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EDUCAÇÃO PÚBLICA, FORMAÇÃO PROFISSIONAL E CRISE DO CAPITALISMO CONTEPORÂNEO

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Academic year: 2021

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EDUCAÇÃO PÚBLICA

, FORMAÇÃO PROFISSIONAL E CRISE DO CAPIT

ALISMO CONTEPORÂNEO

Autores:

Aracélia C. Farias, pedagoga e professora da educação básica, araaceliafarias@yahoo.com.br. Betânia Moreira de Moraes, doutora em educação e professora da UECE, betaneamoraes@ hotmail.com.

Cleide Maria Quevedo Quixadá Viana, doutora em educação e professora da UnB, cleidequixada@gmail.com (Org.). Cristiane Porfi rio do Rio, doutora em educação e professora da UECE, crisporio@yahoo.com.br. Deribaldo Santos, doutor em educação e professor da UECE, deribaldosantos@yahoo.com.br. (Org.).

Frederico Costa, doutor em educação e professor da UECE, frederico.costa@uece.br.

Edna Bertoldo, doutora em educação e professora da UFAL, edna_bertoldo@hotmail.com. Edvaldo Albuquerque dos Santos, mestre em educação e técnico da Secretaria de Educação e do Esporte do Estado de Alagoas, professoredvaldo@uol.com.br. Helena Freres, doutoranda em educação e professora da UECE, helenafreres@hotmail.com. Ilma Passos Alencastro Veiga,

doutora em educação e professora da UnB, ipaveiga@terra.com.br. Jackline Rabelo, doutora em educação e professora da UFC, jacklinerabelo@uol.com.br (Org.). Jorge Alberto Rodrigez, doutor em educação e professor da UECE, jorgearp@y ahoo.com.br.

Maria Cleidiane Cavalcante Freitas, mestranda em educação na UECE, cleidia necavalcante@ hotmail.com.

Maria das Dores Mendes Segundo, doutora em educação e professora da UECE, mendesegundo@uol. com.br.

Osterne Maia, doutor em educação e professor da UECE, osterne_fi lho@uol.com.br.

Ruth de Paula, doutora em educação e professora da UECE, ruthm@secrel.com.br.

Susana Jimenez, PhD. em educação e professora da UECE, susana_jimenez@uol.com.br (Org.).

Valdemarin Coelho Gomes, doutor em educação e professor da UFC, rabbitmario@hotmail.com.

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EDUCAÇÃO PÚBLICA, FORMAÇÃO

PROFISSIONAL E CRISE DO

CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

(3)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ Reitor

José Jackson Coelho Sampaio Vice-Reitor

Hidelbrando dos Santos Soares Editora da UECE Erasmo Miessa Ruiz

Conselho Editorial Antônio Luciano Pontes Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes

Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso Francisco Horácio da Silva Frota Francisco Josênio Camelo Parente

Gisafran Nazareno Mota Jucá José Ferreira Nunes Liduina Farias Almeida da Costa

Lucili Grangeiro Cortez Luiz Cruz Lima Manfredo Ramos Marcelo Gurgel Carlos da Silva

Marcony Silva Cunha Maria do Socorro Ferreira Osterne

Maria Salete Bessa Jorge Silvia Maria Nóbrega-Th errien

Conselho Consultivo Antônio Torres Montenegro (UFPE)

Eliane P. Zamith Brito (FGV) Homero Santiago (USP)

Ieda Maria Alves (USP) Manuel Domingos Neto (UFF) Maria do Socorro Silva Aragão (UFC) Maria Lírida Callou de Araújo e Mendonça (UNIFOR)

Pierre Salama (Universidade de Paris VIII) Romeu Gomes (FIOCRUZ)

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Deribaldo Santos Susana Jimenez

Cleide Maria Quevedo Quixadá Viana Jackline Rabelo

EDUCAÇÃO PÚBLICA, FORMAÇÃO

PROFISSIONAL E CRISE DO

CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

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Ficha Catalográfi ca

Bibliotecário Arnaldo Ricardo do Nascimento CRB-3/909

E25 Educação pública, formação profi ssional e crise do capitalismo contemporâneo./ Deribaldo Santos, Susana Jimenez, Cleide Maria Quevedo Quixadá Viana, Jackline Rabelo (Organizadores). –Fortaleza: EdUECE, 2013.

313 p.

ISBN:

1. Educação – Pública. 2. Formação Profi ssional. 3. Crise do Capitalismo Contemporâneo. I. Santos, Deribaldo. II. Jimenez, Susana. III. Quixadá Viana, Cleide Maria Quevedo. IV. Rabelo, Jackline. V. Título

CDD: 370.331335 Educação - Pública

Educação - Formação Profi ssional

Educação - Crise do Capitalismo Contemporâneo

© 2013 Copyright by Deribaldo Santos, Susana Jimenez, Cleide Maria Quevedo Quixadá Viana e Jackline Rabelo

Impresso no Brasil / Printed in Brazil Efetuado depósito legal na Biblioteca Nacional

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Editora da Universidade Estadual do Ceará – EdUECE Av. Paranjana, 1700 – Campus do Itaperi – Reitoria – Fortaleza – Ceará

CEP: 60740-000 – Tel: (085) 3101-9893. FAX: (85) 3101-9893 Internet: www.uece.br – E-mail: eduece@uece.br / editoradauece@gmail.com

Editora fi liada à

Coordenação Editorial Erasmo Miessa Ruiz

Diagramação Narcélio Lopes Capa Cristiano Rio Revisão de Texto Helena Freres

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SUMÁRIO

Apresentação

Deribaldo Santos ... 7

PRIMEIRA PARTE:

Pressupostos e problematizações contextuais

Marxismo, trabalho e ser social

Frederico Costa, Ruth de Paula, Betânia Moraes ...19

Concepções epistemológicas e onto-históricas da técnica e

da tecnologia: um debate no legado de Álvaro Vieira Pinto

Deribaldo Santos ... 55

Educação e desenvolvimento

Jorge Alberto Rodriguez ...73

Indivíduo e educação: notas sobre o processo de (des)humanização

do ser social

Betânia Moraes, Ruth de Paula, Frederico Costa ... 89

A chave do saber: um exame crítico do novo paradigma

educacional concebido pela ONU

Osterne Maia, Susana Jimenez ...113

A educação dos povos Ibero-americanos no contexto de crise

estrutural do capital

Jackline Rabelo, Maria das Dores Mendes Segundo, Helena

Freres, Valdemarin Coelho Gomes ... 135

(7)

SEGUNDA PARTE:

Ensino básico e formação profi ssional do trabalhador

brasileiro em sintonia com os interesses da classe dominante

Plano de Desenvolvimento e Acompanhamento do Projeto

Político-Pedagógico junto aos sistemas de ensino integrados

ao Programa Brasil Profi ssionalizado

Cleide Maria Quevedo Quixadá Viana, Ilma Passos Alencastro

Veiga ...157

O ProJovem e a educação na sociedade contemporânea

Ruth de Paula, Betânia Moraes, Frederico Costa ... 181

As determinações do capital na formação do trabalhador: o

ensino médio regular noturno em questão

Edvaldo Albuquerque dos Santos, Edna Bertoldo ...195

Baixos índices de profi ciência no ensino básico público

cearense: primeiras aproximações

Cristiane Porfírio do Rio ...225

Ensino médio integrado no Estado do Ceará: o “Caminho de

pedras” do empreendedorismo para a escola pública

Aracélia C. Farias, Deribaldo Santos, Maria Cleidiane C.

Freitas ... 259

Sorria! Você está sendo “educado para o trabalho”: uma

análise crítica da expansão da graduação tecnológica brasileira

Deribaldo Santos, Susana Jimenez, Maria das Dores Mendes

Segundo ... 289

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Apresentação

As retrospectivas midiáticas sobre o primeiro ano da segunda década do século XXI, lotaram os noticiários com relatos sobre as manifestações populares por democracia no mundo árabe, sobre as reivindicações colocadas no coração do imperialismo americano, pelo movimento “Ocupe Wall Street”, bem como sobre protestos diversos

encabeçados por jovens em toda a Europa Ocidental, dentre outros. As análises acerca de tais eventos, contudo, com as costumeiras e bem vindas exceções, não vão além da habitual miopia necessária à manutenção da ordem capitalista. Não há nos diagnósticos apresentados, de maneira geral, o reconhecimento devidamente preciso quanto à natureza e ao escopo da crise sem precedentes na história da humanidade, que o capital passou a degustar a partir do fi nal da década de 1960, início dos anos de 1970.

