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Mito e religião no pensamento político de José Carlos Mariátegui

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Sydnei Ulisses de Melo Junior

MITO E RELIGIÃO NO PENSAMENTO POLÍTICO DE

JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI

CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA

Sydnei Ulisses de Melo Junior

MITO E RELIGIÃO NO PENSAMENTO POLÍTICO DE

JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI

Orientação: Prof. Dr. Alvaro Gabriel Bianchi Mendez

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, para obtenção do título de Mestre em Ciência Política.

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação, defendida e aprovada em 29 de janeiro de 2015.

CAMPINAS 2015

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RESUMO

Esta dissertação é dedicada ao estudo dos trabalhos do marxista peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930) e, especialmente, à análise da importância política assumida pelos conceitos de mito e religião no conjunto de sua obra. Os capítulos referem-se a três etapas da vida do autor – a juventude (1914-1919), o exílio (1919-1923) e o regresso e posterior militância socialista no Peru (1923-1930) – e por meio da exposição de sua formação intelectual e política procuramos compreender as preocupações do Amauta com os conceitos acima mencionados. A pesquisa mostra que, contrastado a outros autores clássicos do marxismo, Mariátegui assume um olhar mais sensível ao papel histórico e social cumprido por diferentes manifestações religiosas – contribuindo para isto a referência a sua formação pessoal e familiar, marcada por mística e religiosidade. Em seu desenvolvimento como socialista, o Amauta incorpora ao seu discurso termos como mito,

fé e religiosidade, que passam a constituir o horizonte de sua reflexão revolucionária. Por

outro lado, ao demonstrar uma preocupação criteriosa com a análise das manifestações políticas e históricas de atores e instituições religiosas – tanto na Itália, quanto no Peru e no continente latino-americano – Mariátegui não deixa, porém, de distanciar-se de críticas racionalistas e anticlericais, afirmando uma “nova concepção” de religião, mais ampla e profunda, que se descola de adjetivações obscurantistas.

Palavras-chave: Mariátegui, José Carlos, 1894-1930; Marxismo; Socialismo - América Latina; Mito - aspectos políticos; Religião e política.

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ABSTRACT

This dissertation is dedicated to the study of Peruvian Marxist José Carlos Mariátegui (1894-1930) works and especially to the analysis of the political relevance of concepts such as myth and religion in his work. The chapters refer to the three phases of Mariátegui's life – his youth (1914-1919); exile (1919-1923); return and posterior socialist activism in Peru (1923-1930) – we aim at a better understanding of Amauta’s concerns regarding the aforementioned concepts by evaluating his intellectual and political formation. The research shows that, in contrast with others classical Marxist authors, Mariátegui assumes a more sensitive vision of the social and historical roles performed by different religious expressions – for which his personal and family education, marked by religiosity and mystique, are a great contribution. In his socialist development, Amauta incorporates to his speech expressions such as myth, faith and religiosity, which constitute the horizon of his revolutionary thought. On the other hand, by demonstrating a careful concern in his analysis about political and historical manifestations of religious actors and institutions – in Italy as well as in Peru and Latin America – Mariátegui distances himself from rationalists and anticlerical critics, affirming a “new conception” of religion, wider and deeper, and detached of obscurantist adjectives.

Keywords: Mariátegui, José Carlos, 1894-1930; Marxism; Socialism - Latin America; Myth - political aspects; Religion and politics.

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Sumário

Introdução...1

Cap. 1 – O jovem Mariátegui – 1914 - 1919...13

Saúde débil, curiosidade voraz...17

Antecedentes das ideias políticas e da religião no Peru e na América Latina...20

Independências e reações eclesiásticas...20

A fé do povo latino-americano...24

A relação Igreja-Estado no Peru...27

O Peru durante a “República Aristocrática”...30

Primeiros passos de Juan Croniqueur...34

Mariátegui e González Prada...34

A experiência de La Prensa e a fome literária de Mariátegui...37

A experiência colonidista ...39

O misticismo e a emoção religiosa em Juan Croniqueur ...42

Escândalo e desilusão...47

Para além de Juan Croniqueur...48

Primeiras divagações socialistas...48

La Razón e as lutas populares...51

Cap. 2 – Mariátegui na Itália – 1919 - 1923...59

Mariátegui e a política italiana...62

Contexto histórico e político...62

Os católicos na política italiana...66

O envolvimento de Mariátegui com a política local...68

Influências intelectuais...73

Mariátegui, política e catolicismo na Itália...91

Cap. 3 – Mariátegui, militante socialista – 1923 - 1930...107

Os primeiros anos do oncenio de Augusto Leguía (1919-1930)...108

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As Universidades Populares...112

Os protestos de 23 de maio de 1923...114

As conferências sobre a “história da crise mundial” e a repressão governamental 117 Mito, fé e revolução...122

Homens pré-bélicos e pós-bélicos...124

O homem e o mito...127

Pessimismo da realidade e otimismo do ideal...132

Crítica da laicidade...134

O marxismo como agonia...135

De Amauta aos 7 ensayos...139

Amauta e os homens novos do Peru...139

Haya, a APRA e os comunistas...141

A repressão governamental em 1927 ...143

A publicação dos 7 ensayos...148

O fator religioso...152

Para além do obscurantismo...152

A religiosidade indígena nos Andes...154

Conquista e evangelização...156

A independência peruana e a Igreja...160

Conclusão...169

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En mi camino, he encontrado una fe. He ahí todo. Pero le he encontrado porque mi alma había partido desde muy temprano en busca de Dios. Soy una alma agónica, como diría Unamuno. (Agonia, como Unamuno, con tanta razón lo remarca, no es muerte sino lucha. Agoniza el que combate) (MARIÁTEGUI, 1987a, p. 154)

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Introdução

Esta dissertação é fruto de pesquisa desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-graduação em Ciência Política do IFCH/UNICAMP, nível de Mestrado, sob orientação do Prof. Alvaro Gabriel Bianchi Mendez (DCP/IFCH/UNICAMP). O trabalho em questão integra um conjunto de pesquisas situadas no interior do Grupo de Pesquisa Marxismo e Pensamento Político (GPMPP), vinculado ao Centro de Estudos Marxistas (CEMARX/IFCH/UNICAMP), e contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). A pesquisa se dedicou ao estudo da obra do marxista peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930) e, mais precisamente, à importância política dos conceitos de mito e religião no conjunto de sua obra.

O caráter inovador dos estudos de José Carlos Mariátegui é comumente atestado por seus comentadores. José Aricó faz notar que o desenvolvimento da formação marxista do Amauta não se produz dentro dos limites do movimento comunista no âmbito da Terceira Internacional; além disso, o movimento socialista peruano teria se estruturado no quadro de um amplo movimento intelectual e político, não submetido ao cerceamento de um partido comunista e nem à herança de um partido socialista que fixasse no movimento social a forte marca positivista que, por muitos anos, influenciou diversos marxistas (ARICÓ, 1987, p. 450). Exilado nos anos de 1919-1923, vivendo grande parte deste período na Itália, Mariátegui tomaria contato com diversas experiências políticas envolvendo os trabalhadores daquele país, as lutas sociais, a crise do Estado liberal italiano e o ascenso do fascismo. Em solo italiano é que se daria, fundamentalmente, o aprofundamento dos estudos e das convicções socialistas aos quais Mariátegui dedicaria os anos restantes de sua vida (cf. SYLVERS, 1981; BEIGEL, 2005; PERICÁS, 2010).

