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1.5 – Nitratos: a Guerra das Ilhas Chincha e a Guerra do Pacífico

A Guerra do Pacífico (1879-1883) foi a primeira guerra por recursos naturais protagonizada pela Bolívia e seus vizinhos, neste caso, o Chile. Na região do litoral boliviano, situavam-se suas reservas de salitre, que se constituíam no pólo dinâmico de sua economia. Foi devido à presença destes recursos (salitre e guano) que a Bolívia perdeu a província de Antofagasta; o Peru, a de Tarapacá, ambos para o Chile. Desde então a Bolívia converteu-se em um país continental (sem acesso ao mar), realizando as piores expectativas de Bolívar acerca da viabilidade do país.

A Guerra do Pacífico foi precedida pela Guerra das Ilhas Chincha (1864-1866), quando o Chile e o Peru enfrentaram uma invasão espanhola às referidas ilhas. Contudo, quando o Peru nacionalizou a exploração de guano, a Inglaterra sentiu-se prejudicada. Então, o Chile tomou as províncias de Antofagasta (Bolívia) e Tarapacá (Peru), o que constituiu a Guerra do Pacífico (1879-1883).

A Guerra teve início após o governo boliviano de Hilarión Daza ter anunciado um imposto sobre a exportação de nitrato37, vez que o litoral boliviano era utilizado pelos chilenos para o comércio do produto. No caso, tratava-se da “Compañia de Salitres e Ferrocarril de Antofagasta”, companhia anglo-chilena registrada em Valparaíso que havia estabelecido a hegemonia econômica na região (Bonilla, 2008:579). O governo chileno recusou-se a pagar o tributo. Em represália, o governo boliviano ordenou a tomada das instalações chilenas utilizadas para a extração do nitrato. O Chile, que já estava mobilizado para a guerra, ocupou o porto boliviano de Antofogasta com 500 homens. Conforme Lars Schoultz,

O Chile justificou seu uso preemptivo de força alegando a necessidade de proteger propriedade chilena, que a Bolívia havia ameaçado tomar e revender se seus proprietários se recusassem a pagar a taxa em discussão (Schoultz, 2000:128). O Chile exigiu o status de neutralidade do Peru, o qual – por ter uma aliança com a Bolívia – recusou-se. O governo peruano de Mariano Ignacio Prado possuía uma aliança com a Bolívia desde 1873.

37 Salitre e guano são os nitratos em questão. Suas principais aplicações são a fabricação de explosivos e a

fertilização agrícola. O imposto em questão era uma taxa de dez centavos por quintal (58,328 quilos) de salitre exportado em Antofagasta. Foi instituído por decreto do Congresso Boliviano em 11 de fevereiro de 1878 e feria tratado anteriormente assinado pela Bolívia (1874), o qual comprometia o país a não cobrar nenhum tipo de imposto sobre a exportação chilena por 25 anos. Cf. Chiavenato (1979:20) e Bonilla (2008:580).

As províncias situavam-se no deserto e o comando do mar foi decisivo. Devido à sua distância dos centros urbanos, até a água precisava ser transportada por barcos. Depois de uma heróica resistência da pequena marinha peruana, teve início a campanha terrestre. Seu ponto alto foi a tomada, saque e incêndio de Lima em 1881. Até a Biblioteca Nacional do Peru teve seus livros transferidos para Santiago, no Chile. A Guerra foi concluída em 1883, mas a ocupação perdurou até 1884. A despeito de ter um exército moderno, os chilenos não foram capazes se suportar o atrito38 e a fricção39 da ocupação, resignando-se à retirada. De fato, o Chile atuou ao lado da potência conservadora na ordem internacional, a Inglaterra.