Como indicado por Mészáros em seu já clássico livro Para além do Capital, a crise crônica que passou a afetar a sociedade contemporânea

não se restringe mais apenas aos países da periferia do sistema; os Estados de capitalismo central passam a acumular altos níveis de desemprego, desesperadores índices de violência, desordenamento urbano, diversos e cruéis ataques ao meio ambiente, entre tantos outros problemas vistos a olhos nus.

A receita aviada pelos defensores da ordem para corrigir tais problemas recai, infalivelmente, na reordenação das relações entre Estado e mercado. O Estado de Bem Estar Social passa a ser acusado de desatualizado; o binômio da produção industrial taylorista/ fordista é considerado démodé; Lord Keynes ultrapassado. A nova

ordem globalizada, neoliberal e pós-moderna se levanta com pompa, anunciando deter a solução para os problemas da humanidade, cuja fórmula reza não restar mais lugar para políticas públicas

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universalistas, exigindo, ademais, que o Estado deixe agir o mercado desembaraçadamente.

A cegueira idealista burguesa da maioria dos analistas econômicos do mundo, uns por pura falta de compreensão da realidade e outros por duvidoso perfi l de caráter (em grande parte das vezes, os dois casos), não consegue enxergar que o capital é incorrigível e incontrolável. Por conseguinte, como muito bem nos aponta Mészáros, conquanto as crises cíclicas apenas serviram, em última instância, para lhe proporcionar novas estratégias de sobrevivência, a crise contemporânea, de natureza estrutural, requer do capital que aprofunde de forma ímpar, a exploração e a desigualdade, com vistas a garantir sua reprodução. Portanto, as reformas dos Estados periféricos, particularmente, dos países da América Latina e, mormente as educativas efetivadas a partir da década de 1990 no Brasil, servem, quando muito, para expor o próprio limite do sistema, conjugado à impotência de, por dentro da ordem, reverter-se a situação de barbárie com que a humanidade está a conviver.

E, assim, passamos a presenciar uma ofensiva cada vez maior de ataque do imperialismo, desta feita, representado por seus guardiões (as organizações internacionais), sobre os históricos direitos sociais duramente conquistados pela classe trabalhadora.

A educação, destacadamente a formação profi ssional efetivada pela escola pública, objeto específi co deste livro, em meio a outros setores como saúde e previdência, passa a representar uma das presas prediletas da política de utilização do Estado como forma de garantir a acumulação do lucro capitalista no quadro da crise estrutural.

Nesse escopo, manifestações de protesto se espalham por todo o mundo, despontando como expressões fenomênicas da crise, para

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usarmos os termos de Ricardo Antunes. Não é oneroso lembrar os eventos de protesto ocorridos em Paris no ano de 2005. Nessa oportunidade, os dados divulgados pelo Observatório Nacional de Zonas Urbanas Sensíveis – órgão ofi cial do governo francês – afi rmaram que o índice de desemprego entre os jovens protagonistas dessas manifestações girava em torno de 40%, enquanto a média nacional estava próxima de 11%. Não havia dúvida de que esses episódios, denominados pela mídia mundial, de distúrbios franceses, espalhar-se-iam por toda a Europa. Não tardamos a presenciar manifestações de igual natureza, ocorrendo na Grécia, na Espanha, na Inglaterra, dentre outros países.

O cenário de crise profunda por que passa o capitalismo contemporâneo impossibilita a acumulação do capital sem o aprofundamento da exploração. Com efeito, essa agudização ocorre com o aporte precioso e indispensável do Estado. Isso acontece cotidianamente, mesmo acreditando os cegos do castelo, ser o Estado inefi ciente, devendo, por esta razão, afastar-se da economia. Esse é o pano de fundo que envolve a trama de mediações que articulam, no atual estágio da experiência humana, os diferentes complexos sociais.

É a partir desse contexto, portanto, que o presente livro procura analisar a problemática da escola pública brasileira, particularizando a formação profi ssional, a qual se destina, por excelência, à classe trabalhadora.

A coletânea Educação pública, formação profi ssional e crise do capitalismo contemporâneo sintetiza, primordialmente, parte das

pesquisas que se desenvolvem no interior ou no entorno do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário da Universidade Estadual do Ceará – IMO/UECE. Esse Instituto foi o responsável maior por articular diversos investigadores vinculados a grupos de pesquisa, programas de pós-graduação e laboratórios de pesquisa de quatro universidades distintas, que se dispuseram a apresentar suas exposições na presente publicação.

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

Registramos o importante suporte em forma de fomento fi nanceiro concedido pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científi co e Tecnológico – FUNCAP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi co e Tecnológico – CNPq, respectivamente através do aporte designado ao desenvolvimento dos projetos de pesquisa Entre o mercado de trabalho e a formação humana: examinando criticamente a proposta de Ensino Médio Integrado do Estado do Ceará, do Programa de bolsas de produtividade em pesquisa e estímulo à interiorização – BPI (Edital N° 02/2010); e Graduação tecnológica no Ceará: contrastes e perspectivas do Instituto CENTEC/ CE, do Programa Universal (Edital MCT/CNPq N° 014/2010), que garantiram a concretização desta publicação.

A coletânea divide-se em duas partes distintas e complementares. A primeira parte, intitulada Pressupostos e problematizações contextuais, contém as comunicações responsáveis por explicitar o

trabalho como o complexo fundante do ser social, para, sobre esse fundamento, trazer ao debate, o lugar onto-histórico da técnica e da tecnologia; contemplando, sob diversos ângulos, as relações entre os complexos do trabalho e da educação no quadro da crise da sociabilidade contemporânea. Já a segunda parte, Ensino básico e formação profi ssional do trabalhador brasileiro em sintonia com os interesses da classe dominante, avança sobre a questão específi ca da educação

pública, direcionando seus exemplos para o ensino básico e para a formação profi ssional para, por fi m, fechar suas refl exões com o debate sobre o chamado Ensino Superior Não Universitário (ESNU). Como adiantado, todavia, esta parte da publicação complementa aquela, pois, a partir de exemplos empíricos, expõe os limites das políticas públicas neoliberais, que, no liame de suas contradições, buscam, com efeito, por intermédio das reformulações propostas pelos organismos transnacionais, extrair do complexo educativo, formas “inovadoras” de manutenção do status quo.

(12)



A riqueza da análise sobre a importância do trabalho no desenvolvimento do ser social e seu rigor conceitual-didático, atribuiu ao artigo Marxismo, trabalho e ser social, de autoria de Frederico

Costa, Ruth de Paula e Betânia Moraes,a desafi adora tarefa de abrir a coletânea. Por intermédio desta exposição, extraída das investigações do grupo desenvolvidas a partir das discussões fertilizadas no IMO, bem como no Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGE da UECE, e no Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará – UFC, os autores aprofundam, de forma devidamente rigorosa, a relevância da categoria trabalho para o correto entendimento do complexo educativo.

A confusão categorial posta em prática pela epistemologia burguesa-idealista que confere à técnica e seu locus, a tecnologia, dois papeis

contrapostos: por um lado apresentando-a como a salvação da humanidade, e por outro, atribuindo-lhe a culpa maior pelos males verifi cados nos países periféricos, é debatida de forma criticamente esclarecedora no artigo Concepções epistemológicas e onto-históricas da técnica e da tecnologia: um debate fundado no legado de Álvaro Vieira Pinto.