Após seu retorno ao Peru, Mariátegui proporia uma análise marxista da realidade latino-americana – e, mais especificamente, da realidade peruana – que se distanciava consideravelmente da rigidez pela qual os comunistas sob a tutela da Terceira Internacional se guiavam. A esperança revolucionária para os chamados “países coloniais” ou

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“atrasados”, no escopo do Comintern, se baseava na necessidade de uma “via chinesa”, de uma revolução democrático-burguesa de libertação nacional (RICUPERO, 2000, p. 81). Mariátegui afirmava defender, por sua vez, nada menos do que o próprio aspecto dialético do pensamento marxista e seu apoio integral na realidade dos fatos, entendendo que a operação e a ação do marxismo devia se dar em consonância com a especificidade de cada país (MARIÁTEGUI, 1988a, p. 112). Através desta perspectiva, o Amauta traria para o âmbito do pensamento marxista temas pouco usuais e normalmente ignorados pelos círculos socialistas da época – em especial, o problema indígena – que dariam importantes colorações à iniciativa do autor de pensar a construção de um socialismo propriamente latino-americano.

O caráter inventivo e, poderíamos também dizer, herético do marxismo de José Carlos Mariátegui não apenas diz respeito a uma tentativa de apropriação “nacional” das ideias de Marx, mas também se referencia no diálogo que o socialista peruano promove com uma diversidade espantosa de fontes e ideias. O contexto do pensamento político no Peru do início do século XX, não obstante a presença do liberalismo e do positivismo entre diversos grupos intelectuais e dirigentes, também abarcava perspectivas tais quais o irracionalismo, o anarquismo e, em certa medida, o socialismo – os rumores e temores das elites e dos governantes do país se faziam aumentar em vista das notícias da Revolução Russa, de 1917, que aos poucos alcançavam o país andino. Mariátegui, antes de atingir os 25 anos, já possuía um produção jornalística formidável, além de ser um ávido leitor de jornais e revistas nacionais e estrangeiras e também de diversos nomes da literatura universal. Com sua viagem para a Europa, o ânimo intelectual do jovem Amauta só fez se expandir, permitindo-se diálogos bastante frutíferos com nomes como Henri Barbusse, Benedetto Croce e Piero Gobetti, além de testemunhar episódios importantes da política italiana e europeia, tal como o Congresso do Partito Socialista Italiano (Livorno, 1921), de onde dissidiriam aqueles que, sob a liderança de Antonio Gramsci, fundariam o Partito Comunista d'Italia. Com tamanha abertura e disposição de conhecimento, a assimilação do marxismo se deu simultaneamente à incorporação de elementos e ideias vinculados ao pensamento de outros intelectuais como Friedrich Nietzsche, Henri Bergson, Miguel de

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Unamuno, Georges Sorel, os surrealistas, entre outros (LÖWY, 2005, p. 10).

A originalidade do trabalho de Mariátegui recai, portanto, sobre diversos aspectos e temas, e para compreender tais especificidades é necessário recorrer não apenas ao entendimento daquilo que o autor afirmava e apresentava em seus escritos, mas também à compreensão do contexto histórico vivido pelo personagem que estudamos e às fontes intelectuais e ideológicas que ajudaram a forjar o conjunto de ideias defendidas pelo Amauta.

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A religião é o “ópio do povo”, nos afirma Karl Marx em sua Crítica da Filosofia do

Direito de Hegel. Esta é uma expressão clássica1, tida usualmente como a quintessência da

análise marxista do fenômeno religioso – tanto pelos adeptos do marxismo, quanto por seus adversários (LÖWY, 1998, p. 157). De fato, Marx, Engels e outros autores que reivindicam, em suas análises e estudos, os fundamentos do pensamento marxista, se apoiam na célebre assertiva para tecerem suas considerações sobre a religião, pontuando seu caráter opiáceo, obscurantista, contraditório, alienante da realidade da natureza e da humanidade. É também significativamente presente na proposta teórica vislumbrada pelo marxismo de vários autores o declínio da religião em benefício de uma cultura materialista, de um novo modo de enxergar o mundo que não mais atravessa o campo das manifestações religiosas.

Podemos reconhecer que as questões levantadas pelas análises marxistas não beiram, obrigatoriamente, o simplismo da condenação do fenômeno religioso como um aspecto deplorável e que deva ser eliminado. A religião pode não ser um dos grandes temas abordados pelo pensamento marxista, mas grande parte daqueles que dedicaram-se a esta tarefa o fizeram com honestidade, critério, e preocupações legítimas2. Tommaso La Rocca

1 “Entretanto”, no diz Löwy, “esta fórmula nada tem, em especial, de marxista. Com desprezíveis

gradações, podemos encontrá-la, antes de Marx, em Kant, Herder, Feuerbach, Bruno Bauer e muitos outros” (1998, p. 157).

2 Cabe a observação, porém, de que o olhar sobre a qualidade da argumentação marxista acerca do tema é

controverso. Jean-Pierre Cot (1984, p. 11-12), por exemplo, nos diz que a tradição marxista é curiosamente incompleta diante do fenômeno religioso, hesitando entre a especulação filosófica e o

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nos recorda que, após Marx e Engels, diversos autores de relevância no campo marxista dedicaram análises ao tema religioso – como Karl Kautsky, Rosa Luxemburgo, V. I. Lenin, Antonio Labriola, Antonio Gramsci, Karl Korsch, György Lukács, Ernst Bloch, além de um numeroso grupo de pensadores marxistas do segundo pós-guerra (LA ROCCA, 1998, p. 521).

No caso de José Carlos Mariátegui o olhar sobre as diferentes manifestações religiosas assume outros contornos, não simplesmente de modo crítico, mas também sensível ao papel cumprido pela fé no conjunto de uma sociedade profundamente desigual como aquela na qual o Amauta vivia no Peru. Ainda antes de se assumir como socialista, Mariátegui redigia muitos textos atravessados por aspectos místico e religiosos, em grande parte fruto de sua própria formação familiar, já que sua mãe era fervorosamente católica. Tinha grande apreço pelas festas populares, como a da celebração do Senhor dos Milagres, que lhe rendeu um premiado artigo publicado em 1917. Ao viajar à Europa, Mariátegui também não deixou de notar a importância histórica e política cumprida pelos católicos, especialmente na Itália recém-unificada. Mariátegui não apenas aprofundou sua perspectiva antipositivista e antidogmática acerca do socialismo marxista, como também começou a enxergar a importância de figuras como a do mito para a construção de um ímpeto de luta que fosse capaz de romper com os lastros imobilistas e conservadores da racionalidade burguesa. Conceitos como mito, fé e religiosidade passam a constituir o horizonte da reflexão revolucionária de Mariátegui, forjando uma “dimensão religiosa” da empreitada socialista.

Contrastado a outros autores marxistas, Mariátegui também defenderá um olhar sobre a religião que vá além de sua identificação com o “obscurantismo”. Afirmando a amplitude do conceito de religião, Mariátegui se oporá às críticas racionalistas e anticlericais, cuja origem identificava no liberalismo burguês. E enquanto se valia do mito, da fé e da religiosidade para alimentar seu propósito revolucionário, também era cuidadoso combate político, o que consequentemente impediu o marxismo de dotar-se de uma sociologia da religião: “Os autores marxistas raramente se interrogaram sobre as condições de formação e de distribuição das opiniões religiosas. Na falta desta reflexão, sua análise das funções da religião e de suas relações com a estrutura econômica só podia levar a conclusões simplistas”.

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para promover tanto análises quanto críticas das manifestações históricas e políticas dos atores e instituições religiosas. “O fator religioso”, capítulo publicado em 7 ensayos de

interpretación de la realidad peruana, é um excelente exemplo de tentativa de explicação

da intervenção da concepções religiosas e do papel cumprido pela religião na vida social e no desenvolvimento da história do Peru (RIVERA, 1985, p. 37).

A presente pesquisa se norteou pelos seguintes pontos:

I. Identificar os fatores que conduzem Mariátegui à análise da religião: o que lhe permite se interessar pelo fenômeno religioso, e o modo como o observa; II. Salientar os diferentes momentos do desenvolvimento das reflexões de José

Carlos Mariátegui, em consonância com as diferentes situações históricas e nacionais vividas pelo autor, destacando a presença e a importância que temas como mito e religião assumem em seus escritos;

III. Esclarecer as relações estabelecidas entre suas análises sobre os temas citados acima e as propostas políticas que defende ao longo de sua obra. Com este estudo procuramos trazer novos elementos para o desenvolvimento de uma reflexão sobre o tema da religião no âmbito do pensamento político marxista. O esforço aqui pretendido é o de apresentar a importância deste assunto nos escritos de José Carlos Mariátegui, notoriamente nas relações estabelecidas com a constituição de seu discurso revolucionário, e na análise histórica e concreta das instituições religiosas e dos fenômenos sociais e políticos que envolviam, com significativa importância, a presença de aspectos místicos e religiosos.

