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1.4 – Um Vizinho Incômodo: a Formação da Identidade Chilena

No ASC, o Chile, como a Venezuela, constituíam-se enquanto capitanias, unidades distintas dos Vice-Reinados (de Nova Granada, do Peru e do Prata). A emancipação política chilena é atribuída a Bernardo O’Higgins. Na realidade, ele teve o mérito de dar início à luta contra os espanhóis. Contudo, derrotado, viu-se obrigado a internar-se na Argentina sob a proteção de José San Martín. Mais tarde, San Martín cruzou a fronteira e derrotou os as forças de Espanha. O’Higgins o auxiliou na luta contra os espanhóis no Peru; entretanto, mais como parte de uma frente única para derrotá-los do que propriamente por partilhar dos ideais de San Martín ou Bolívar acerca da integração das ex-colônias. Na realidade, O’Higgins dá origem à Marinha chilena (Primeira Esquadra Nacional) com o propósito de assegurar a independência do Chile também frente a seus vizinhos sul-americanos. San Martín e Bolívar não pouparam esforços para aproximar-se de O’Higgins. San Martín chegou a delegar-lhe o comando do Exército em 1824. Por sua vez, Bolívar nomeou O’Higgins general do exército da Grã- Colômbia, mesmo sem jamais ter lutado em nenhuma das batalhas que lhe deram origem. De todo modo, O’Higgins não era contra a integração entre seus vizinhos (por exemplo, era favorável a integração entre Bolívia e Peru), posição distinta do beligerante chileno Diego Portales32.

Assim, quando se deu o colapso da Grã-Colômbia em 1831 (um ano após a morte de Bolívar), em 1836 teve origem a Confederação Peru-Bolívia, um eco remoto dos apelos do Libertador à sua unificação33. Foi o Chile que, à testa do Exército Unido Restaurador – uma

32

Diego Portales - Ministro chileno que liderou as forças conservadoras na Guerra Civil de 1829-30. Figura controversa, é pai da primeira constituição do Chile e, pela ótica deste trabalho, do próprio país.

33 Confederação Peru-Bolívia (Ou Confederação Peru-Boliviana) – Confederação formada pela união de três

Estados (Estado Norte-Peruano; Estado Sul-Peruano e Bolívia) de 1836 a 1839. Foi liderada por Andrés de Santa Cruz, então presidente da Bolívia e “Supremo Protetor” da Confederação. Após a independência, o Peru passava por lutas internas pelo poder: a elite litorânea vinculava-se ao Chile; a do altiplano, à Bolívia. A elite litorânea, na pessoa de Agustín Gamarra, solicitou a intervenção chilena. Após o então presidente, Luis José de Orbegoso, sofrer várias tentativas de golpe, pediu a ajuda do boliviano Santa Cruz, que o ajudou a combater os insurgentes

coalizão na qual se incluíram caudilhos argentinos e separatistas peruanos – pôs fim à tentativa de integração entre os dois países em 18393435.

Constata-se que, desde seus primórdios, o Chile afirmava sua identidade não apenas distinguindo-se de seus vizinhos, mas se apresentando como gendarme do liberalismo conservador na América do Sul, de modo que o país chegou a ser considerado a “Inglaterra da América do Sul”. Esta visão pode ser constatada na carta de Diego Portales ao Comandante da Marinha chilena, Blanco Encalada, na qual expunha suas idéias acerca da Confederação Peru-Bolívia:

Não podemos olhar com inquietude e maiores alarmes a existência de dois povos que, em geral, por sua origem, língua, hábitos religião, idéias, costumes, formarão, como é natural, um só núcleo. Unidos estes dois Estados, ainda que apenas momentaneamente, serão sempre mais do que Chile em toda ordem de questões e circunstâncias (...). A confederação deve desaparecer para sempre do cenário da América por sua extensão geográfica; por sua maior população branca; pelas riquezas conjuntas de Peru e Bolívia, agora apenas exploradas; pelo domínio que a nova organização trataria de exercer no Pacífico nos arrebatando; pelo maior número também de gente ilustrada de raça branca, muito vinculadas a famílias provenientes de Espanha que se encontram em Lima; pela maior inteligência de seus homens públicos, se bem que de menos caráter que os chilenos; por todas estas razões, a Confederação acabaria com o Chile muito rapidamente (...) As forças navais devem operar antes que os exércitos, dando golpes decisivos. Devemos dominar para sempre o Pacífico: esta deve ser sua máxima agora e oxalá fora a do Chile para sempre (...) (grifos meus) (Villalobos, 2003:241-42)

A política externa chilena era um mero reflexo de sua política interna. Isto vai tornar- se mais claro a partir de meados do século XIX, quando, no âmbito doméstico, o Chile favoreceu o interesse declarado das elites locais em atrair, seletivamente, imigrantes escoceses, suíços, irlandeses e alemães. Estes eram os povos considerados “viris, de bons costumes e com hábitos louváveis” (Estrada, 2000:466). Entre 1882 e 1884, o então ministro Luis Aldunate Carrera afirmou que a colonização para o Chile “deve tender a refundir duas ou mais raças numa só, tornando-as mais elevadas e vigorosas. Este fato evidencia as vantagens da homogeneidade de raças para a colonização” (Estrada, 2000:466).