Deribaldo Santos, sintetiza, neste ensaio, parte do trabalho desenvolvido por Vieira Pinto em seu livro póstumo O conceito de tecnologia, onde este Filósofo, calcado em algumas das principais teses marxianas, deslinda o verdadeiro sentido da técnica e da tecnologia para o mundo dos homens. Jorge Alberto Rodrigez, por sua vez, contribui com o debate ao expor em seu ensaio Educação e desenvolvimento o contexto que

envolve a publicação do documento Educação e conhecimento: eixo da

transformação produtiva com equidade. O autor dialoga com as teorias

debatidas no seio da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe – CEPAL, bem como no interior da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, para, com base em autores como Gaspar Weinnberg e German Rama, tecer

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

suas inferências sobre o processo de desenvolvimento da educação na América Latina.

O artigo intitulado Indivíduo e educação: notas sobre o processo de (des)humanização do ser social de autoria de Betânia

Moraes, Ruth de Paula e Frederico Costa, faz parte das pesquisas que seus autores desenvolvem na integração entre os programas de pós-graduação em educação da UECE, bem como da UFC. O ensaio busca, inicialmente, problematizar a concepção naturalizada em nossas consciências de que os indivíduos são essencialmente egoístas, competidores, ou seja, que o egoísmo e o ato de competir são inerentes à essência humana; posteriormente, debate a atividade essencial da educação e o seu real papel na formação do indivíduo; problematiza, por fi m, a concepção de atividade pedagógica como prática redentora geral, isto é, questiona a concepção de educação como a verdadeira tábua de salvação, capaz de sanar todas as formas de miséria vigente em nossos dias. Os autores apontam nessa exposição para o papel efetivo da educação no processo de constituição do indivíduo livre e de uma vida plena de sentido, qual seja: uma formação assente na luta pela superação da exploração do homem pelo homem.

A chave do saber: um exame crítico do novo paradigma educacional concebido pela ONU, de Osterne Maia e Susana

Jimenez, por seu turno, insere-se no debate educacional radicalmente crítico, destacando os princípios e diretrizes formuladas a partir da paradigmática I Conferência de Educação par a Todos, realizada em Jomtien, em 1990. Tratando-se, reconhecidamente, de um Manual de larga popularidade da vulgata pedagogista, o Relatório, Educação, um tesouro a descobrir, elaborado, a partir de Jomtien, sob a coordenação de Jacques Délors, é submetido, aqui, a um rigoroso exame, o qual disseca, impiedosamente, cada um dos quatro pilares consagrados pela ONU para a condução dos aff airs educacionais no decantado novo milênio.

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

Demonstram os autores que o modelo ONU, por estes, referido, muito curiosmente, através do vocábulo CHAVE (C de conhecimento, H de

habilidade, A de atitude, V de valores e E de existencial), pretende superar

as supostas limitações e parcialidades dos modelos pedagógicos anteriores, para, assim, atender às exigências colocadas pelo mundo contemporâneo, em toda sua linha de argumentação - ou mistifi cação - passando ao largo, como não poderia deixar de ser, do complexo de determinações que, efetivamente respondem pelos problemas e desafi os a que a educação é chamada a responder na perspectiva da emancipação humana.

Fecha a primeira parte desta publicação o artigo A educação dos povos ibero-americanos no contexto de crise estrutural do capital,

fruto de refl exões apreendidas pela pesquisa O Movimento de Educação para Todos e a Crítica Marxista, gestada no IMO e desenvolvida de forma integrada entre a UECE, através do PPGE, e a UFC, no âmbito do Linha Marxismo, Educação e Luta de Classes – E-Luta do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira desta universidade. Assinada por Jackline Rabelo, Maria das Dores Mendes Segundo, Helena Freres e Valdemarin Coelho Gomes, a comunicação propõe-se a examinar a função social do complexo educativo nos discursos das conferências promovidas pela Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), ocorridas entre os anos de 1985 e 2008.

Para iniciar a segunda parte do livro, Cleide Maria Quevedo Quixadá Viana e Ilma Passos Alencastro Veiga apresentam o artigo

Plano de Desenvolvimento e Acompanhamento do Projeto Político-Pedagógico junto aos sistemas de ensino integrados ao Programa Brasil Profi ssionalizado, no qual, as autoras investigam,

com base no Decreto nº. 5.154/04, a estrutura da proposta de Plano de Desenvolvimento e Acompanhamento do Projeto Político-Pedagógico

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

para a integração do ensino médio com a educação profi ssionalizante. De forma sufi cientemente didática, o artigo explica como funcionam os três níveis em que se desenvolverá a integração: 1) macro; 2) meso ou intermediário; e 3) micro ou de unidade escolar. O estudo faz parte das pesquisas desenvolvidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília – PPGE/FE/UnB, especifi camente dentro do grupo de pesquisa Formação de Profi ssionais da Educação – Lattes/CNPq.

Ruth de Paula, Betânia Moraes, e Frederico Costa encontram-se novamente para debater, à luz da ontologia marxiano-lukacsiana, os limites da proposta de formação educacional do ProJovem, que em oposição à reprodução do gênero humano atende a reprodução do capital em tempos de crise estrutural. Tal discussão é tratada com o devido rigor crítico no artigo O ProJovem e a educação na sociedade contemporânea, que, por sua vez, teve origem no seio do IMO/

UECE e decorre de uma pesquisa de Iniciação Científi ca. O artigo, com suporte teórico nos estudos de Leontiev, Duarte, Tonet, Jimenez e Mendes Segundo, defende que o ideário das pedagogias do aprender a aprender, presente na proposta do ProJovem, prenhe de subjetivismo e imediatismo, põe em relevo a prática em uma relação inadequada com a teoria, o que contribui para o esvaziamento do conteúdo, tão caro à apreensão do real em seu movimento. A exposição indica que, desse modo, educação de jovens provenientes da classe trabalhadora, defendida em programas ofi ciais, segue alargando o fosso entre espécie e gênero humano, atingindo frontalmente as subjetividades, fi rmando compromisso com a reprodução do capital.

Já a exposição As determinações do capital na formação do trabalhador: o ensino médio regular noturno em questão,

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

assinada por Edvaldo Albuquerque dos Santos e Edna Bertoldo, trabalha o conteúdo da dissertação Ensino médio Regular Noturno: as determinações do capital na formação do aluno trabalhador, de autoria do primeiro autor, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas – UFAL, sob a orientação da segunda autora e em articulação com o Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação e Ontologia Marxiana da mesma Universidade. Os autores,

alçados com propriedade, excursionam por sobre a função histórica do complexo educativo, o que lhes impede de nutrir expectativas favoráveis sobre a possibilidade da recém reformulação operada sobre o ensino médio. Com uma análise muito bem aparelhada sobre o papel do Estado através das leis burguesas, a comunicação adianta, a título de considerações fi nais, que as modifi cações cimentadas sobre o capital, a exemplo da Reforma do Ensino Médio, não podem mais que perpetuar a histórica dualidade educativa, inerente à educação capitalista.

O artigo Baixos índices de profi ciência no ensino básico público cearense: primeiras aproximações escrito por Cristiane Porfi rio

do Rio, concentra as refl exões iniciais da pesquisa em andamento, intitulada A escola pública cearense contemporânea: examinando os determinantes dos baixos índices de profi ciência do ensino médio, desenvolvida pela autora com o apoio do Laboratório de Pesquisa sobre Políticas Sociais do Sertão Central e do Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação, Estética e Sociedade – Lapps/GPTREES da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central – FECLESC/UECE, que, por seu turno, são coligados ao IMO. A comunicação pretende

expor de forma necessariamente sintética, a problemática dos baixos índices de profi ciência apontados pelo Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará (SPAECE). Para atender a esse objetivo, a exposição apoia-se na onto-metodologia marxiana para examinar os dados referentes à avaliação da escola básica cearense; dialoga com o

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

estado da arte sobre a história da dicotomia educativa; e, como notas conclusivas, em caráter preliminar, aponta algumas das principais refl exões que urgem ser feitas sobre essa candente problemática.

