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4.2 – As Mudanças Suscitadas pela Globalização e pela Regionalização

A globalização contraditoriamente produziu a regionalização. Ao mesmo tempo em que procurava liberalizar o comércio mundial e facilitar seus acessos aos mercados da periferia, os países centrais procuraram proteger suas economias através dos blocos econômicos. A produção, antes concentrada em termos nacionais, passou a ter uma distribuição regional. Para tanto, era preciso a circulação dos fatores da produção entre os Estados-membros. Ainda que nenhum processo de integração tenha chegado à união política e econômica plena, a formação de blocos envolveu algum tipo de liberdade no tocante ao movimento de capitais, tecnologias e pessoas.

A mesma conclusão pode ser extraída a partir da análise de Thompson e Hirst (1998:151). As empresas não se tornaram multinacionais no sentido de perder qualquer vínculo com seus Estados de origem. Contudo, tampouco estão vinculadas unicamente a este

201 Octavio Amorim Neto bem lembra que “a mobilização política das identidades étnicas é centrífuga porque

Estado. Como resultado, depreende-se a existência de um mercado regionalizado. O exemplo mais notório foi o que conduziu à formação da Comunidade Européia do Carvão e do Aço (1951), não por acaso um dos pilares da integração européia.

Em alguns casos, diferentemente da Europa, quando se trata de grandes países (países “baleia”), a regionalização da produção passa despercebida, porque se dá no interior de uma única soberania. O exemplo mais notável é o dos Estados Unidos, onde o PIB da região Sul ultrapassou o do Norte há poucas décadas atrás em virtude do deslocamento das indústrias do Norte para o Sul. No entanto, o processo é mais antigo. A marcha para o Sul já é uma resposta, presidida pela lógica de bloco (NAFTA), à marcha para o leste empreendida na década de 1970, quando as indústrias e capitais americanos permitiram o florescimento do milagre japonês.

A regionalização é, em grande medida, uma tentativa da soberania de reter os cordões de ouro da riqueza material. O próprio milagre japonês, por meio do processo de sub- contratação, transbordou além fronteiras, dando origem à recuperação da Ásia (Arrighi, 1997). Na década de 1980, o Japão chegou a ameaçar a primazia econômica dos EUA, percepção atestada por várias obras de Relações Internacionais, como a de Paul Kennedy (1988). Inicialmente a industrialização esteve confinada aos NICS (New Industrialized

Countries); depois, chegou até a China e a Índia.

Naturalmente, a transferência de riqueza envolveu uma alteração na correlação de poder. Isto levou à busca de cada Estado em criar na própria região vantagens competitivas para que as empresas se mantenham, se não nos países de origem, em seu entorno, no interior de seu bloco econômico ou processo de integração. A periferia também se beneficia da integração por razões análogas. Mas, neste caso, alia as vantagens competitivas às velhas vantagens comparativas de David Ricardo, como mão-de-obra barata e proximidade de matérias-primas. Em qualquer dos casos, o resultado é o mesmo: a criação de uma infra- estrutura pensada em termos regionais.

O Muro de Berlim foi derrubado em 1989. Em 1991 a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) se desfazia; em seu lugar, emergiu a Comunidade de Estados Independentes (CEI). Já no ano seguinte, em 1992, surgia seu braço militar: a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC). Após o fim da URSS, seus antigos Estados-membros continuaram integrados, apesar de todo o peso do passado e da ausência de perspectiva do capitalismo selvagem que tomou seu lugar.

Também em 1992 foi assinado o Tratado de Maastricht, dando origem a União Européia. Neste mesmo ano, Estados Unidos, Canadá e México assinaram o North American

Free Treaty Agreement (NAFTA)202, e na África Austral era formada a Southern African

Development Comunity (SADC). Em 2001 a integração alçava vôos além dos blocos

regionais. Era formada a Organização de Cooperação de Shangai (OCS203) que congrega a

Rússia e a China, além das ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central, dando origem a um arranjo inédito, uma espécie de rede de Estados e blocos. Por fim, o processo de integração no Leste Asiático, antes meramente baseado em redes de financiamento, produção e consumo, a depender da proposta do primeiro-ministro japonês Yukio Hatoyama, dará origem à East Asia

Community (Comunidade de países do leste asiático), envolvendo China, Coréia do Sul e o próprio Japão. A soberania estratifica-se entre independências (Estados nacionais que constituíam as unidades originárias do sistema internacional), blocos econômicos que tendem à formação de soberanias regionais e redes de Estados – como a OCS e, agora, a Comunidade de países Leste Asiático.

Na realidade foi a própria Carta das Nações Unidas que sepultou o sistema de Vestfália, baseado na soberania do Estado-nação e na prerrogativa do uso legal e legítimo da força por partes deste. A Carta da ONU e a própria organização já constituem um processo de governança mundial, isto é, em que as soberanias reconhecem limites a sua capacidade de decisão e tomam resoluções conjuntas baseadas no critério da unanimidade. De fato, o próprio sistema de Breton Woods lançou as bases de integração com a teoria da equiparação. Como sempre, antes do colapso do “velho” já era possível vislumbrar os indícios do surgimento do “novo”.