Realizamos este exercício através de uma tentativa de resgate aprofundado de seus trabalhos (cartas, periódicos, artigos e ensaios publicados), situando-os em uma perspectiva de análise da história do pensamento político. Era fundamental que a pesquisa apresentasse qualitativamente a importância das fontes históricas e teóricas das quais Mariátegui se alimentava intelectualmente; e a compreensão do contexto histórico que Mariátegui vivia, a dinâmica política e das lutas sociais em que o Amauta estava envolvido. Também

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dedicamos importância à melhor compreensão da atuação política das instituições religiosas, e do elemento religioso como constitutivo tanto da formação da personalidade e das ideias de José Carlos Mariátegui, como da cultura e da sociedade peruana em que o socialista se inseria. Para tanto, além dos trabalhos de Mariátegui, também recorremos aos textos de autores que influenciaram teoricamente o Amauta, bem como os analistas que se debruçaram sobre a vida e obra do autor peruano e sobre a história do pensamento no Peru e, em certa medida, na Europa (especialmente na Itália)3. Os recursos desta pesquisa foram

consultados especialmente nos acervos da Biblioteca Octávio Ianni (IFCH/UNICAMP), do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/IFCH/UNICAMP), da Biblioteca Central Cesar Lattes (BCCL/UNICAMP), da Biblioteca Florestan Fernandes (FFLCH/USP), da Biblioteca Central Luis Jaime Cisneros e da Biblioteca de Ciencias Sociales Alberto Flores Galindo (ambas da Pontificia Universidad Católica del Perú).

Optamos por organizar a pequisa em capítulos dedicados a cada etapa do desenvolvimento dos trabalhos e ideias de Mariátegui, cronologicamente, tais como: juventude (a chamada “edad de piedra”4, 1914-1919), quando Mariátegui inicia sua

atividade periodística, passando por diferentes órgãos de comunicação da imprensa de Lima, dando no final deste período seus primeiros passos rumo a tendências socialistas; o exílio na Itália (1919-1923), quando Mariátegui, através do contato com diversos intelectuais e com o ambiente político local, amadurece o seu contato com o marxismo e as

3 Estas observações metodológicas buscam se conectar a um exercício coletivo direcionado ao

desenvolvimento de novos métodos de estudo da história do pensamento político, exercício este que se realiza atualmente no interior do GPMPP. Uma das expectativas que norteiam os debates internos do grupo é a consideração da unidade entre filosofia, história e política no estudo do pensamento político, permitindo aos pesquisadores esclarecer um processo de criação das ideias políticas que pode ser marcado por conflitos políticos e intelectuais em relação aos quais o autor estudado toma parte. Assume importância a compreensão, no interior da obra, das fontes, dos interlocutores, dos adversários e dos colaboradores da mesma, os quais – embora existindo fora da obra do autor – adquirem uma importância particular para a história do pensamento político em seu interior (cf. BIANCHI, 2014).

4 O termo é atribuído a Mariátegui, que assim teria classificado seus trabalhos escritos antes do exílio em

1919. Tal expressão é recorrentemente usada por vários comentadores, sem no entanto haver um registro da expressão na obra do Amauta. Apesar desta falta, a informação de que Mariátegui se valia da classificação “edad de piedra” foi corroborada por seu filho, o intelectual peruano Javier Mariátegui, sendo consagrada entre os mariateguistas com a publicação do primeiro tomo do trabalho biográfico de Guillermo Rouillón, La creación heroica de José Carlos Mariátegui: La edad de piedra.

Agradecemos ao professor Ricardo Portocarrero Grados, cujos esclarecimentos sobre o assunto colaboraram para esta nota.

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ideias socialistas; e finalmente a “edad revolucionaria”5 (1923-1930), em que o Amauta se

dedica à tarefa de construção da luta socialista no Peru por vias como a imprensa e a organização sindical e partidária. Deste modo, esperamos situar mais precisamente a discussão feita por Mariátegui sobre os temas desta pesquisa (mito e religião) no interior de um trajeto histórico com aspectos particulares, associando a forma como o Amauta os aborda ao amadurecimento de suas ideias.

***

No primeiro capítulo deste trabalho nos dedicamos à compreensão das atividades de Mariátegui nos anos de juventude: sua infância; aspectos de seu contexto familiar; sua voracidade intelectual; a passagem pelos jornais La Prensa e El Tiempo; o crescimento do reconhecimento público de Mariátegui; seus primeiros contatos com o anarquismo e as reivindicações dos trabalhadores (por influência de González Prada); sua participação no grupo Colónida; a fundação dos periódicos Nuestra Época e La Razón, seus primeiros contatos com as ideias socialistas e o papel cumprido por Mariátegui nas revoltas sociais eclodidas especialmente no ano de 1919 (quando Augusto Leguía, através de um golpe, assume o poder e inicia sua ditadura – o oncenio). Neste ínterim, procuramos apresentar também como as questões místicas e religiosas se entrelaçavam com sua realidade, seja no ambiente familiar, nas leituras que fazia, e na sua observação da realidade social e cultural peruana, que procuramos compreender a partir das leituras de seus artigos, publicados posteriormente sob a alcunha de Escritos Juveniles (cf. MARIÁTEGUI, 1994). Entendemos ser inviável a compreensão das questões e reflexões propostas por Mariátegui, já após 1923, sem entender que papel cumpre estes aspectos do passado do Amauta em suas próprias ideias – concordando com a hipótese levantada por Aníbal Quijano (2007, p. XXXIV-XXV) a respeito da permanência destas preocupações emocionais, metafísicas, que atravessam sua concepção voluntarista da ação política e que implicam particularidades em

5 O termo “edad revolucionaria” foi cunhado por Guillermo Rouillón no segundo volume de seu trabalho

biográfico sobre José Carlos Mariátegui: La creación heroica de José Carlos Mariátegui: la edad

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sua adesão ao marxismo. Também procuramos trazer um panorama histórico sobre a relação entre religião (especialmente o catolicismo) e política no Peru e na América Latina, e também acerca da força da religiosidade popular e do papel do catolicismo na organização da sociedade peruana, para melhor compreensão do contexto a que nos referimos.

No segundo capítulo é brevemente observado o contexto da política italiana que precede a chegada de Mariátegui à Itália: o Risorgimento, a ascensão dos socialistas e dos nacionalistas, o papel cumprido politicamente pelos católicos naquele país. A continuidade deste texto dirá respeito à trajetória intelectual e política percorrida por Mariátegui na época. Daremos especial atenção à importância de alguns nomes que marcam a formação do Amauta no período, entre eles Georges Sorel. O teórico francês era um dos principais entusiastas do “sindicalismo revolucionário”, tendência que marcou em grande medida a organização do movimento operário na Itália (bem como na França), e defendia em sua obra mais conhecida, Reflexões sobre a violência (1908), a importância do mito, definida pelo autor francês como uma construção, um conjunto de imagens capaz de orientar a ação dos revolucionários, evocando com a força do instinto o sentimento de luta. Para Sorel, a

greve geral e a “revolução catastrófica” defendida por Marx eram exemplos de mitos

(SOREL, 1992, p. 41; cf. GALASTRI, 2011). É bastante notável a importância que Mariátegui atribui ao pensamento de Sorel, e entendemos que as ideias do teórico francês constituem um contributo fundamental para a reflexão mariateguiana sobre o mito, a fé, o

ascendente religioso do socialismo.