A seguir, o leitor vai encontrar o artigo Ensino médio integrado no Estado do Ceará: o “Caminho de pedras” do empreendedorismo para a escola pública, realizado por Aracélia C. Farias, Deribaldo

Santos e Maria Cleidiane C. Freitas. Este trabalho vincula-se, em larga medida, à pesquisa monográfi ca intitulada Educação profi ssional no contexto neoliberal: opção ou imposição?, defendida no Curso de Pedagogia da FECLESC, pela primeira autora, sob a orientação do segundo autor. Referida monografi a, por sua vez, foi gestada em integração com o projeto de pesquisa Entre o mercado de trabalho e a formação humana: examinando criticamente a proposta de Ensino Médio Integrado do Estado do Ceará, cujo fi nanciamento fomentado pela FUNCAP, possibilitou a concessão de bolsa de iniciação científi ca para Maria Cleidiane C. Freitas e para Aracelia C. Farias. Essa articulação foi possível graças à integração realizada no interior do Laboratório de Pesquisa sobre Políticas Sociais do Sertão Central, que, por sua vez, é fruto do Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação, Estética e Sociedade – Lapps/GPTREES. A comunicação, advinda dessa integração, discute, com base no discurso da empregabilidade que propala uma formação específi ca para o desempenho acrítico de um ofício como garantia de um emprego, qual o papel que o ensino médio profi ssionalizante tem prestado ao formar mão de obra especifi camente para o mercado de trabalho. As conclusões, mesmo que de caráter preliminar, apontam que as propostas de integração de conhecimentos gerais e específi cos como solução para o problema da formação do trabalhador em um ambiente escolar permeados por princípios mercadológicos, concretizam a coisifi cação da educação, amarram a formação do trabalhador ao mercado, negam uma educação vinculada às dimensões fundamentais

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

da vida, como trabalho, ciência e cultura, além de não potencializar a transformação radical da sociedade rumo à emancipação plena do gênero humano.

Sorria! Você está sendo “educado para o trabalho”: uma análise crítica da expansão da graduação tecnológica brasileira é o trabalho

que tem a honra de fechar o livro. Criado por Deribaldo Santos, Susana

Jimenez e Maria das Dores Mendes Segundo, exibe os resultados fundamentais da pesquisa de doutorado do primeiro autor, bem como os apontamentos inicias da pesquisa Graduação tecnológica no Ceará: contrastes e perspectivas do Instituto CENTEC/CE e debruça-se sobre o fenômeno afeto à expansão de vagas no Ensino Superior Não Universitário (ESNU) no Brasil. Contando o país com apenas 10% do contingente de jovens entre 18 e 24 anos frequentando o ensino superior, de acordo com dados de ofi ciais de 2007, o governo brasileiro, sob as diretrizes dos organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO e o Banco Mundial, vem tentando elevar tal índice, em outros termos, democratizando o acesso a esse nível de ensino, conforme é apregoado. Com base nos teóricos clássicos da educação, reafi rma-se o caráter dualista que marca historicamente a educação sob o capital, em geral e, no Brasil, em particular, delineando, a rigor, dois caminhos educativos: o ensino profi ssional para a classe trabalhadora e o ensino acadêmico para a elite e extratos intermediários da sociedade. Como se pode concluir, através do estudo em foco, este dualismo classista é reeditado com particular veemência, no seio da educação superior brasileira, cuja política opera uma fragmentação entre o ensino superior de caráter propriamente universitário; e o ensino superior não universitário, destinado à formação para o mercado. Nesse quadro, procurou-se, ademais, desvelar o papel estratégico desse subsistema no processo de reprodução do capitalismo periférico brasileiro, identifi cando o caráter

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ideológico, economicista e pragmatista que fundamenta a atual política de ensino superior no Brasil, com particular destaque para a chamada graduação tecnológica.

Deribaldo Santos Fortaleza, outubro de 2012

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

PRIMEIRA PARTE:

PRESSUPOSTOS E PROBLEMATIZAÇÕES

CONTEXTUAIS

Marxismo, trabalho e ser social

Frederico Costa Ruth de Paula Betânia Moraes

Introdução

Qualquer debate nas ciências humanas contemporâneas, em particular no âmbito educacional, necessariamente deverá levar em consideração o contexto da atual crise econômica. É claro que é da própria natureza do capitalismo a existência de crises. Pode-se afi rmar que elas racionalizam as irracionalidades do sistema. No entanto, desde a década de 1970 as crises capitalistas apresentam-se cada vez destrutivas nos seus aspectos econômicos, fi nanceiros e ecológicos. De fato, conforma-se uma crise de civilização só comparável historicamente à decadência do Império Romano. Felizmente, a crise internacional está entrando em uma nova fase, na qual os assuntos quase puramente econômicos e fi nanceiros, que ocuparam o primeiro plano durante os últimos dois anos, começaram a combinar-se com um maior acirramento da luta de classes, ou seja, os explorados e dominados da resistência fragmentária podem avançar para um projeto de superação do capitalismo e da sociabilidade.

Pensamos que tal perspectiva deve qualifi car qualquer temática educacional, porque a educação é um dos momentos essenciais da

(21)



reprodução social, tanto da ordem vigente como das tendências revolucionárias à sua superação. Isso exige dos intelectuais engajados a retomada de estudos mais substantivos, isto é, que envolvam a problemática dos fundamentos, desenvolvimento, contradições e possibilidades do ser social. O conhecimento da materialidade social é um pressuposto básico para sua transformação.

Por isso, neste trabalho coletivo que se debruça sobre a educação técnica e ensino tecnológico optamos por uma abordagem ontológica sobre a categoria trabalho e suas conexões essenciais com a totalidade social, tendo como referencial teórico Marx e Lukács. Esse tipo de abordagem permite estabelecer coordenadas teóricas que possibilitam alicerces sólidos para um conjunto de temáticas vinculadas ao assunto central deste livro como a divisão capitalista do trabalho, alienação, políticas públicas, crises econômicas, precarização entre outros.

Atividade vital humana e trabalho

O homem como um ser vivo necessita estar em constante metabolismo com a natureza. Sem essa interação perene com o meio natural o homem não conseguiria os elementos essenciais para sua sobrevivência e reprodução como espécie. Por isso, Marx e Engels (1999, p. 27) afi rmam na Ideologia Alemã que:

O primeiro pressuposto de toda história humana é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal destes indivíduos e, por meio disto, sua relação dada com o resto da natureza.

Tal tese conduz a certas questões. Até que ponto o homem pode ser considerado um ser natural? Qual o estatuto do fundamento natural do homem? Quais os limites e potencialidades postos pelo aspecto natural do ser humano? Bem, de acordo com Marx (2004, p. 127, grifos nossos):

(22)



O homem é imediatamente ser natural. Como ser natural, e como ser

natural vivo, está, por um lado, munido de forças naturais, de forças

vitais, é um ser natural ativo; estas forças existem como possibilidades

e capacidades (Anlagen und Fähigkeiten), como pulsões; por outro,

enquanto ser natural, corpóreo, sensível, objetivo, ele é um ser que

sofre, dependente e limitado, assim como o animal e a planta, isto é, os objetos de suas pulsões existem fora dele, como objetos independentes

dele. Mas esses objetos são objetos de seu carecimento (Bedürfnis),

objetos essenciais, indispensáveis para a atuação e confi rmação de suas forças essenciais. Que o homem é um ser corpóreo, dotado de forças

naturais, vivo, efetivo, objetivo, sensível signifi ca que ele tem objetos

efetivos, sensíveis como objeto de seu ser, de sua manifestação de vida (Lebensäusserung), ou que ele pode somente manifestar (äussern) em

objetos sensíveis efetivos (wirkliche sinnliche Gegenstände).

O que signifi ca tudo isso? Em primeiro lugar, que o homem não é um ser especial no sentido de se destacar da natureza por obra de uma força transcendente nem muito menos, por razão de suas carências e limitações, que ele seja um ente que só encontraria realização num absoluto sobrenatural. O homem é, em primeiro lugar, um ser natural vivo, isto é, corpóreo, sensível e objetivo que possui toda uma história evolutiva anterior1, isto é, uma base biológica não eliminável. Mas, não

só isso, o homem compartilha com os animais e as plantas, a esfera orgânica do ser, a dependência e a limitação de não ser auto-sufi ciente, pois os objetos de suas pulsões existem fora dele: na natureza, os quais são indispensáveis para a atuação e confi rmação de suas forças essenciais. O homem, como os demais seres da esfera orgânica, vive da natureza por ser também parte dela: “[...] a natureza é seu corpo, com o qual ele tem de fi car num processo contínuo para não morrer.” (MARX, 2004, p. 84). O homem, porém, não é um simples ser natural que se adapta ao meio ambiente, segundo as leis da seleção natural. Municiado de suas próprias forças naturais – como, por exemplo, o cérebro grande

1 Para mais detalhes atualizados sobre a evolução humana verifi car Roberts (2011) em seu fascinante e bem fundamentado Evolution: the human history.

