que da minha parte tenha demonstrado outros méritos que não a minha pre- sença, é firme. Muito mais firme à medida que vou dando conta das vozes e dos urros determinados a falsear o sucedi- do, apropriando-se da realidade, do que aconteceu, tentando modificá-lo até que tenha o tamanho do próprio corpo, mo- dificando a realidade à sua medida. Infelizmente, isto tam- bém se chama memória. Uma memória falseada que serve tão-só para dar lucro.

Chegam-me muitos escritos, lendas e mentiras que têm como único objetivo conspurcar aquilo que vivemos junto do

(5)

13

O EVANGELHO DE MARIA MADALENA

homem a quem, aqueles que antes o repudiaram e atraiçoaram, apelidam hoje de «mestre». O que querem é tirar proveito, enriquecer, acumular poder e saciar a sua vaidade. Ou então pretendem apenas salvar-se a si mesmos. Não há pecado ne- nhum nisso, se excluirmos a miséria, a cegueira, a estupidez e a mesquinhez. A sua sede de idiotice não tem limites.

Mas eu também fui conivente.

Conheci o Nazareno. Fui a única que esteve sempre a seu lado. Nunca o abandonei. Não o digo com vaidade. Foi assim mesmo que aconteceu, é como eu sou e era este o nosso reconhecimento mútuo. Sento-me para contar tudo, para apagar todas as mentiras que se contaram e para que se compreenda o seu verdadeiro fim. Nada será narrado em vão.

(6)
(7)

15

2

P

artimos de Magdala no ano de 62. Magdala, o meu por- to, a minha aldeia nas margens do mar da Galileia, a minha casa, a nossa fonte de vida. Simão Pedro e Paulo de Tarso ainda eram vivos, e a devastação de Jerusalém, assim como a destruição do Templo, afiguravam-se coisas impensá- veis. Acompanhada por João, convencemos Maria, a mãe do Nazareno, da necessidade de abandonar aquela região, por- que sabíamos que o seu corpo começara a revelar-se aque- brantado, parecendo já um pequeno pardal. Fomos por terra até Tiro e dali navegámos até Éfeso. Maria faleceu pouco tempo depois de pisar este lugar. Ela era pouco mais do que um suspiro, e a viagem por caminhos de pedra seca, enfren- tando sol, vento e cruéis dias de chuva foi dura, para mais combinada com a violência turva que já naquela altura trans- formava a realidade num circo de feras.

Trinta anos depois do desaparecimento do seu filho, e acabadas de chegar a Éfeso, decidi perguntar-lhe. Trinta anos! O meu silêncio durante este tempo não se deveu à cobardia, mas sim ao respeito. Via-a agora a desvanecer-se, prostrada depois de uma viagem evidentemente excessiva para uma pessoa como ela. Por baixo da pele translúcida, a

(8)

CRISTINA FALLARÁS

sua caveira era um amontoado de espaços ocos. Nunca vira em ninguém um empenho tão grande, tamanha determinação em viver.

— Não guardas rancor, Maria?

Olhou para mim com uma expressão muito característica nela, um misto de cansaço e espanto.

— Achas que o rancor serviria para alguma coisa? Acaso devia ter-lhes entregado também a minha vida? Não, acho que não o devia fazer. Sentir rancor implicava oferecer-me em sacrifício.

— Entendo.

— Eu não entendo. Foram tantas as vezes em que não entendi nada do que se passava. Tão-pouco entendo o que está a acontecer agora.

— Mas há paz em ti.

— Nós somos diferentes. — A sua voz era um finíssimo fio em permanente tensão. — Essas coisas parecem ser impor- tantes para ti, o que há ou não há em mim ou em ti parecem- -te coisas com significado.

— E não o têm? — No preciso momento em que formulava a pergunta, apercebi-me de imediato de que era um erro, de que a sua forma de prever, de se submeter era como um farrapo velho que eu manuseara vezes demais. Maria sempre cumprira o seu papel como mãe, enquanto parte da sua tribo, sem nunca o questionar. Nisso, sim, éramos radicalmente diferentes.

— Creio que não. Não que não possam ter, mas, no meu caso, acho que não. A vida passou por mim, através de mim, apenas isso. Verdade seja dita que, em determinados momen- tos, pensei que os nossos atos podiam transformar o futuro, as coisas que aconteceriam depois de nós.

— Sabes que é essa a minha determinação.

(9)

17

O EVANGELHO DE MARIA MADALENA

Conhecíamo-nos muito bem, e entre nós já tudo havia sido dito.

— Sim. Ficam a dor e as palavras. A minha dor morre comigo. Sim, sim, já sei que as palavras permanecem, mas sabes durante quanto tempo? Consegues responder a essa pergunta? Alguém consegue?

Agora, aqui sentada, continuo sem ter resposta para esta pergunta. Escolho as palavras, ordeno-as umas atrás das outras.

E neste ato encerro a esperança de que elas permaneçam, de que tudo isto não seja apenas um esforço inútil. Não quero pensar que possa ser assim. Senão, de que serviria tamanho esforço?

Maria viu como torturaram o seu filho. Permaneceu ali, sem desviar os olhos por um instante que fosse. Ambas fo- mos testemunhas da crueldade extrema com que castigaram a sua carne, mas eu não era a mãe dele. Após testemunhar tamanha bestialidade, após ver tantos corpos estropiados, continuo sem saber o que sente uma mãe perante o corpo do filho em agonia. E também não sei como se sente perante a felicidade. Não fui eu quem o gerou.

Estivemos sempre juntas durante o tempo que antecedeu a partida do Nazareno e a morte de Maria, alguns anos antes, já em Éfeso. O tempo, porém, pouco significado tem. Três anos podem durar mais de trinta.

Talvez ela tivesse razão ao descartar a relevância de tudo o que aconteceu nas nossas vidas. Não são as nossas vidas, mas sim o testemunho da vida dos outros. Ainda assim, como poderia eu narrar agora tudo o que vivi ao lado do Nazareno sem partir da minha própria existência? Não saberia fazê- -lo, honestamente, não teria como. Sou aquela que esteve ao lado dele, diante dele, dentro dele.

Sim, mas não fui eu quem o gerou.

Referências

Documentos relacionados

S em qualquer sombra de dúvida, quando nosso Senhor Jesus Cristo nos ensina na oração do Pai Nosso a dizer que o nome de Deus deve ser santificado na Terra, do mesmo

Em vez de testar separadamente as duas hip´ oteses, no entanto, Sunshine e Tyler elaboraram um modelo de equa¸c˜ oes estruturais com uma an´ alise de caminhos para

O diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Edvaldo Santana, disse ontem que o atual cenário de turbulências no setor elétrico “está caminhando para

Há amplo espaço para preocupação quanto às dificuldades para aprovação de reformas necessárias à contenção do déficit público, peça crucial para o sucesso

Nossos olhos se arregalaram por um momento, até que alguém resolveu, corajosamente, questionar: “Mas por quê?” E a resposta veio pronta: “Porque, meu filho, por mais que nós

Se nesse período crítico, ela encontra alguém que, ignorante e inescrupulosamente, lhe fornece exercícios respiratórios, e se ela segue as instruções fidedignamente na esperança

A vítima de assédio sexual também pode denunciar o ofensor imediatamente, procurando um policial militar mais próximo ou a segurança do local - caso esteja em um ambiente privado ou

- Se somente o município figura como devedor no título executivo judicial, não pode o ex-prefeito, que não participou do processo de conhecimento, ser parte na execução, não