O segundo capítulo também analisa as reflexões de Mariátegui sobre o catolicismo na Itália. O Amauta dedica artigos à organização política dos católicos, em especial ao recém-fundado Partito Popolare Italiano (PPI) e sua figura mais conhecida, Dom Luigi Sturzo. As reflexões do Amauta também buscavam analisar as disputas entre “populares”, socialistas e liberais. A presença parlamentar, a polêmica do divórcio, as eleições italianas, o ascenso do fascismo ao poder e sua aproximação com a Igreja, entre outros temas, trariam o PPI para o conjunto das análises de Mariátegui6.

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O terceiro capítulo apresenta o desenvolvimento das ideias socialistas de Mariátegui no Peru entre 1923-1930. Nos preocupamos em recuperar seus trabalhos junto aos operários e estudantes peruanos (por exemplo, a ministração das conferências sobre a “História da Crise Mundial” nas Universidades Populares González Prada), sua aproximação a Haya de la Torre e a proposta de uma frente anti-imperialista, a fundação da revista Amauta (1926), a polêmica de Mariátegui com o aprismo e a construção do Partido Socialista Peruano. Neste conjunto, abordamos aspectos referentes ao tema religioso que surge em seus trabalhos, buscando compreender a importância política que assumem na análise de Mariátegui.

Neste sentido, dois eixos fundamentais marcam o capítulo. O primeiro diz respeito às reflexões que o Amauta desenvolve no sentido de estabelecer identidades entre o político e o religioso, entre a “dimensão revolucionária” e a “dimensão religiosa” da luta socialista, em contraposição ao ceticismo e ao racionalismo que marcavam as doutrinas políticas liberal-burguesas e que encontravam guarida também no seio dos socialistas alojados no campo da II Internacional. É neste conjunto de análises que o mito assume força especial como conceito de caráter político, constituindo junto a outros termos (como mística, fé,

religiosidade, etc) um léxico revolucionário do qual o Amauta se apropria não apenas em

seus escritos mais conhecidos sobre o tema (de 1925, publicados em El alma matinal) mas também em outros textos que produzirá até o fim de sua vida.

O segundo refere-se às análises publicadas em sua obra mais celebrada e conhecida, os 7 ensayos de interpretación de la realidad peruana (1928). Neste trabalho encontramos um capítulo dedicado exclusivamente ao tema da religião (“El factor religioso”), que aborda o papel da religião e da espiritualidade indígena no Peru, o papel histórico do catolicismo desde sua chegada com a “conquista” espanhola no país, suas diferenças em relação às tarefas cumpridas pelo protestantismo na América do Norte, além de trazer uma permanente discordância sobre a identificação da religião com o “obscurantismo”. Podemos notar em Mariátegui, a despeito das críticas que possa tecer à Igreja, uma de textos do período também estão disponíveis na seleção organizada por Luiz Bernardo Pericás, As

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preocupação com um anticlericalismo simplista e que o mesmo identifica como um desvio liberal-burguês.

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A produção deste trabalho seria inviável sem o apoio de determinadas pessoas e instituições, aos quais gostaria de registrar agradecimentos.

Primeiramente, sou grato à CAPES pelo amparo financeiro que permitiu o desenvolvimento desta pesquisa; e ao professor Alvaro Bianchi pela dedicação e atenção com as quais supervisionou a presente investigação. Seus diálogos, observações e críticas foram essenciais para este trabalho e também para o meu amadurecimento como pesquisador. Devo mencionar também minha gratidão aos colegas do GPMPP que, ao longo deste período, contribuíram com leituras, observações e diálogos que foram importantes para a produção desta dissertação. Por fim, a Isabella Meucci e Julia Abdalla, meus agradecimentos pelo auxílio em traduções aqui utilizadas.

Agradeço, em segundo lugar, aos colegas discentes e docentes do DCP/IFCH e demais colegas de pós-graduação pelos debates que me ajudaram a levantar questões não apenas sobre esta pesquisa, mas também sobre outros temas pertinentes ao campo da ciência política – além, é claro, de reduzir um pouco o impacto da dura rotina a qual nos submetemos. Agradeço pelos diálogos, e também pelas boas risadas. De semelhante modo, registro minha satisfação ao encontrar, durante este período, outros jovens pesquisadores interessados na obra de Mariátegui como Ricardo Streich, Deni Alfaro Rubbo e Bernardo Soares. Obrigado pelas trocas de informações e pelos frutíferos diálogos.

Em alguns momentos o andamento da pesquisa dependeu de auxílios materiais fundamentais. Neste sentido, gostaria de registrar meus agradecimentos ao professor Bernardo Ricupero pelas sugestões oferecidas a esta investigação e também por me permitir o acesso aos Escritos Juveniles. Também menciono minha gratidão ao professor Ricardo Portocarrero Grados pela indicação de materiais e publicações e pelo esclarecimentos de dúvidas surgidas ao longo deste trabalho.

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Um registro especial deve ser feito em relação aos funcionários das bibliotecas e arquivos consultados. Habitualmente, pouco recordamos o valor destes trabalhadores em relação à garantia, segurança e cuidado com que tratam nossos instrumentos de trabalho. Neste sentido, deixo aqui minha gratidão aos funcionários da biblioteca do IFCH e do DCP pelo importantíssimo auxílio que ofereceram neste tempo. De semelhante modo, quero agradecer também aos cordialíssimos funcionários da PUCP durante o período de pesquisas realizado em Lima. Seu auxílio foi inestimável.

Ainda em referência ao Peru, é impossível não recordar, com imensa gratidão, a atenção que me dispensou a querida Ruty Nicacio em minha estadia em Lima, me permitindo conhecer esta encantadora cidade e vários colegas peruanos, seus gostos e suas histórias; e também, e especialmente, a meu caro Oscar Mejía Muñoz e toda sua querida família, que me receberam com paciência e ternura impressionantes. Lembrarei sempre de vocês como “minha família peruana”. Com muito carinho é que lhes agradeço e, por meio de vocês, também saúdo aos demais colegas peruanos com quem pude dialogar neste período.

Agradeço à atenção e à paciência que muitos amigos dedicaram a mim durante estes anos. Gostaria de citar, especialmente: Maíra Bichir, Thaís Lima, Priscila Akemi, Felipe Eltermann, meus queridos amigos da Casa da ABU. Cito estes, mas com o intuito de que representem outros tantos colegas para os quais também dedico grande carinho.

Por fim, agradeço ao apoio inestimável de minha família. Aos meus pais, Sydnei e Joselita, por terem sempre acreditado em meu potencial, pelo amor sempre dedicado e especialmente por me desafiarem a nunca abaixar a cabeça diante dos momentos de cansaço e de angústia que se apresentaram; à minha avó, dona Dodô, por seu apoio incondicional e por suas orações; ao meu irmão, Vitor, pelos diálogos e pelas necessárias doses de pragmatismo; e finalmente à minha namorada, May, pelo carinho e amor com que cuidou de mim em tantos momentos destes anos de pesquisa. Obrigado por cada abraço apertado e amoroso que pude desfrutar contigo.

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Cap. 1 – O jovem Mariátegui – 1914 - 1919

“(...) mi alma había partido desde muy temprano en busca de Dios”, afirmava Mariátegui, em 1926, numa entrevista concedida a Angela Ramos7. Neste momento,

Mariátegui já desenvolvia suas orientações socialistas com relativa maturidade. Um ano antes, havia publicado seu primeiro livro, La Escena Contemporánea, e proferido discursos sobre a “História da Crise Mundial”8. Havia quatro anos desde seu retorno da Europa, em

março de 1923, donde vinha com a convicta tarefa de construir o socialismo no Peru.

E, no entanto, poderiam soar estranhas as palavras de Mariátegui àqueles que, naturalmente, tendiam a enxergar naquele homem, já conhecido no periodismo peruano desde 1914, claras mudanças de orientação em suas ideias e convicções. Angela Ramos, ao questionar como se modificaram os rumos e as aspirações literárias de Mariátegui – bem como em que momento elas se definiriam – ouviria do próprio entrevistado que, no fundo, não estava convicto de haver mudado. Era uma questão de trajetória e de época:

He madurado más que cambiado. Lo que existe en mí ahora, existía embrionaria y larvadamente cuando yo tenía veinte años y escribía disparates de los cuales no sé por qué la gente se acuerda todavía” (MARIÁTEGUI, 1987a, p. 154).