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

e complexo2, a visão binocular3, o bipedismo4, a habilidade manual5 e

a potencialidade da “fala”6 – ele é um ser natural ativo, no qual essas

forças apresentam-se como capacidades e possibilidades.

No entanto, do ponto de vista natural, a constituição física do homem é inferior à da maioria dos animais; não tem a pelagem necessária para manter o calor do corpo num ambiente frio; seu corpo não é tão efi ciente para a fuga, defesa própria ou caça; não possui uma velocidade excepcional, uma coloração protetora ou uma armadura

2 “[...] o cérebro grande e complexo, formando o centro de um extenso e delicado sistema nervoso. Este sistema permite uma grande variedade de movimentos controlados com precisão, ajustados exatamente aos impulsos recebidos pelos órgãos delicados dos sentidos [...] o homem foi dotado pela natureza com um cérebro bastante grande em comparação com seu corpo, mas esse dote é a condição que lhe permite fazer a sua própria cultura” (CHILDE, 1975, p. 40-41). “De todos os mamíferos, os primatas são o grupo que tem os cérebros maiores, e os humanos estenderam enormemente esta propriedade: o cérebro humano três vezes maior em tamanho do que o cérebro de um macaco que tem um tamanho corporal equivalente” (LEAKEY, 1995, p. 61). 3 “No homem e nos primatas superiores, a associação de imagens estereoscópicas com sensações de fato e atividade muscular torna possível o cálculo perfeito das distâncias e profundidades. Sem isso, a delicadeza das mãos e dedos não bastaria para a confecção de instrumentos. É a cooperação perfeitamente, mas subconsciente, da mão e olho, que permite ao homem fazer ferramentas desde o mais rudimentar eólito até o mais sensível sismógrafo” (CHILDE, op. cit., p. 41-42). 4 “O advento do bipedismo não é somente uma importante transformação biológica mas também uma importante transformação adaptativa [...] a adoção do bipedismo era tão carregada de potencial evolutivo – permitindo aos membros superiores a liberdade de se tornarem um dia implementos manipulatórios [...] (LEAKEY, op.cit., p. 26). “Os antropólogos tendem a ver a importância do bipedismo na evolução humana de duas maneiras: uma escola enfatiza a liberação dos membros dianteiros que possibilita o transporte de coisas; a outra enfatiza o fato de que o bipedismo é um modo de locomoção mais efi ciente do ponto de vista energético, e vê a habilidade de transportar coisas simplesmente como um derivado fortuito da postura ereta” (Idem, p. 29). 5 “[...] é grande a distância entre a mão pouco desenvolvida do macaco antropóide e a humana, altamente desenvolvida pelo trabalho, durante centena de milhares de anos. O número e a disposição dos ossos e músculos coincidem em ambos; mas a mão do mais primitivo dos selvagens pode realizar centenas de movimentos e atos que nenhuma mão simiesca poderá imitar” (ENGELS, 1985, p. 216).

6 “A fala é possibilitada por [...] um controle delicado e preciso, pelos nervos motores, dos músculos da língua e laringe, e uma correlação exata das sensações musculares, devidas a movimentos desses órgãos, com o sentido de audição [...] no Homo sapiens tais desenvolvimentos do cérebro e do sistema nervoso seguem lado a lado com modifi cações na disposição dos músculos da língua, não encontradas em nenhum outro gênero ou espécie de homem, e também não nos macacos. Em consequência, o homem é capaz de proferir uma variedade de sons muito maior do que qualquer outro animal” (CHILDE, 1975, p. 42).

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corporal; falta-lhe acuidade visual ou força muscular para lhe dar vantagem sobre sua presa ou defender-se. Não obstante tudo isso, a espécie homo sapiens historicamente demonstrou a superior capacidade

de ajustar-se ativamente a diversos ambientes do que qualquer ser biológico, de multiplicar-se mais rápido do que qualquer mamífero superior e, o fundamental, foi capaz de, subordinando a natureza às suas necessidades, constituir uma nova estrutura da realidade – a esfera social – não presente na natureza. O que propiciou, de fato, tal salto da esfera biológica para a esfera social?

Segundo Marx, o segredo do desenvolvimento exponencial do gênero humano encontra-se no caráter específi co de sua atividade vital.

Pode-se entender a atividade vital de qualquer espécie animal como o conjunto de características capazes de garantir sua existência e reprodução como espécie. De fato, é o fundamento sobre o qual cada animal singular na atividade de reproduzir a si próprio reproduz também a própria espécie, garantindo a continuidade desta. Por isso, diz Marx (2004, p. 84) que “[...] no modo (Art) da atividade vital

encontra-se o caráter inteiro de uma species, seu caráter genérico [...].”

Para Marx (op. cit., p. 84), o animal “[...] é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela.” O que signifi ca que, a atividade animal atende necessariamente às necessidades de sobrevivência e reprodução, porém tal atividade está posta nos marcos puramente naturais, no sentido de estar determinada pela herança genética, numa relação imediata entre o animal e seu ambiente, satisfazendo em formas geralmente fi xas – isto é, as que expressam a melhor adaptação ao meio –, as necessidades estabelecidas biologicamente. Acrescenta-se também que para o animal todo objeto da realidade circundante é inseparável das suas necessidades instintivas, o que faz com que sua relação com o

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objeto não exista enquanto tal, independentemente do objeto7, ou seja,

o animal não se distingue de sua atividade vital. Porém, Marx (op. cit., p. 84) explica o seguinte:

O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem a atividade vital consciente. Esta não é uma

determinidade (Bestimmtheit) com a qual ele coincide imediatamente.

A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal. Justamente, [e] só por isso, ele é um ser genérico. Ou ele somente é um ser consciente, isto é, a sua própria vida lhe é objeto, precisamente porque é um ser genérico. Eis por que a sua atividade é atividade livre.

Assim, na perspectiva marxiana a atividade vital consciente destaca o homem do restante da natureza, pois como sua atividade vital torna-se objeto da sua consciência, o homem ao entrar em relação com qualquer coisa – incluindo sua própria atividade – é capaz de fazer a distinção entre o objeto da sua relação e a própria relação, pois a:

[...] separação entre objetos que existem independentemente do sujeito, e sujeitos que podem refl etir aqueles, por meio de atos da consciência, com uma aproximação mais ou menos adequada, e que podem convertê-los em uma posse intelectual própria. Esta separação entre sujeito e objeto que se fez consciente, é um produto necessário do processo de trabalho e, ao mesmo tempo, o fundamento da forma de existência especifi camente humana (LUKÁCS, 2004, p. 82).

7 “[...] também os animais se encontram numa relação com o meio ambiente; relação que se torna cada vez mais complexa, e finalmente se encontra mediada por um tipo de consciência. Porém, como esta se mantém no âmbito biológico, não pode se produzir uma separação e contraposição entre sujeito e objeto como a que tem lugar no homem” (LUKÁCS, 2004, p. 82-83).

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A partir disso, o refl exo da realidade não se confunde com o que é vivido. A atividade humana não é uma com o próprio homem. O homem não tem uma relação imediata com sua atividade vital como os animais, mas mediada pela consciência. Daí a possibilidade da liberdade, pois ao apreender o refl exo da realidade destacadas das relações imediatas que existem entre a realidade e o homem, este consegue distinguir as propriedades estáveis da própria realidade e as utilizar para a satisfação de suas necessidades. Ele, mesmo de maneira rudimentar, põe sua atividade vital como objeto de projeção e refl exão consciente.