O tratado final de paz só foi assinado em 1904, pelo qual o Peru perdeu a província de Tarapacá (rica em nitrato) e a Bolívia perdeu seu acesso ao mar, ficando sem a província de Antofagasta. Ademais, o instrumento afirmou “o domínio perpétuo” chileno sobre o território em litígio. Em contrapartida, o Chile comprometeu-se a construir uma ferrovia ligando La Paz a um porto chileno, permitindo livre passagem dos produtos bolivianos, o que foi parcialmente cumprido, já que a Bolívia é obrigada a pagar pelo acesso ao mar.

Após a guerra, o controle dos britânicos sobre a economia do Chile cresceu, aumentando também a influência do Reino Unido na política interna chilena. A despeito de o Chile ter vencido, o crescimento econômico foi efêmero. Como sempre acontece com os ciclos econômicos, os nitratos geraram lucro por poucas décadas (Skidmore & Smith, 2005:115). A Guerra do Pacífico deixou, como legado, uma das principais zonas de tensão na América do Sul. As animosidades perduram até hoje sob a forma de litígio fronteiriço, que envolve Peru, Bolívia e Chile.

1.5.1 – Guerra do Pacífico: Conseqüências Internas

A derrota para os chilenos trouxe várias conseqüências para a Bolívia: a perda da saída para o mar e um processo de turbulência política interno. Ao fim da Guerra, desencadeou-se a Revolução Federal de 1898. A derrota dividiu o país entre “guerristas” (que queriam retomar a saída para o mar) e “pacificistas” (que queriam a paz com o Chile). Os guerristas deram origem ao Partido Liberal e tinham La Paz como centro político; os pacifistas, ao Partido Conservador, tendo Sucre como centro político.

38 Atrito – A destruição gradual de uma força inimiga por meio de repetidos ataques e uma defesa obstinada

(Bowyer, 2004:20).

39 Fricção – O efeito disruptivo causado por fatores imprevistos durante a execução de um plano (Bowyer,

As diferentes posições acerca do tratado de paz com o Chile (guerristas e pacifistas) redundaram em uma disputa da localização da capital federal (La Paz e Sucre), e, por fim, em compreensões diferentes sobre o pacto federativo. Por este viés, a Guerra do Pacífico carrega até hoje as mais significativas decorrências para a política boliviana, afinal, a natureza do pacto federativo permanece em tela na agenda nacional.

Os conservadores hegemonizavam o governo boliviano no fim do século XIX, tendo conquistado o poder cinco vezes consecutivas. Todavia, os liberais, cujo centro político era La Paz, acusavam o governo de corrupção e outras irregularidades. Queriam um modelo federativo para o país; alguns líderes defendiam a formação de um Estado autônomo (os conservadores preferiam o modelo de Estado unitário).

A polarização materializou-se na disputa pela capital do país: o grupo de La Paz queria que fosse Cochabamba; o de Sucre, Sucre. A capital do país até a Guerra do Pacífico tinha um caráter itinerante: sediava-se onde o presidente estivesse. O estopim para a Revolução Federal de 1898 foi a Ley de Radicatoria que, neste ano, estabeleceu Sucre como a capital nacional.

Populações de ambos os lados, revoltadas, se mobilizaram e a guerra teve início. As forças federalistas (Partido Liberal), com o apoio dos indígenas, venceram. Entretanto, seu comandante, José Manuel Pando, acabou decidindo por não implementar o modelo federalista e por não transferir a capital do país. De fato, apenas mudou a sede do Executivo e do Congresso para La Paz.

1.5.2 – Guerra do Pacífico: Conseqüências Externas

Além da Revolução Federal, outra importante conseqüência da Guerra do Pacífico foi a perda boliviana da saída para o mar, tida por seu povo como uma das maiores causas para a falta de desenvolvimento sócio-econômico. Esta situação crítica teve um peso histórico na política externa boliviana e, apesar das negociações recentes, não há perspectiva de uma solução negociada que agrade a Chile, Bolívia e Peru, o que coloca a fronteira como um forte condicionante das relações internacionais e da própria política interna (dependência de trajetória). Neste sentido, segundo Raymond Aron,

Uma situação geográfica determinada impõe à diplomacia e à estratégia certa orientação que provavelmente será duradoura e talvez mesmo permanente. Quanto mais definida essa situação, em termos físicos, mais a orientação tenderá a ser permanente (Aron, 1986:376).