Este período ao qual Mariátegui se refere – sua produção periodística de 1914 a 1919 – é recordado também, e especialmente, em carta encaminhada pelo marxista peruano dois anos mais tarde, em 10 de janeiro de 1928, ao argentino Samuel Glusberg, estabelecendo de forma bem mais objetiva uma ruptura com seus “primeros tanteos de literato inficionado de decadentismos y bizantinismos finiseculares”, rumo a uma orientação socialista, a partir de 1918. Mariátegui – que propriamente afirmava não ser um

7 Mundial, Lima, 23 de julho de 1926. Apresentando esta entrevista, Angela Ramos destaca: “la vida de

Mariátegui es una vida heroica, de santo y de luchador, y su obra el resultado de su vida. ¿Cómo ha conseguido este hombre admirable esta serena armonía entre su vida y su obra? El mismo nos lo dice más adelante que por la fe, y si la fe opera grandes milagros en seres mediocres qué no haría en espíritus de selección?” (MARIÁTEGUI, 1987a, p. 154).

8 Proferida nas Universidades Populares González Prada, a convite de Victor Raúl Haya de la Torre, a partir

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escritor muito autobiográfico – assim resume este período:

Nací el 95. A los 14 años, entré de alcanza-rejones a un periódico. Hasta 1919 trabaje en el diarismo, primero en La Prensa, luego en El Tiempo, finalmente en

La Razón diario que fundé con Cesar Falcón, Humberto del Águila y otros

muchachos. En este último diario patrocinamos la reforma universitaria (MARIÁTEGUI, 1994, p. 1875).

Há, é verdade, alguns equívocos e omissões, que cabe esclarecer: Mariátegui era nascido, de fato, em 18949; não menciona suas colaborações em El Turf, Lulú ou Mundo

Limeño; busca oferecer a imagem de uma iniciação periodística ao largo de suas

preocupações “literárias” e sem mencionar suas crônicas, contos e mais de cinquenta poemas publicados entre 1915 e 1917 (FLORES GALINDO, 1982, p. 119).

Entre o enxergar de um amadurecimento das ideias, como exposto na entrevista de Mariátegui a Angela Ramos, e a afirmação da ruptura, relatada na carta a Samuel Glusberg, parece ter sido este último olhar aquele melhor recebido pelos estudiosos da obra do Amauta – recepção esta certamente reforçada pelas próprias palavras de Mariátegui, que teria classificado o período de 1914 a 1918 como sua “edad de piedra”. Não por menos, as

Obras Completas de José Carlos Mariátegui, primeiro trabalho de reunião de textos do

autor, não incluiriam os escritos anteriores a 1919, devido a um posicionamento editorial que não reconhecia qualquer acréscimo ou contribuição dos textos desta época à compreensão das ideias do autor10. Se a ampla maioria dos estudiosos enxergavam

nitidamente a existência de duas etapas no desenvolvimento intelectual de Mariátegui – a “edad de piedra”, primeiramente, e em segundo lugar a “edad revolucionaria”, referente a sua afirmação marxista – isto se converteu em um detido interesse sobre os escritos do

9 Este erro aparentemente não é proposital. Guillermo Rouillon observa que possivelmente Mariátegui não

sabia seu verdadeiro ano de nascimento. Esta informação é reforçada pelo registro de certidão de nascimento ao qual o pesquisador obteve acesso para o trabalho biográfico que desenvolveu sobre José Carlos Mariátegui, indicadora do nascimento do autor em Moquegua, em 14 de junho de 1894. O documento contrapunha-se a outro, que referia o nascimento de Mariátegui em Lima, em 14 de junho de 1895, e no qual provavelmente Mariátegui se baseava (ROUILLON, 1975, t. 1, p. 35-38).

10 Esta posição é justificada pelos editores das Obras Completas: “Respetuosos de la apreciación que ese

período de su vida le mereciera, y que irónicamente llamaba su 'edad de piedra', no incluimos sus escritos de aquella época, que, además, poco añaden a su obra de orientador y precursor de la conciencia social en el Perú” (em MARIÁTEGUI, 1987, p. 5).

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Amauta posteriores ao seu retorno ao Peru (pós-1923), e uma bastante reduzida curiosidade sobre seus escritos de juventude.

Todavia, trabalhos interessados no resgate desta primeira etapa intelectual da vida de José Carlos Mariátegui foram, ao poucos, se apresentando. Segundo Flores Galindo (1982, p. 120-121), Edmundo Cornejo inauguraria estes estudos em 1955, propondo uma antologia de textos sob o título de Páginas literarias, reeditada em 1978, oferecendo uma imagem objetiva de Juan Croniqueur11. A seguir, entre tarefas de reunião de textos e

promoção de análises, se acrescentariam a esta empreitada os trabalhos de Anibal Quijano, em 1956; Hugo Neira em 1960; Carnero Checa, em 1964; Diego Messeguer Illán, em 1974; Jeffrey Klaiber, em 1977; e especialmente Guillermo Rouillon, sempre lembrado por vários estudos contemporâneos como autor de uma das mais completas biografias sobre o Amauta,

La creacion heroica de José Carlos Mariátegui, de 1975. O amplo conjunto de escritos de

Mariátegui referentes à “edad de piedra” só seria finalmente reunido para publicação na década de 1980, sob o título de Escritos Juveniles: oito tomos de poesias, contos, crônicas, textos teatrais, entrevistas e artigos que permitiriam aos novos pesquisadores um instrumento mais qualificado para a compreensão do significado das ideias e dos escritos do jovem Mariátegui, e as relações desse período com sua fase mais madura, na década de 1920.

O reconhecimento da importância desta primeira fase da obra de Mariátegui nos parece, deste modo, fundamental – especialmente no sentido de compreender com maior agudez o envolvimento de Mariátegui com temas como mística e religião. Tratar do legado de Mariátegui a respeito destes temas exige a observação de que falamos de um autor cuja juventude foi profundamente marcada pela reflexão de fundo místico. É notório para Aníbal Quijano (1982, p. 75) que a experiência mística e religiosa pela qual teria passado o jovem José Carlos tenha influenciado sua obra posterior – principalmente ao referir-se a uma concepção heroica da existência e à necessidade de fundamentos metafísicos para a ação revolucionária – mediante um conflito não resolvido entre esta sua formação e a

11 Juan Croniqueur era o principal pseudônimo utilizado pelo jovem José Carlos. Também valeu-se de outros

como Jack, X. Y. Z., El de siempre, entre outros. Tauro (1994, p. 2121-2126) analisa os usos e a importância destes pseudônimos.

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assimilação do materialismo marxista12.

Assim, se no início dos estudos e da organização das publicações dos trabalhos de Mariátegui a “edad de piedra” era propositadamente ignorada – concebendo-se uma drástica interrupção entre os escritos de Juan Croniqueur e aqueles do Mariátegui “marxista convicto e confesso” pós-1923 – posteriormente surgiriam estudos dispostos a salientarem a relevância de seu período juvenil. Evidentemente, está distante a possibilidade de enxergarmos um Mariátegui de pensamento monolítico e permanente. É equívoco afirmar Juan Croniqueur como um socialista pleno. Porém, o que nos parece claro, corroborando a preocupação de Guillermo Rouillon, é que há uma inquietude no jovem Mariátegui que permite explicar suas posições revolucionárias futuras, bem como suas preocupações provenientes dos acontecimentos da Revolução Russa de 1917, que influenciarão suas posições políticas. Assim, concordamos que a obra de Mariátegui não pode ser bem explicada sem um atento exame dos anos de sua mocidade e dos complexos problemas que confrontou (ROUILLON, 1975, t. 1, p. 13). Afirmamos, de semelhante modo, que a sensibilidade de Mariátegui a temas como mística e religião permanecerá e também amadurecerá, no sentido de promover o diálogo e uma incorporação singular desta discussão no escopo das ideias revolucionárias do nosso autor. Um amadurecimento que também será fruto do futuro contato de Mariátegui com outras teorias revolucionárias baseadas na construção de grandes mitos e símbolos. Neste sentido, reconhecendo o rigor da autocrítica de Mariátegui quanto ao seu labor juvenil, nos cabe, porém, resgatar este passado como um passo necessário à compreensão das ideias deste valioso marxista latino-americano.