O homem é ainda um ser genérico, pois ele não tem apenas consciência de si mesmo como indivíduo, mas de sua própria atividade vital, isto é, o homem possui uma vida interior e outra exterior. Isso porque o ser humano se destaca da pura naturalidade ao fazer dela objeto para sua consciência, o que o torna um ente ativo que não se adapta simplesmente às condições naturais, mas que transforma conscientemente a realidade a sua volta. Daí a importância da sociabilidade e da linguagem na constituição da realidade humana. No entanto, a consciência não é algo abstrato ou vinculado a uma transcendência espiritual, ou seja, destacada da mundaneidade. Marx (2004, p. 85) destaca a natureza sensível e mundana da consciência na atividade vital humana:

O engendrar prático de um mundo objetivo, a elaboração da natureza

inorgânica é a prova do homem enquanto um ser genérico consciente, isto é, um ser que se relaciona com o gênero enquanto sua própria essência ou [se relaciona] consigo enquanto ser genérico. É verdade que também o animal produz. Constrói para si um ninho, habitações, como a abelha, castor, formiga etc. No entanto, produz apenas aquilo de que necessita imediatamente para si ou sua cria, produz unilateral[mente], enquanto o homem produz universal[mente]; o animal produz apenas sob o domínio da carência física imediata, enquanto o homem produz

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mesmo livre da carência física, e só produz, primeira e verdadeiramente, na [sua] liberdade [com relação] a ela; o animal só produz a si mesmo, enquanto o homem reproduz a natureza; [no animal,] o seu produto pertence imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o homem se defronta livre[mente] com o seu produto. O animal forma apenas segundo a medida e a carência da species à qual pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer species, e sabe considerar, por toda parte, a medida inerente ao objeto; o homem também forma, por isso, segundo as leis da beleza. Precisamente por isso, na elaboração do mundo objetivo [é que] o homem se confi rma,

em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico. Esta produção é a

sua vida genérica operativa. Através dela a natureza aparece como a sua

obra e a sua efetividade (Wirklichkeit). O objeto do trabalho é portanto

a objetivação da vida genérica do homem: quando o homem se duplica

não apenas na consciência, intelectual[mente], mas operativamente, efetiva[mente], contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele. (grifos nossos).

Até aqui nota-se que a característica essencial da atividade vital humana é ser ela consciente e, portanto, algo específi co e distintivo do homem em relação ao restante da natureza. Ela não é algo derivado imediatamente de sua estrutura biológica, embora tenha como condição esta, pois sem cérebro não há possibilidade de pensamento. Foi no marco das condições sociais mais primitivas que surgiram os primeiros lampejos de consciência. Isso conduz ao caráter essencialmente genérico da atividade humana, por meio dele o homem se auto constitui de maneira diversa da história natural. É do engendramento prático de um mundo objetivo – um mundo que não existia naturalmente – na transformação da natureza inorgânica que o homem se consubstancia em ser genérico, consciente. Através de sua atividade vital o homem se relaciona com o gênero enquanto sua própria essência e ao mesmo tempo consigo mesmo enquanto ser genérico. O que signifi ca que a essência genérica humana não possui uma natureza mística ou incognoscível,

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mas que é objetiva e materialmente identifi cável na atividade própria do homem: é o conjunto das relações sociais.

É por meio de sua atividade vital consciente, ou seja, o trabalho8,

que se expressa o elemento ontológico primaz da realidade humana, pois é na elaboração do mundo objetivo – isto é, a criação contínua pelo trabalho do mundo humano, imanentemente social – que o homem se confi rma efetivamente como ser genérico. Isso porque o gênero para o homem não é algo abstrato e independente dos homens reais e concretos, mas está posto no trabalho, o núcleo de sua vida genérica operativa, que garante não apenas a sobrevivência dos indivíduos e sua reprodução biológica, mas também reproduz – garantindo a continuidade e desenvolvimento – as características do gênero humano, o qual não se reduz à mera soma dos indivíduos, mas se constitui pela totalidade das relações sociais, das mais simples às mais complexas. Esse novo mundo que surge a partir da vida produtiva humana, no qual a natureza transformada aparece como sua obra e sua efetividade, é também objetivação da vida genérica do homem, em que o homem se duplica não apenas intelectualmente, mas operativamente por meio de seus projetos que se efetivam materialmente, daí a possibilidade de contemplar-se a si mesmo num mundo criado por ele. Portanto, é o trabalho que alicerça a dimensão genérica do ser social, pois ele só é possível como atividade coletiva, isto é, só é realizável através da relação com outros homens.

Em síntese, é possível observar, a partir de Marx, que o trabalho/ atividade vital humana, é algo ontologicamente diverso da atividade vital dos animais. Por meio de um processo que envolveu um largo espaço temporal, o trabalho estruturou-se e desenvolveu-se numa série

8 Para Marx (2004, p. 114), a atividade vital consciente é sinônimo de trabalho: “[...] toda assim denominada história mundial nada mais é do que o engendramento do homem mediante o trabalho humano, enquanto o vir a ser da natureza para o homem [...].”

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de determinações que acabaram por superar o rígido padrão natural dos animais. Essas determinações não são encontradas no ser biológico. Elas de fato expressam um salto ontológico9 em relação à natureza. O

trabalho é um novo tipo de atividade vital específi co de uma única espécie, a humana. E os homens pelo trabalho destacam-se da natureza e afastam cada vez mais as barreiras naturais.

Trabalho e ser social

O interessante na perspectiva marxiana é a identifi cação de dois momentos indissoluvelmente ligados do processo de antropogênese, ou seja, de constituição do ser social como uma esfera específi ca regida por uma legalidade diferenciada da natureza: de um lado o trabalho revela o vínculo impossível de ser eliminado entre o homem e a natureza, e por outro lado expressa o caráter diferencial da atividade humana em relação ao processo de reprodução meramente biológico.

A especifi cidade do mundo dos homens reside no fato de no seu ato fundante, o trabalho, revelar-se uma ruptura com os mecanismos reprodutivos encontrados na esfera biológica. Lukács (2004) exemplifi ca tal ruptura ao destacar a radical diferença ontológica existente sob as aparentes semelhanças entre a forma de organização de determinadas espécies na natureza e a divisão do trabalho própria da sociabilidade humana:

[...] as chamadas sociedades animais (e também a “divisão do trabalho” em geral dentro do reino animal) são diferenciações biologicamente

9 “[...] cada salto signifi ca uma transformação qualitativa e estrutural no ser, na qual a fase inicial contém dentro de si determinadas condições e possibilidades das fases posteriores e superiores, mas estas não podem se desenvolver a partir da fase inicial segundo uma continuidade simples e retilínea. Esta ruptura com a continuidade normal da evolução é o que constitui a essência do salto, e não o surgimento, temporalmente súbito ou paulatino da nova forma de ser” (LUKÁCS, 2004, p. 60-61).

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fi xadas, tal como se pode observar da melhor maneira no “Estado das abelhas”. Quer dizer, assinalamos, que a margem de como pode ter se constituído, uma organização semelhante, essa já não possui uma possibilidade de evolução imanente a partir de si mesma; não é mais que uma forma particular de adaptação de um animal a seu ambiente; e quanto mais perfeitamente funcione a ‘divisão do trabalho’ assim constituída, quanto mais fi rmemente se faz fundamentada no biológico. A divisão do trabalho na sociedade humana produzida pelo trabalho cria, ao contrário [...] suas próprias condições de reprodução, e, por certo, de tal maneira que a reprodução simples do existente em cada caso conforma só o caso limite da típica reprodução ampliada. Isto não exclui, naturalmente, a aparição de becos sem saída na evolução; suas causas, não obstante, se encontram sempre determinadas pela estrutura da respectiva sociedade, e não pela constituição biológica de seus membros (p. 61).

