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2.4 – À Guisa de Conclusão II: A Mudança das Dimensões da Logística Nacional

Resta pouca dúvida de que foi a marcha para o norte empreendida por Franco em agosto de 1934 que definiu a guerra. No entanto, cumpre salientar que ela só foi possível graças à motorização. A despeito da mecanização ter deixado a desejar, dados os escassos números de tanques Vickers e tanquetes Carden Loyd Mark VI empregados, a motorização foi disruptiva. Para além de qualquer dúvida razoável, o caminhão foi a principal arma utilizada na conflagração. Basta referir que, após o segundo armistício, quando os contendores passaram a rearmar-se novamente, o Paraguai comprou apenas caminhões.

De fato, como se procurou demonstrar, o caminhão foi vital para que as linhas do II Corpo de Exército do Paraguai pudessem ficar tão estendidas e, ao mesmo tempo, manobrar com eficiência por linhas interiores. Importa lembrar que, contando apenas com cem caminhões – dos quais perdeu pelo menos quarenta, Franco percorreu 160 km em treze dias através do Chaco com o II Corpo de Exército, em um movimento cuja trajetória total foi de 240 km (English, 2007:129). Graças ao timing de Franco, produziu-se uma surpresa estratégica da qual a Bolívia não teve condições de se refazer. Os paraguaios ocuparam as linhas de junção entre as divisões bolivianas, assumindo posições defensivas.

Após a captura de Picuiba, o flanco direito do II Corpo foi defendido em Ingavi, o que ameaçava envolver a Quinta Divisão e Puerto Suarez, na frente norte. O flanco esquerdo firmou-se em Yrendagüé. Isto lhe permitiu tomar Villazón e Carandaiti – ambas para o

114 Santuário – Área ou país, perto ou contígua à zona de combate que, por acordo tácito, entre os beligerantes é

caminho de Tarija – o que permitiu o cerco a Villa Montes e forçou o colapso boliviano em Ballivián.

Também importa lembrar que foi o plano de guerra de atrito, elaborado ainda pelo General Osório, que acabou sendo posto em marcha em Ballivián, causando baixas insuportáveis aos paraguaios. Contudo, graças ao caminhão e ao périplo de 240 km em meio ao Chaco desértico, os planos de defesa da década de 1920 tornaram-se obsoletos. O caminhão tornou a frente mais profunda na medida em que permitia a penetração de tropas a longas distâncias. Contudo, foi a captura de Huirapitindi que abriu o caminho para Santa Cruz e deu ensejo ao separatismo movido, desde Assunção, pelo Comitê Cruceño. Foi o risco de ver-se envolvido simultaneamente em uma guerra civil e uma conflagração internacional que, segundo English (2007:149-50), levou a capitulação da Bolívia antes mesmo de lançar seu III Exército na ofensiva. Importa sublinhar que todas estas localidades (Picuiba, Ingavi, Yrendagüé, Huirapitindi) estão separadas por dezenas de quilômetros: foi o caminhão que permitiu que se posicionasse o II Corpo de Exército do Paraguai em meio ao dispositivo militar boliviano. Pando, Beni, Santa Cruz ficaram isoladas, e Tarija sob assédio.

Foi neste o período que, no Brasil, foi formulada a doutrina Góes Monteiro. A primeira obra de referência é “A Revolução de 30 e a Finalidade Política do Exército”, escrita em 1932. Contudo, a principal referência continua sendo o documento elaborado em 1934, dirigido à Presidência da República, e só recentemente desclassificado: “Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil”, o qual já trazia o aprendizado sobre a Guerra do Chaco. Nele o General Góes Monteiro chama atenção do Presidente Vargas sobre a importância do Brasil Republicano manter-se atento a liberdade de seus vizinhos sul-americanos afiançando-lhes a proteção necessária (Góes Monteiro, 1934:5):

As lições históricas, instantemente renovadas, e a conduta atual de alguns Estados além-mar, que não encontram limites para aquisição de armamento, parecem justificar, em nossos dias, a opinião antiga, segundo a qual diplomacia alguma, por mais brilhante e arguta, pode vencer sem o apoio decisivo das armas

Os exemplos de nosso próprio passado mostram um império do Brasil como fiel da balança sul-americana por ser, na época, o mais forte militarmente, o mais rico, o mais conceituado e o mais organizado administrativamente.