12 A hipótese de Quijano é que a não resolução deste confronto no terreno epistemológico e metodológico foi

devida às insuficiências de sua formação inteiramente autodidata, e por encontrar um meio ético-filosófico de solução que, não por ser teoricamente inconsistente, era menos eficaz psicologicamente no Mariátegui maduro. A isto teria contribuído o caráter mesmo do debate ideológico italiano (com o qual Mariátegui se envolveu entre 1919-1923) e o predomínio das questões culturais e políticas, porém sobre a base da própria formação de Mariátegui (QUIJANO, 1982, p. 75).

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Saúde débil, curiosidade voraz

Nascido em 14 de junho de 1894, José del Carmen Eliseo13 era filho de Maria

Amalia La Chira Ballejos (1860-1946) e de Francisco Javier Mariátegui y Requejo (1849-1907). Amalia La Chira, uma mestiça de educação religiosa, fervorosamente católica, com uma origem campesina remetida ao povoado de Sayán, serra norte de Lima, seria a principal responsável pela criação de Mariátegui e de outros dois filhos14. Javier Mariátegui

era descendente de uma ilustre e aristocrática família de liberais de Lima15. José Carlos,

porém, não o conheceu, e nem teve esclarecidas por sua mãe as circunstâncias de seu nascimento16.

Devido tanto à desgastada saúde da própria mãe, bem como a uma artrite tuberculosa, doença diagnosticada ainda na infância, Mariátegui sempre teve uma saúde bastante frágil. Em 1902, cursando seu primeiro ano escolar, o pequeno José Carlos sofre um acidente na perna, que lhe trará problemas definitivos de locomoção. Para realizar seu tratamento, dá entrada no Maisón de Santé, uma clínica beneficente de origem francesa. Sofre uma intervenção cirúrgica e permanece internado no local por quatro meses (outubro de 1902 a fevereiro de 1903), seguidos de mais dois anos de convalescença transcorridos entre as frequências hospitalares e a vida familiar. No período de internação, Mariátegui teve contato com diversas pessoas, entre familiares (maternos), “amigos” franceses, vinculados à casa de saúde, e religiosas, as monjas de San José de Cluny, também

13 Este é o nome de batismo do Amauta. A mudança de José del Carmen Eliseo para José Carlos Mariátegui

se daria mais tarde, por iniciativa do próprio autor (ROUILLON, 1975, t. 1, p. 40)

14 Mariátegui era o sexto de sete filhos. Os quatro primeiros morreram ainda pequenos. Tinha uma irmã mais

velha, Guillermina Mariátegui La Chira, e um mais novo, batizado Juan Clímaco Julio, mas que mudaria seu nome para Julio Cesar Mariátegui (ROUILLON, 1975, t. 1).

15 Javier – como se apresentava – descendia de uma família com direto envolvimento na luta de

independência do Peru, e com profunda influência liberal. Seu avô, Francisco Javier Mariátegui y Telleria (1793-1884), aproximado aos ideais da Revolução Francesa, foi ativo anticlerical e fundador da maçonaria no país, circunstâncias que o apartaram da Igreja e das convencionalidades sociais da época (ROUILLON, 1975, t. 1).

16 A conturbada relação dos pais de Mariátegui é marcada por separações e retornos, frutos da vida fugaz de

Javier. Porém, a separação definitiva ocorre após Amália descobrir a ascendência familiar de Javier, especialmente seu avô, malquisto pela Igreja por suas tendências anticlericais. Amália, muito católica, decide afastar-se definitivamente de Javier (ROUILLON, 1975, t. 1).

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responsáveis por seu cuidado. Ali ouviria muitas histórias: dos familiares, a dimensão localista das lendas e superstições indígenas; dos franceses, grandes narrativas, crenças, mitos e lendas, parte de um acervo cultural europeu; das religiosas, versos místicos, representações legendárias, a vida dos santos da Igreja e seus milagres. Estas narrativas contribuiriam para o desenvolvimento imaginativo de Mariátegui e sua precoce dedicação à reflexão. Tal experiência também aportaria elementos importantes na formação humanista de Mariátegui: reforçará a fé religiosa, inculcada pela mãe, que se projetará durante sua juventude até ser um prestigiado periodista, ao mesmo tempo em que demonstrará crescente curiosidade pela cultura europeia, alimentando um espírito cosmopolita (ROUILLON, 1975, t. 1; BRUCKMANN, 2009, p. 20).

Com a saúde ainda mais debilitada por conta de seu problema na perna, José Carlos vive longe do ambiente escolar. Quase reduzido a uma vida monástica, o menino passa a demonstrar mais claramente sua predileção à leitura, com espantosa voracidade, demonstrando especial interesse pela poesia e pela literatura, e ensaiando também pequenos artigos e poemas – através dos quais, afirma Rouillon, Mariátegui também expressava inquietações místicas e religiosas17. Lendo e relendo diversas obras, ainda cedo Mariátegui

também começa a aguçar seu senso crítico. E seu interesse ainda o orientou ao estudo da língua francesa enquanto pequeno. É assim que nosso autor inicia o seu caminho autodidata, marca profunda de seu desenvolvimento intelectual, e o qual, já na madurez, reivindicará de modo veemente:

soy un autodidacto. Me matriculé una vez en Letras en Lima, pero con el solo interés de seguir un curso de latín de un agustino erudito. Y en Europa frecuenté algunos cursos libremente, pero sin decidirme nunca a perder mi carácter extra-universitario y talvez si hasta anti-extra-universitario (MARIÁTEGUI, 1994, p. 1875-1876)

Cabe reiterar a importância destes momentos da infância de Mariátegui à medida

17 “El binomio poesía y religión se convierte en un refugio para José Carlos, o si se quiere en una válvula de

escape para su incertidumbre y duda. Los sufrimientos descritos refuerzan sus convicciones religiosas. Y su misticismo es producto del ambiente en que vive rodeado de exaltación de la fe” (ROUILLON, 1975, t 1, p. 55-56).

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que buscamos lidar com os desafios de sua fase adulta. Esta experiência infantil, marcada pela pobreza e por ausências, pela enfermidade e pela inatividade física, pela solidão e pela melancolia, pela religiosidade e pela poética mística, pelas leituras inquietas e questionadoras, nos ajuda a uma fundamental compreensão da obra adulta mariateguiana. Corroborando as indagações de Aníbal Quijano (1982, p. 34), como não ver ali a origem dos impulsos emocionais que atravessarão permanentemente uma parte de seu desenvolvimento, e em especial uma tensão agonista entre uma concepção metafísica da existência – alimento de uma vontade heroica de ação – e as implicações necessárias da adesão ao marxismo, que caracterizam grande parte de seu pensamento?

Com cada vez mais ávida dedicação aos livros, e com a permissão médica para não permanecer mais “enclausurado” em sua casa, ainda por alguns anos Mariátegui acompanhará sua mãe nas residências onde ela prestava seus serviços como costureira, sempre despertando atenções por sua curiosidade e entrega à leitura.