Embora o darwinismo social e o racismo fossem um elemento presente na América do Sul naquele período da história, o Chile possuía, além dessas características – lá bem no sul do país. Como resultado, vitoriosos após várias batalhas, os dois países acordaram a integração na Confederação Peru-Bolívia.

34 Em contraponto à intervenção chilena, Grã-Bretanha, França e Estados Unidos apoiaram a Confederação. A

Argentina apoiou o Chile e atacou a Confederação.

35 Após a derrota para o Exército Unido Restaurador, assumiu a presidência do Peru o antes insurgente Agustín

Gamarra, que pagou o custo da operação e ofereceu condecorações aos chilenos. Gamarra seguiu com a guerra. De 1839 a 1841, lutou para anexar a ferro e sangue a Bolívia. Todavia, a resistência expulsou-o e levou a guerra ao território do Peru. No fim, os bolivianos se retiraram e chegou-se à paz. Ocorreu, desta forma, a sedimentação definitiva entre as duas unidades políticas como países distintos.

acentuadas –, uma identidade de isolamento. Na época da autoritária Constituição de 1883, quem detinha o poder era uma elite terratenente branca e “extraordinariamente homogênea” (Bethell, 1992:157). Símbolo do pensamento desse tempo é a obra do escritor e médico Nicolás Palácios, “la Raza Chilena”, o qual, ao afirmar a não-latinidade da “raça chilena”, acabou por fomentar o nacionalismo da elite local.

Palácios não chegou ao poder. Todavia, outro escritor, ex-geógrafo e professor de geopolítica, que também trouxe idéias radicais, teve mais sucesso: Augusto Pinochet. Em um discurso altamente chauvinista, Pinochet entendia que o Estado chileno deveria seguir o modelo de sobrevivência de uma ameba, ou seja, modificar seu organismo (território) de acordo com suas necessidades (recursos naturais) ao longo do tempo. O autor até mesmo falava na necessidade de um “espaço vital”, o “hinterland” alimentador do núcleo central.

O Chile não se agregou nem ao projeto de integração de Simon Bolívar nem ao da América portuguesa, nem à época das emancipações políticas e tampouco nos dias de hoje36.

Nesse sentido, vale citar a excelente caracterização da identidade chilena feita por Baldomero Estrada:

O Chile é uma nação que desenvolveu, no transcurso de sua história, uma identidade fortemente marcada pelo isolamento. A cordilheira dos Andes, o deserto e o Oceano Pacífico foram barreiras físicas que influenciaram fortemente na sociedade chilena a formação de uma “mentalidade de ilhéus” (Estrada, 200:499).

A não ratificação do Tratado ABC de 1915 pelo Parlamento Chileno apenas confirmou este padrão de isolamento, progressivamente aprofundado. Em 1976, o Chile se retirou do Pacto Andino e só retornou em 2006 – ainda assim apenas como Estado-associado. Ao fim dos anos 2000, tornou-se o país com maior número de tratados de livre-comércio do mundo. Segundo o MRE do Brasil (s/d), “a rede de acordos comerciais (cerca de 60) cobre países que correspondem a 86% do PIB mundial e permite que mais de 91% das exportações chilenas sejam realizadas em bases preferenciais, o que faz reduzir a tarifa uniforme do país de 6% para 1,5%”. A Tarifa Externa Comum (TEC), praticada no Mercosul, fica em torno de 14%. Os números dizem por si mesmos por que o único interesse associativo do Chile na região diz respeito à Unasul: devido às implicações políticas e de segurança.

36 O Chile foi aceito como membro-associado do Mercosul, mas suas tratativas não prosperam. Recentemente,

aderiu à Unasul graças à manobra brasileira, que lhe deu a presidência. Contudo, apesar de seu protagonismo, seus laços com a integração sul-americana permanecem incertos, ao contrário dos sólidos tratados de livre- comércio que o unem a México, Estados Unidos, Canadá, Japão e China. O Chile não se converteu em membro- pleno do Mercosul visto que o bloco tornou-se uma União Aduaneira, o que implica a dotação de tarifas comuns frente a terceiros países (Van Klaveren, 2000:92).

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