O Chile argumenta que a perda de territórios foi aceita pela Bolívia, uma vez que seus líderes assinaram o Tratado de 1904. Na esteira do processo, os chilenos ganharam autoconfiança, que não veio sem o respectivo ressentimento de peruanos e bolivianos. “Por la Razón o por la Fuerza”, diz o lema do escudo nacional chileno (Dullius, 2008:35).

Na década de 1970, restabeleceram-se negociações sobre o assunto, em boa medida graças à amizade do presidente boliviano Hugo Banzer com Augusto Pinochet. Pelas tratativas iniciais, a Bolívia cederia mais uma parte de seu território e receberia, em troca, um pedaço de terra da então província de Arica que, à época da guerra, pertencia ao Peru. Por esse motivo, o Peru foi chamado a participar das negociações, as quais acabou por impugnar. O resultado final foi o rompimento das relações diplomáticas entre Chile e Bolívia (1978).

Da década de 1990 até hoje, a questão da saída para o mar tem sido objeto de conversações entre os sucessivos governos de cada país. A persistência da agenda não é gratuita, afinal, como observa Wasserman (2004:340), “o litoral foi o pólo de desenvolvimento da maior parte dos países da América Latina”. Em virtude disto, é que tanto em termos políticos (a derrota na guerra) quanto econômicos (o obstáculo ao desenvolvimento), a questão assume papel relevante na vida nacional nos países envolvidos e preocupa seus vizinhos sul-americanos. Ainda que muitas vezes as ameaças resumam-se à mera retórica, a verdade é que às posições em relação à fronteira cumprem relevante papel na

accountability nacional – já que todos os regimes são presidenciais, sendo o chefe de Estado também chefe de governo.

Estima-se que a ausência de acesso ao mar gera um gasto adicional de 10% do PIB boliviano por ano (Alvarado, 2004:391). O Chile alega que não há o isolamento geográfico boliviano, visto que fornece diversas instalações de transporte: a ferrovia de La Paz até Arica e os portos de Arica e Antofagasta para o trânsito de mercadorias bolivianas. Contudo, a Bolívia paga pelo uso dos portos e, em contrapartida, quer sua concessão definitiva (Vizentini, 2004:372). Em suma, para além do efeito simbólico relacionado à soberania e à auto-estima nacional, há 10% do PIB boliviano em jogo40.

Nos últimos anos, os governos Evo Morales e Michelle Bachelet reuniram-se periodicamente a fim de debater o assunto41. Para Morales, “durante quase dois séculos, o

40 Em 2004, o PIB da Bolívia foi de US$ 8,7 bilhões (Jane’s, 2008). Dez por cento deste valor resulta em 870

milhões de dólares.

41 A nova Constituição boliviana, aprovada em 2009, tratou de registrar a preocupação com a saída ao mar. Em

Estado chileno tem mantido inalterável a linha política de suas relações com a Bolívia: identificar suas necessidades, determinar as fontes em que pode satisfazê-las e assumir seu controle” (Morales, 2006:22). Boas intenções foram registradas e formalizou-se a Agenda bilateral dos Treze Pontos, dos quais a saída ao mar é um dos temas. A negociação deste ponto, contudo, não se materializou em resultados práticos. O novo governo chileno de Sebastian Piñera (desde março de 2010), embora tenha reconhecido a necessidade boliviana de saída ao mar, afirmou que não cederá “nem mar, nem território”. Devido à sua recorrência, esta é uma das questões que com toda probabilidade integrará, cedo ou tarde, a agenda da recém-criada Unasul.

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