Como temos observado, o ambiente familiar em que crescia Mariátegui era bastante humilde, e marcado por grande fervor religioso, especialmente por parte de sua mãe. Sendo “una mezcla de raza española y de raza india” (MARIÁTEGUI, 1987, p. 94), a herança paterna não se materializou, porém, na presença do pai, mas se traduziu no conhecimento de suas relações de consanguinidade com a família Marátegui, que no ínício da década de 1910 passava a assumir maior prestígio social18. A biblioteca particular também deixada por

seu pai, herança do avô Francisco Javier Mariátegui y Telleria, não apenas se tornaria mais uma fonte de leituras, mas também instigaria a curiosidade de Mariátegui pelas suas raízes paternas – por exemplo, ao constatar nas páginas das obras as iniciais F. J. M, sem poder, no entanto, elucidar a pertença daqueles volumes (ROUILLON, 1975, t. 1, p. 67). A curiosidade voraz de Mariátegui em torno de grandes nomes da literatura da época era notada pelas famílias para quem sua mãe trabalhava, e que gentilmente lhe emprestavam diversos dos livros lidos pelo jovem na época, além dos volumes com que tinha contato na

18 Segundo Rouillon (1975, t. 1, p. 69), os Mariátegui teriam permanecido fora das posições de poder e

prestígio social no Peru como consequência das atitudes anticlericais de Francisco Javier Mariátegui y Telleria. Este prestígio se refez com a chegada de Augusto B. Leguía ao poder, em seu primeiro governo. A esposa do então presidente, Julia Swayne y Mariátegui, era prima do pai de José Carlos.

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biblioteca deixada pelo pai19.

Crescendo e observando a aumentada fragilidade da saúde de sua mãe, os irmãos José Carlos e Julio César decidem-se pela tarefa de buscar um emprego, de modo a amenizar os esforços de dona Amalia. Em 1909, Mariátegui assume seu posto como entregador e trabalhador das gráficas de La Prensa20.

Antecedentes das ideias políticas e da religião no Peru e na América Latina

Antes de analisarmos mais detidamente a trajetória política e intelectual do jovem Mariátegui a partir de seu ingresso na imprensa, cabe fazer algumas considerações a respeito do ambiente ideológico, político e religioso que o cercava e lhe permitia forjar suas reflexões.

Independências e reações eclesiásticas

O contexto social e político na América Latina se altera consideravelmente no curso do século XIX, após as colônias atravessarem vários processos de luta política que rumaram para a consolidação de nações independentes no continente. Com a exceção de alguns países centro-americanos e de Cuba, os demais países hispano-americanos tornaram-se independentes entre os anos de 1809 e 1821. O Peru, mais especificamente, teve sua independência declarada em 1821, mas apenas em 1826 os últimos destacamentos espanhóis seriam expulsos do território peruano (BUSHNELL, 2004, p. 174). Além disso, a

19 Entre os autores lidos, Luis Benjamin Cisneros, Charles Baudelaire, Rufino Blanco Fombona, J. S.

Chocano, Francisco Villaespesa, Juan de Dios Peza, Carlos Roxlo, Rubén Dario, José Martí, Manuel Beingolea, Guy de Maupassant, Anatole France, os irmãos Ventura e Francisco García Calderón, e Amado Nervo – este último, o “poeta místico”, que se tornaria à época um dos autores favoritos de Mariátegui. Acrescente-se também as leituras de Marco Anneo Lucano, Dante Alighieri, Jules Michelet, e Baltasar Gracían – trabalhos que instigariam Mariátegui a melhor compreender outras línguas como o latim, o francês e o italiano (ROUILLON, 1975, t. 1, p. 58 e 68)

20 Diário de tendência liberal, La Prensa foi fundada em 1903 por Pedro de Osma. Entre 1908 e 1912,

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cultura das elites dirigentes e intelectuais da América Latina tem suas origens na cultura da Europa Ocidental – neste caso, filtradas pelas peculiaridades das relações coloniais estabelecidas entre a América Latina e as metrópoles espanhola e portuguesa. Podemos considerar, assim, que estes dois fatores – as independências políticas no início do século XIX, e a forte influência euro-ocidental sobre as elites latino-americanas – afetarão consideravelmente as ideias políticas e sociais na América Latina (HALE, 2009, p. 331).

Nestas nações recém independentes, o liberalismo constituiu-se como base fundamental para a formulação dos programas e teorias com fins ao estabelecimento e consolidação de governos e à reorganização das sociedades. Cabe observar, porém, que o desenvolvimento das ideias liberais na América Latina deve ser notado em sua especificidade. Como afirma Hale (2009, p. 332), há uma experiência distinta sob a qual se dá o liberalismo latino-americano na medida em que este corpo de ideias é aplicado em conjunturas sociais de extrema estratificação social e racial, subdesenvolvimento econômico, com profundo arraigo na tradição de uma autoridade estatal centralizada. Se havia inicialmente na América Latina o entusiasmo com uma perspectiva liberal constitucional – a convicção de que um código de leis escritas e concebidas racionalmente podia distribuir com eficácia o poder político e garantir, assim, a liberdade individual, mola mestra da harmonia e do progresso social – tal perspectiva, porém, entraria em corrosão e declínio (desde 1830, mas especialmente após a década de 1870). Os liberais constitucionais, empenhados na limitação da autoridade e na criação de barreiras legais ao “despotismo”, fariam frente à afirmação do Estado secular, refletida numa tendência mais ao fortalecimento do que ao enfraquecimento do poder governamental21. O declínio do

constitucionalismo clássico tornou menos aparente esse conflito tradicional e, para as elites dirigentes e intelectuais, o triunfo do chamado liberalismo passou a ser sinônimo de progresso do Estado laico (HALE, 2009, p. 342).

21 O fortalecimento dos poderes se traduziria no caudilhismo, fenômeno político presente nas novas

repúblicas latino-americanas através do fortalecimento do poder pessoal de grandes lideranças políticas, por meio da inobservância dos preceitos constitucionais. Safford defende que, até certo ponto, “a autoridade não conseguiu corporificar-se nas instituições formais propostas por muitas constituições da América espanhola; ao contrário, ela se encarnou nas pessoas” (SAFFORD, 2004, p. 355).

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O republicanismo, em especial, foi apreciado pelas elites criollas como um sistema que parecia representar uma tendência do futuro. A constituição de repúblicas nas antigas colônias espanholas também ajudou a justificar o rompimento destas com a metrópole. E, especialmente após 1820, as tentativas de consolidar um controle central nas novas nações apresentaram, pelo menos formalmente, um caráter republicano (SAFFORD, 2004, p. 344). Assim, ao longo do século XIX a independência política do hemisfério ocidental implicaria a rejeição da monarquia (exceto no Brasil) e os intelectuais hispano-americanos se revelariam sensíveis às ameaças de restauração da monarquia em seu continente e ao fluxo e refluxo do ideal republicano na Europa (HALE, 2009, p. 333).

A Igreja Católica, por sua vez, se portava como um adversário do novo processo histórico latino-americano. Ela tinha uma relação direta de dependência com a coroa espanhola, mostrando-se bastante hostil às repúblicas recém-criadas. Diante das novas independências nacionais a liderança católica viu-se enfraquecida por ter parte do clero, sobretudo a hierarquia eclesiástica, defendido a causa realista; e também por conta do conflito permanente entre os novos Estados e o papado sobre o direito de nomear bispos. Além disso, os liberais tinham várias críticas à Igreja em face dos problemas econômicos que ela causava – como nos explica Safford:

a Igreja obstruiu de várias maneiras a implantação da economia liberal: os feriados religiosos prejudicavam a produtividade, e, na verdade, o próprio clero era acusado de ser improdutivo. O dízimo, cobrado sobre os produtos agrícolas, diminuía os lucros das fazendas, impedindo assim o desenvolvimento agrícola. Acreditava-se que os censos que a Igreja detinha sobre a propriedade privada impediam sua livre circulação no mercado. Do mesmo modo, dizia-se que os bens de mão-morta da Igreja impediam a livre circulação da propriedade e, segundo as concepções liberais, não eram trabalhados de maneira produtiva – portanto, eram, sob esses aspectos, semelhantes às terras comunitárias dos índios. Assim, o poder e os privilégios da Igreja eram vistos por muitos políticos civis como um importante obstáculo ao crescimento econômico, e tinha o seu poder notado como uma ameaça ao controle do Estado secular pelos civis (SAFFORD, 2004, p. 334).