Do exposto até aqui, e em particular, da citação acima, é possível situar o equívoco metodológico, muito comum nas ciências humanas estabelecidas, em utilizar conceitos comuns tanto à esfera biológica quanto à esfera do ser social. O que signifi ca a atribuição de determinações próprias da atividade natural à atividade humana. Tal crítica parte do pressuposto básico de que a atividade vital dos animais é sua ancoragem biológica, ou seja, sua atividade sustentar-se-ia em determinações genéticas e relações biológicas com o meio ambiente que levariam a uma estabilidade só perturbada por mudanças ambientais, mutações aleatórias ou pressões da seleção natural. Por isso, o pensador magiar ilustra suas teses ontológicas levantando o exemplo do “Estado das abelhas”, cujas funções realizadas pelos membros que compõem a colmeia estão regidas pela necessidade biológica, limitando as possibilidades de desenvolvimento ulterior que leve à ruptura com o padrão reprodutivo de sua existência.

Já a atividade humana manifesta-se pela constante expansão de possibilidades do modo de reprodução de sua própria existência

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– possibilidades estas não mais unilateralmente determinadas pela naturalidade do seu organismo, mas mediadas cada vez mais socialmente. Noutras palavras, a reprodução no ser social, que tem como motor o trabalho, se realiza em condições diferentes do modo de reprodução próprio ao ser biológico. Portanto, no ser social as condições de reprodução são postas socialmente pela atividade consciente humana de transformação material da natureza, que tem como núcleo a objetivação de um projeto previamente idealizado – por mais tosco ou inconsciente que seja. O aspecto radicalmente novo do ser social está na forma da transformação material da realidade, que nele é determinada pelo pôr consciente de uma fi nalidade.

Assim, podemos concluir que a antropogênese, a qual coincide com a sociogênese, representa um salto em relação à esfera biológica. Isso porque a atividade originária do ser social funda as determinações essenciais da especifi cidade do gênero humano. O trabalho, como objetivação primária, não é apenas resultante da hominização, ele, ao mesmo tempo, é a causa e resultado dessa hominização; não é apenas produto típico do ser do homem, é o fundamento da própria condição de ser homem. O homem, sustentado em sua naturalidade, vai além dela porque em sua essência – que não é o imutável imposto pela natureza ou por qualquer espécie de transcendência espiritualista – é um ser que se institui a si mesmo por meio de sua atividade vital consciente. O segredo da antropogênese-sociogênese é o trabalho. O que impõe a qualquer estudo sobre um complexo determinado do ser social identifi car, mesmo tangencialmente, alguns elementos básicos da categoria trabalho.

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Determinações do trabalho

Como foi visto no tópico precedente, é pelo trabalho que a espécie humana se conforma como um novo tipo de ser, até então inexistente na natureza, e cuja essência não está imposta pela herança genética ou por condições biológicas predeterminadas. De fato, surge um tipo de ser que até onde conhecemos é sui generis. O ser social se caracteriza

por uma complexidade que é inexplicável em termos de categorias naturais. A categoria trabalho além de revelar a essência do ser humano em sua característica imanente de viver em comunidade e de ter uma existência genérica, é o fundamento da própria comunidade humana, porque ao manipular de maneira orientada a natureza, ela produz relações tipicamente humanas, relações produtivas, sociais, linguísticas, axiológicas e culturais. Se existe a possibilidade posta de uma espécie evoluir para um padrão mais complexo de sociabilidade, foi o trabalho que impulsionou o salto dessa espécie geneticamente predisposta para a esfera do ser social.

Isso leva à necessidade de uma maior explicitação de algumas determinações do trabalho, que Marx (1987, p. 2002), de maneira mais detida, em sua obra de maturidade O Capital: crítica da economia política, defi ne da seguinte maneira:

Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fi m de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modifi cando-a, ao mesmo tempo modifi ca sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais. [...] Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao

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construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele fi gura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fi m do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade.

Partindo dessa conceituação marxiana de trabalho, é possível destacar algumas conclusões. Primeira, o ser social não pode existir sem a natureza, mas diferente dos animais, o homem, por meio do trabalho, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio com a natureza, pois como ser que tem como fundamento a natureza, utiliza-a como uma de suas forças. Assim, aproveitando as possibilidades do seu corpo, naturalmente posto, apropria-se dos recursos naturais imprimindo-lhes forma útil à vida humana10. O que signifi ca, de um lado, que não há

nada de sobrenatural na atividade humana, nem uma centelha divina ou qualquer elemento transcendental que oriente atividade humana em relação à natureza como uma alma ou espírito; por outro lado, é pelo e no trabalho que os elementos naturais, inorgânicos e orgânicos, tornam-se úteis à vida humana. Dessa maneira, por meio do trabalho inicialmente a satisfação material das necessidades humanas são atendidas no intercâmbio com a natureza.

Segunda, quando o homem transforma a natureza, produzindo objetos para atender às suas necessidades, ele também se transforma. Inicialmente porque desenvolve novas habilidades necessárias, superando o que há de instintivo ou espontâneo sob o domínio da

10 “Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo que se queira. Mas eles próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo este que é condicionado por sua organização corporal. Produzindo seus meios de vida, os homens, os homens produzem, indiretamente, sua própria material” (MARX; ENGELS, 1999, p. 27).

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consciência que põe fi ns, para adequar a materialidade natural às suas exigências. E concomitantemente com isso, para superar a resistência que o ser natural expressa à sua adequação às necessidades humanas, é de fundamental importância o conhecimento da legalidade natural11 do

setor específi co da natureza que é objeto da intervenção humana. Por isso, ao modifi car a natureza externa o homem desencadeia um processo em que desenvolve suas potencialidades adormecidas, submetendo ao seu domínio o jogo das forças naturais, por meio do aparecimento de novas habilidades, novos conhecimentos e, consequentemente, novas possibilidades de intercâmbio com a natureza e de socialização, isto é, começa a fazer história.

Terceira, em termos gerais, é através da capacidade de fi gurar na mente um projeto, antes de efetivá-lo, que a transformação da natureza é regulada e controlada pelo homem, pois o homem não se limita apenas ao natural sobre o qual opera; o homem vai além, e reside aí sua especifi cidade. No processo de trabalho o homem imprime ao material um projeto que tinha conscientemente em mira – seja um machado de pedra ou uma indústria. O objeto resultante do trabalho é algo inexistente na natureza, embora seja uma combinação de elementos naturais, como um primitivo machado de pedra. É algo, em termos naturais, inédito no horizonte da natureza, porque é uma homogeneização de elementos heterogêneos: a fi nalidade previamente construída na consciência e os elementos naturais que obedecem a uma legalidade própria. Assim, o trabalho revela-se como o elemento fundante e predominante no desenvolvimento do ser social, pois é nele que primordialmente se produz o novo que impulsiona a humanidade para patamares cada vez mais complexos de sociabilidade.

11 “[...] uma das condições objetivas do trabalho, de acordo com o ser, é que só um refl exo correto da realidade tal como existe, independentemente da consciência, pode consumar a realização de causalidades naturais indiferentes e heterogêneas em relação a posição do fi m; pode consumar a transformação de ditas causalidades em causalidades postas e subordinadas à posição teleológicas” (LUKÁCS, 2004, p. 98-99).

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Nesse processo, é importante destacar, que a capacidade de projetar antecipadamente é a lei determinante do modo de operar da atividade humana de produzir objetos úteis à satisfação de suas necessidades. Nesse sentido, Lukács (2004, p. 62) destaca que:

[...] através do trabalho, se realiza uma posição teleológica dentro do ser material enquanto surgimento de uma nova objetividade. Assim é que o trabalho se converte, por um lado, em modelo de toda práxis social na medida em que nesta – ainda quando através de mediações muito diversifi cadas – se realizam sempre posições teleológicas, em última instância, de ordem material.

O que signifi ca que é a partir do trabalho12 que o ser social revela

suas determinações estruturais, pois só no ato singular de trabalho o homem é capaz de agir teleologicamente, propor fi nalidades, antecipar metas. Assim, são criados artefatos, representações e símbolos que expressam uma nova forma de objetividade só encontrada no ser social. Antes de ser uma concessão ao idealismo, essa compreensão marxiana da teleologia além de ser uma radical ruptura com qualquer forma de idealismo e de religiosidade, também representa uma superação do materialismo pré-marxiano.