Bem antes do fim da Guerra Fria, em 1951 era assinado o Tratado de Paris que deu origem à Comunidade Européia do Carvão e do Aço, precursora da Comunidade Econômica Européia, antecessora da UE. O fenômeno da união de dois rivais históricos, como a França e a Alemanha, teve um efeito irradiador. Ainda em 1955 os países do então denominado Terceiro Mundo reuniram-se na Conferência de Bandung, proclamando seu descontentamento com a ordem bipolar. Em 1960, foi criado o Movimento dos Países Não-Alinhados (MNA). No mesmo ano, o Brasil e os países da América Latina formaram a ALALC. Sobre este guarda-chuva, em 1969 formou-se o Pacto Andino, posteriormente desdobrado na Comunidade Andina de Nações.

Em 1980, foi criada a ALADI que, após a Guerra das Malvinas, em 1985 deu origem ao PICE e PICAB e a Declaração de Iguaçu. Por meio desta Declaração, Brasil e Argentina

202 O NAFTA entrou em vigor em 1994.

203 OCS – Organização para Cooperação de Shanghai. Criada em 2001, tem como membros China, Cazaquistão,

Quirguistão, Rússia, Tadjiquistão e Uzbequistão. Seus objetivos prioritários são o combate ao narcotráfico, ao separatismo e ao extremismo político.

comprometiam-se com um ideal de integração que envolvia união política, econômica e segurança. No âmbito econômico, o compromisso de Iguaçu teve continuidade em 1991 com o advento do Mercosul, e em 1993 com a criação da ALCSA, pela qual se fundiam as iniciativas de integração representadas antes pelo Mercosul204 e pelo Pacto Andino. Em 2004, foi lançada a idéia de uma Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA). A agenda da segurança foi resgatada em 2008 com a formação da União de Nações Sul Americanas (UNASUL) e seu Conselho de Defesa205.

No atual contexto, a integração política e econômica e a formação de blocos, como exercício compartilhado de soberania, acabarão por conduzir à formação de um novo tipo de Estado. Este novo patamar institucional realiza e amplia a formulação do professor Amado Cervo (Cervo & Bueno, 2002) acerca do Estado logístico. O desenvolvimento deste conceito, nesse trabalho, denominou-se Estado Logístico Regional (ELR).

Trata-se de resgatar o débito com o passado e buscar, coletivamente, aquilo que atuando enquanto unidades soberanas individuais os Estados não conseguiram, isto é, o desenvolvimento sustentado, a cidadania e a soberania. Embora oriundo das necessidades práticas de investimentos públicos em uma infra-estrutura pensada agora em termos regionais, e não mais nacionais, o Estado Logístico Regional apresenta-se também enquanto alternativa de conteúdo ético. Serve como síntese possível entre os ideais de liberdade e igualdade na busca de um bem supremo superior: a realização da justiça.

O exercício da soberania feito através de grandes potências, de blocos econômicos, ou mesmo de redes de Estado, restringe o número de soberanias ao mesmo que torna cada uma delas efetiva. Conforme já previa Edward Carr, o mundo é inviável com mais do que algumas poucas soberanias. Para Carr,

(...) a solução seria criar grandes organizações de Estados multinacionais e regionais para coordenarem melhor suas políticas e apoiarem um compromisso com a justiça social, no lugar do comunismo ao estilo soviético ou da livre empresa americana (Griffiths, 2005:22).

204 Além de membro da Comunidade Andina, em 21 de dezembro de 2006, a Bolívia solicitou ingresso como

membro pleno, questão que está sendo analisada por um grupo ad hoc do bloco.

205

O Conselho de Defesa Sul-Americano tem os seguintes objetivos gerais:

“a) Consolidar a América do Sul como uma zona de paz, base para a estabilidade democrática e o desenvolvimento integral de nossos povos, e como contribuição à paz mundial.

b) Construir uma identidade sul-americana em matéria de defesa, que leve em conta as características sub- regionais e nacionais e que contribua para o fortalecimento da unidade da América Latina e do Caribe”. Dentre os específicos, cabe ressaltar: “a) Avançar gradualmente na análise e discussão dos elementos comuns de uma visão conjunta em matéria de defesa; f) Promover o intercâmbio e a cooperação no âmbito da indústria de defesa.” (Unasul, 2008) (grifos meus).

As redes de soberanias (outro modo de ver a formação de um sistema de governança mundial) encarregam-se de dispersar os pólos de poder pelo globo todo (equilíbrio multipolar).

Do mesmo modo que aconteceu na história do Estado nacional tradicional, a verticalização do bloco, a integração de seus espaços econômicos ao seu centro de decisão, a absorção tanto de seus pólos dinâmicos como, de resto, da produção local, se encarrega de revalorizar o território206. O mecanismo pelo qual a agricultura subsidia a indústria é conhecido no capitalismo tradicional. Em princípio, não há motivo algum para supor que vá alterar-se nos processos de construção de novas formas soberanas. Assim, o paradoxo se desfaz: as redes que tornam as soberanias efetivas impõem, a cada uma delas, o controle mais estrito possível de seu território, como quesito mesmo para sua existência enquanto ator soberano.

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