Éramos o único poder firme, onde se quebrava a onda violenta dos pronunciamentos, que resistia ao sopro, desencadeado, dos ventos de todas as anarquias, revoltas, motins e tiranias.

Intervimos na Argentina, no Paraguai e no Uruguai para libertá-los em nome dos mais elevados princípios de justiça, porém, jamais, lançamos mão de nossos exércitos e de nossas esquadras para conquista de um palmo além de nossas fronteiras.

Eis um honroso legado que a República não pode repudiar (Góes Monteiro, 1934:5). Logo após a Guerra do Chaco, o Brasil investiu significativamente nas suas Forças Armadas, o que envolveu tanto a motorização (caminhões) quanto a mecanização (aquisição de tanquetes italianos Ansaldo).

Não obstante, na época ainda era difícil à Presidência da República divisar toda importância do combustível para o esforço de guerra, o que envolve capacidade de refino do petróleo para sua produção. Ainda se davam os primeiros passos para obter-se o centro de decisão da siderurgia115. Assim, em um primeiro momento, o Brasil parece ter pretendido barganhar com suas reservas de petróleo para obter a siderurgia, como o fez com a borracha durante a II Guerra Mundial116.

Naquele contexto, o escoamento do petróleo boliviano através do Brasil moveu a campanha de Monteiro Lobato e deu origem à instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Lobato acabou sendo preso por afirmar que havia petróleo no Brasil e por insinuar que o petróleo escoado pela Standard Oil era brasileiro, e não boliviano.

Após a II Guerra Mundial, com a nova postura adotada pelos EUA no governo Truman, bem diferente da “boa vizinhança de Roosevelt”, os antigos detratores de Lobato acabaram por dar-lhe razão. A mudança na política dos EUA impactou a percepção existente acerca dos Acordos de Washington. Como o petróleo não estava incluído entre os itens discriminados, foi possível que o governo constitucional de Vargas criasse a Petrobrás. Quer na siderurgia ou na petroquímica, a Doutrina Góes Monteiro permaneceu como matriz subjacente. A cooperação entre Góes e Vargas, a despeito de conflituosa, foi profícua, só vindo a encerrar-se com a morte do segundo. Impossível dizer o quanto as realizações da Era Vargas inspiram-se no papel estratégico conferido por Góes Monteiro às Forças Armadas: promover a democracia e o desenvolvimento no Brasil e ter capacidade para afiançar proteção à liberdade dos demais países sul-americanos. Doravante, dada a impossibilidade quer da

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O acordo de construção de Volta Redonda com os Estados Unidos só seria assinado em 1941, por meio do Acordo de Washington. Neste mesmo ano, foi criada a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN).

116 Pelos acordos de Washington, o Brasil assumiu também o compromisso de fornecer minérios estratégicos à

indústria bélica norte-americana. Os principais produtos previstos no acordo eram: alumínio, bauxita, borracha, cobre, níquel, tungstênio, quartzo, estanho, magnésio, mica e zinco. Para o fornecimento de borracha, foi estabelecido o Serviço Especial da Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (SEMTA), mais conhecidos como “soldados da borracha”. Foi alistado um contingente calculado em 55 mil brasileiros, a maioria dos quais cearenses. Acredita-se que a maior parte dele morreu em virtude das condições de trabalho na selva, resultando em um total de 30 mil mortos (Mageste, 2004). Os sobreviventes não tiveram dinheiro para pagar a viagem de volta, permanecendo na região amazônica. Só em 1988 foram reconhecidos como combatentes da II Guerra Mundial, recebendo a pensão vitalícia à que fizeram jus também os pracinhas. Para a Itália, foram enviados 25.334 homens, com duas mil baixas entre mortos, feridos e desaparecidos.