Não obstante as críticas econômicas, o prestígio da Igreja Católica nos aspectos intelectual e moral também se enfraqueceu na América espanhola. As lideranças

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intelectuais que rejeitavam a monarquia absolutista também contestavam a religião revelada, ou ao menos pareciam fazê-lo. A busca por legitimação dos novos sistemas políticos se fazia mediante inspiração da filosofia das luzes, e não no pensamento político católico. Sem condição de interferir no debate intelectual, a Igreja reage pedindo ao Estado para que suprima os inimigos da religião – o que levanta a questão das relações entre Igreja e Estado (BETHELL, 2004, p. 269). Ainda, sendo os liberais desejosos de afirmar a supremacia do Estado secular e, especialmente, reduzir o poder temporal e a influência da Igreja – tida como obstáculo à modernização não apenas econômica, como já mencionado, mas também política e social – os novos governos tomaram medidas favoráveis ao princípio da tolerância religiosa e da liberdade de culto22, e aboliram a Inquisição. Com a

consequente e cada vez maior aproximação da Igreja aos setores mais conservadores das sociedade hispano-americanas, o conflito entre o Estado liberal e a Igreja Católica assumiria contornos de uma questão central para a política na América espanhola – especialmente no México, onde, nas décadas de 1850 e 1860, surgiria um violento confronto e uma guerra civil de amplas proporções23 (BETHELL, 2004, p. 271;

PETERSON e VÁSQUEZ, 2008, p. 132).

Sob um olhar amplo, podemos afirmar que, a partir das décadas de 1850 e 1860, o liberalismo foi triunfante sobre a Igreja na batalha travada entre a defesa dos princípios seculares contra os privilégios eclesiásticos. Na maioria dos países da América Latina, não apenas implementou-se a tolerância religiosa e a liberdade de culto, como também retirou-se da Igreja privilégios jurídicos e restringiu-retirou-se o poder econômico do clero. Retirou-retirou-se também de suas mãos a propriedade dos registros civis e foi instituída a educação pública obrigatória. E mesmo com alguns países preservando em suas constituições o reconhecimento do catolicismo como religião oficial, a diversidade de cultos e o laicismo

22 Bethell (2004, p. 271) observa, todavia, que a liberdade de culto fora garantida muitas vezes pelos tratados

que os vários países hispano-americanos assinaram com a Inglaterra na sequência das independências.

23 Diversas leis aprovadas pelo governo mexicano feriam privilégios clericais, impediam membros do clero

de se candidatarem ao parlamento, e dispunham as propriedades da Igreja para venda. A recusa da Igreja a estas medidas de reforma culminou numa guerra entre 1858 e 1860, na qual a Igreja foi beligerante. A consequência foi uma derrota ainda maior para Igreja, com o Estado mexicano se separando definitivamente da Igreja e aprovando supressão de ordens religiosas, a instituição da liberdade religiosa, a secularização das escolas, entre outras medidas (LYNCH, 2009, p. 472).

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começava a impor-se no conjunto da vida social (RAMOS, 2008, p. 252).

A fé do povo latino-americano

O fato dos avanços seculares e liberais sobre a lei, a política e o Estado não representavam, porém, grandes mudanças na fé da população latino-americana. A religião era, em todo continente, uma religião do povo, e a Igreja continuou a receber a adesão e o respeito de índios, mestizos e outros setores populares. Sendo os grupos dirigentes os menos comprometidos com a religião, o grande medo da Igreja era a apostasia destes, e não das massas. A reação da Igreja à gradativa perda de adeptos entre os setores da elite política e intelectual foi representada em sua busca por aliados, o que produziu vínculos frequentes entre os eclesiásticos e os políticos conservadores, tornando o pensamento político católico mais identificado com o conservadorismo em meados do século XIX24.

Se o secularismo tinha uma base social entre as elites, ou entre os aspirantes à elite, as massas, por sua vez, mantinham-se afeitas às suas crenças. Neste sentido, Lynch (2009, p. 439-440) nos oferece um interessante panorama da assiduidade religiosa dos diferentes grupos sociais na América Latina:

Entre as populações indígenas, a frequência à missa aos domingos e o recebimento dos sacramentos eram grandes mas irregulares; no entanto, os índios mostravam grande respeito pelos padres, pelos santos e pelas cerimônias religiosas e peregrinações. Os negros não eram muito católicos, embora fossem religiosos à sua maneira, enquanto as grandes populações de mulatos do Brasil, da Venezuela e do Caribe se revelaram muito indiferentes à religião organizada. A verdadeira base do catolicismo ortodoxo era a população mestiça e nas zonas de colonização mestiça é que se observava melhor a vida plena da Igreja. As elites, por outro lado, produziram os católicos negligentes do século XIX, que mudaram para o livre-pensamento, para a maçonaria e o positivismo; era bastante comum, porém, em muitas dessas famílias a esposa ser religiosa e o marido, agnóstico. As classes profissionais e acadêmicas da América Latina contemporânea são os herdeiros identificáveis desses setores. Entre os grupos econômicos, o mais

24 Eram, porém, alianças arriscadas. Os conservadores, por seu lado, defendiam a coerção da religião como

forma de controle da pretensa irracionalidade do homem, que demanda a instituição de um governo forte. A Igreja, porém, tornava-se alvo ainda mais explícito de liberais e progressistas, na medida em que tomava parte nos reveses de seus aliados (LYNCH, 2009, p. 419).

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provável é que os pequenos proprietários e os colonos fossem mais religiosos do que os fazendeiros e os criadores de gado.

A membresia leiga da Igreja no século XIX abarcava multidões e um amplo espectro de crenças e práticas religiosas: desde aqueles que iam a todas as missas dominicais e recebiam regularmente os sacramentos, até aqueles cujo único contato com a religião se dava no nascimento, na primeira comunhão, no casamento e na morte. Havia, ainda, aqueles cujo catolicismo era, antes de tudo, social e político. O fato, todavia, era a existência de um catolicismo entranhado nas massas populares, um catolicismo que não podia ser facilmente medido pela prática externa, mas que fazia parte da cultura nacional e popular.

A Igreja, para os leigos, era normalmente a sua paróquia, e por meio dela é que os leigos construíam seu contato com a religião organizada. A Igreja tinha presença pastoral destacada nas cidades mais antigas e nas vilas provinciais da América Latina, onde várias paróquias, escolas e outras instituições atendiam às diversas necessidades religiosas das populações urbanas. Já no campo, a estrutura da religião foi difundida de modo mais amplo e frequentemente superficial, e os serviços oferecidos pela Igreja dependiam bastante dos padres, individualmente. Mesmo assim, a fé dos camponeses no catolicismo e na Igreja era indubitável.

No próprio Peru temos um exemplo ilustrativo. Tradicionalmente, os indígenas peruanos sofreram sob a ameaça de exploradores – religiosos entre eles, através de comportamentos extorsivos e que iam além da cobrança de taxas por serviços religiosos. Mesmo assim, no contexto das rebeliões indígenas25 em fins do século XIX, ocorridas nos

Andes centrais e meridionais, os chefes da Igreja no Peru, como os da diocese de Puno, defenderam os interesses dos índios ou pelo menos atuaram no sentido de mediar o conflito entre os rebeldes e o governo. A esta iniciativa os índios reagiram com a reafirmação de seu

25 A difusão do republicanismo na América Latina serviu como um elemento de distinção contra o

monarquismo espanhol, mas não serviu como um princípio de subversão das fronteiras étnicas que caracterizavam as desigualdades sociais da época (VALAREZO, 2008, p. 301). No caso peruano, desde a independência, levantes indígenas foram brutalmente reprimidos pelo governo – como a Revolta de Astuparia (1885), uma das principais rebeliões indígenas da história do país. A respeito da integração dos indígenas, e da repressão governamental, no Peru moderno, cf. DAVIES Jr., 1973.

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