Equívocos da fi nalidade como categoria cosmológica e

função da teleologia no trabalho e no ser social

De acordo com Lukács (2004), um grande problema ontológico surge quando a posição teleológica não fi ca circunscrita ao trabalho. Grandes fi lósofos, como Aristóteles e Hegel, elevaram a teleologia a uma categoria cosmológica universal, o que tem como resultado uma oposição insolúvel entre causalidade e teleologia. Dessa maneira:

12 “[...] o trabalho pode servir de modelo para a compreensão das outras posições teleológicas sociais, já que o trabalho, de acordo com seu ser, é a forma originária [Urform] destas posições” (LUKÁCS, 2004, p. 62).

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Toda fi losofi a de orientação teleológica devia declarar a superioridade

da teleologia por sobre a causalidade, a fi m de harmonizar

intelectualmente seu Deus com o cosmos, com o mundo do homem; inclusive quando Deus só dá corda ao relógio do universo e, com ele, põe em marcha o sistema da causalidade, resultando inevitável uma hierarquia semelhante de criador e criatura e, com isso, a prioridade da posição teleológica. Por outro lado, todo materialismo pré-marxista que negava a constituição transcendente do mundo, também questionava a possibilidade de uma teleologia realmente efetiva (LUKÁCS, 2004, p. 68).

É evidente que as correntes fi losófi cas de caráter teleológico possuem, consciente ou inconscientemente, um fundamento religioso, o qual é uma expressão mistifi cada e mistifi cadora de problemas reais. As religiões sustentam-se, em última instância, na constituição da teleologia como uma categoria objetiva. De certa forma, essa teleologia objetiva confi rma e justifi ca, de maneira distorcida, a racionalidade da história como um todo – a origem e sentido do universo, o caos das ações individuais, o confl ito entre classes e nações, a contradição entre o humano e desumano, a fi nalidade da existência.

Enquanto a causalidade é um princípio do movimento autônomo, baseado em si mesmo [...] a teleologia é, de acordo com sua essência, uma categoria posta: todo processo teleológico implica a possibilidade de um fi m e, com ele, uma consciência que põe fi ns (LUKÁCS, 2004, p. 63).

Se a teleologia é aceita como uma categoria objetiva signifi ca que a “racionalidade da história”, tanto natural como social, é manifestação de uma fi nalidade posta por uma intenção superior. Assim, no caso do mundo dos homens, suas ações não são por si mesmas dotadas de sentido e de razão; elas recebem um sentido e adquirem uma racionalidade a partir de algo exterior ao ser social, pois:

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A concepção teleológica da natureza e da história não signifi ca, pois, meramente que ambos possuem uma fi nalidade, que estejam orientados a um fi m, senão também que sua existência, seu movimento – tanto como processo total como no plano do detalhe – devem ter um autor consciente (Idem, p. 63).

Portanto, a concepção teleológica da natureza e da história, oriunda do caráter cosmológico da teleologia, provoca uma inversão ao acrescentar um sujeito, misterioso, inatingível e arbitrário – deuses, absoluto, “razão superior”, “ideia absoluta” – a por fi ns no universo. A natureza, que possui como característica essencial a causalidade, o automovimento baseado na essência dinâmica do próprio ser natural, ganha um sentido e fi nalidade, enquanto o mundo dos homens que possui como núcleo o trabalho – que tem como lei interna a teleologia –, torna-se simples instrumento de um pôr metafísico, fazendo com que a liberdade, categoria própria do ser social, seja em última instância, apenas suposta, e tornando a unidade dialética entre liberdade e necessidade fi ctícia. A possibilidade de escolha entre alternativas, própria da atividade humana, revela-se aparente, pois a história dos homens está ordenada por um sujeito metafísico que coloca fi nalidades, na qual os indivíduos, no fi nal das contas, são executores conscientes ou inconscientes de uma necessidade predeterminada. O resultado é que os homens podem agir na história, mas só aparentemente a fazem efetivamente, o destino do gênero humano já está infalivelmente estabelecido por uma força transcendente. No limite, tal postura teórica leva a uma desconstituição da especifi cidade do ser social:

Pois se as diversas teorias idealistas ou religiosas sobre o domínio universal da teleologia forem corretas [...] Cada pedra, cada mosca seria, pois, uma realização do “trabalho” de deus, do espírito universal, etc. [...] Com isso, deveria desvanecer-se, consequentemente, a diferença ontológica decisiva entre sociedade e natureza (LUKÁCS, 2004, p. 78).

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Ao contrário das teorias idealistas e das concepções religiosas, de acordo com Lukács, Marx nega a existência de toda teleologia fora do trabalho ou da práxis humana. A perspectiva teórica inaugurada por Marx é radicalmente humanista e ateia. A suposta existência de um sujeito transcendental ao impor fi ns ao cosmos, em última instância, signifi ca que a história humana não seria mais fruto exclusivo do agir humano13. Por isso, de acordo com Lukács (2004, p. 67): “[...]

para Marx, o trabalho não é uma das múltiplas formas de aparição da teleologia em geral, senão o único ponto em que pode demonstrar-se ontologicamente uma posição teleológica enquanto fator real da realidade material.”

A teleologia, despida de qualquer misticismo, revela toda sua potencialidade, porque:

Quando Marx, delimitando exata e estritamente o âmbito da teleologia, circunscreve esta ao trabalho (à práxis social), eliminando-a de todos os outros modos de ser, não faz que a teleologia perca importância; pelo contrário, ela aumenta, já que é preciso entender que o nível do ser mais alto conhecido por nós – o ser social – só chega a constituir-se como um nível específi co graças ao efeito real que nele exerce o teleológico; só graças ao dito efeito se eleva o social por cima do nível em que se baseava sua existência – o da vida orgânica – e se converte num novo modo de ser independente. Só podemos falar racionalmente sobre o ser social sem concebermos que sua gênese, sua diferenciação em relação a sua base, sua autonomização, se baseia no trabalho, quer dizer na realização continua de posições teleológicas (Idem, p. 67-68).

13 Para Lessa (2002, p. 71), “[...] toda teleologização do real signifi ca abrir mão, em alguma medida, do radical caráter social do mundo dos homens. Teleologiamente orientada, a história humana não seria mais fruto exclusivo do agir dos homens em sociedade.”

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Aqui surge, numa clareza meridiana, o que identifi ca a atividade humana frente aos processos típicos da natureza. A infl exão que dá identidade à condição humana frente ao ser natural é a realização contínua de posições teleológicas. Portanto, a teleologia, própria do ato de trabalho, é o elemento nuclear que provoca a descontinuidade entre o mundo dos homens e o ser biológico, pois,

[...] em comparação com as formas anteriores do ser inorgânico e orgânico, surgiu com o trabalho uma categoria qualitativamente nova dentro da ontologia do ser social. Uma novidade tal é a realização da posição teleológica como um produto adequado, pensado e desejado. Na natureza há só realidades e uma transformação ininterrupta de suas

respectivas formas concretas, um contínuo ser-diferente [Anderssein]

(LUKÁCS, 2004, p. 78).

Isto é, na atividade vital humana há algo de inusitado diante da natureza. Um processo transformativo orientado por uma consciência – por mais primitiva que seja. Assim surge algo novo, fruto da realização da posição teleológica, algo que não poderia ter surgido por processos

naturais, mas um produto adequado pensado e desejado. O homem, ele

mesmo um ser com raízes naturais, para satisfazer suas carências, entra num metabolismo consciente e necessário com a natureza, e tendo ela como pressuposto produz o ser social14. O que traz uma diferença

essencial em relação ao restante dos animais, pois, enquanto

[...] a consciência dos animais, principalmente dos mais evoluídos, parece ser uma faticidade inegável, porém é um fator parcial – de caráter débil e auxiliar – se seu processo de reprodução, o qual é biologicamente fundado e se desenvolve de acordo com as leis da biologia (Idem, p. 79).

14 Para Lukács (2004, p. 79) “[...] a atividade do ser natural homem permite que surja, sobre a base do ser inorgânico e orgânico [...] um nível de ser particularmente novo. Mais complexo e mais complicado, quer dizer, o ser social.”

Referências

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