Bolívia ou do Paraguai obterem a concentração de capital necessária para a siderurgia, a relação com estes países seria pautada pela infra-estrutura energética e de transportes.

O Brasil firmou com a Bolívia um acordo em relação à exploração do petróleo. Como inicialmente houve indeterminação acerca da área a ser explorada, a iniciativa foi renovada pela Ata de Roboré, de 1958, que previa a exploração dos hidrocarbonetos bolivianos apenas por empresas transnacionais. Todavia, o Congresso brasileiro desejava que a Petrobrás atuasse no acordo. Na época, no governo João Goulart, o petróleo mais barato do Oriente Médio dificultou a concretização do acordo117. Além disso, outros fatores desestimulavam a presença brasileira na região: a Petrobrás ainda não possuía capacidade técnica para operar no exterior; os brasileiros temiam a instabilidade política boliviana; os bolivianos, por sua vez, um imperialismo brasileiro (Carra, 2008:129). Em geral, os resultados da política externa brasileira demoraram a se concretizar e a influência argentina prevaleceu na Bolívia (Vizentini, 2004:366). O Brasil “perdia” a Bolívia, mas, em compensação, “ganhou” o Paraguai. Este equilíbrio regional é o que permitirá, bem mais tarde, após a Guerra das Malvinas, a superação de rivalidade e cooperação argentino-brasileira.

Em um balanço resumido, pode-se dizer que a Guerra do Chaco evidenciou que a logística nacional é constituída tanto pelos meios de transporte quanto de produção. Demonstrou a importância dos meios de pagamento (fiscais e cambiais) como instrumento de direção política sobre a economia, e a possibilidade de, por intermédio dessa direção política – a verticalização referida no primeiro capítulo – criar-se o centro de decisão.

A Guerra do Chaco importa, pois descortina e explica como se dá o processo de realimentação perversa do subdesenvolvimento crônico boliviano. Como se observou no primeiro capítulo, território importa, pois extensão territorial significa a possibilidade de abarcar mais de um centro dinâmico. Há uma relação causal entre a verticalização (instrumentação política dos meios de pagamentos) e a interconexão entre os pólos dinâmicos.

De modo simplificado, pode-se dizer que o surgimento da soberania do Estado frente às unidades sub-nacionais é resultado da necessidade de interferência da União sobre a malha viária (logística nacional de transporte). Contudo, viu-se igualmente que a Bolívia não foi

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As informações sobre a Ata de Roboré são de Vizentini (2004:367). O autor traz, ainda, importantes esclarecimentos sobre o Acordo de Cooperação e Complementação Industrial, firmado no governo Geisel, em 1974. Por este instrumento jurídico, a Bolívia venderia gás ao Brasil que, em contrapartida, financiaria e daria assistência técnica para a criação de um pólo industrial no Sudeste boliviano, incluindo fábricas e infra-estrutura de energia. O governo boliviano julgou que o Brasil seria mais beneficiado que a Bolívia, o que suscita o problema dos ganhos relativos levantado pelo realismo: dada a diferença de ganhos em suas relações, países tendem a não cooperar. A negociação se arrastou por sucessivos governos e os acertos acabaram se restringindo à venda de gás natural.

capaz de reter seus pólos dinâmicos. Perdeu o salitre, a borracha e a possibilidade de utilizar o petróleo como recurso de verticalização, dada a perda de acesso ao Rio Paraguai.

Restava, contudo, a experiência da guerra, a demonstração, ainda que negativa, da importância da produção para a soberania. Este é o tema que iria inflamar as mentes e corações no processo da revolução boliviana, assunto do próximo capítulo.

3 – Da Revolução Nacional Interrompida à Reemergência do

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