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4.2 Estimação dos fluxos de Água Efetivos e Virtuais: a pegada hídrica

4.2.3 Água cinza, poluição e a equação de assimilação

A pegada hídrica em termos de água cinza mede a quantidade de água necessária para que o poluente seja diluído até uma concentração que não prejudique os ecossistemas aquáticos nem a saúde humana. É determinada pelas equações abaixo:

PHc = L/Lc * R (21)

Lc = R(cmax – cnat) (22)

PHc = L/(cmax – cnat) (23)

Sendo PHc a pegada hídrica em termos de água cinza, L a quantidade de poluentes

entrando no corpo de água, Lc a quantidade crítica de poluentes, ou seja, aquela capaz de

saturar a capacidade de assimilação do corpo de água, R a entrada/saída de água do corpo de água considerado, cmax a concentração de poluentes no ponto de saturação da capacidade de

é R, uma vez que as outras são dadas por parâmetros constitutivos que, como vistos anteriormente, têm como característica dxi/dt = 0 (no horizonte temporal escolhido para a

análise). Os valores para as concentrações máxima e natural são dados por meio da construção de categorias (ambientes oligotróficos, mesotróficos e eutróficos) e da determinação de médias para cada categoria em relação a cada tipo de poluente (FRANKE et al., 2013).

Assim, o tempo intrínseco da diluição dos poluentes nos corpos de água é dada pela entrada e saída de água do sistema, único fator dinâmico considerado. Este, por sua vez, depende do ciclo hidrológico que fornece água por meio da precipitação (na bacia considerada ou em bacias a montante) e pelo escoamento dessa água em direção ao curso de água, determinada por caraterísticas do solo e da vegetação.

4.2.4 Tempo intrínseco e heterogeneidade qualitativa na análise da pegada hídrica

Levando em consideração as distinções entre os tempos intrínsecos dos diferentes tipos de água, podemos tecer algumas considerações relevantes à dinâmica. Primeiramente, a relação entre água azul e água verde pode ser facilmente visualizada: a água verde é fruto de um processo que é componente do ciclo hidrológico, a evapotranspiração. Conforme explicado no primeiro capítulo, o nível holárquico superior possui um ritmo de duração mais lento do que os níveis inferiores. Assim, a maior velocidade deste processo em relação ao processo total do ciclo hidrológico, que por sua vez é ponderado por uma série de outros processos descritos na subseção 4.2.1, pode ser averiguada no fato da água verde ser o componente mais relevante da pegada hídrica total, motivo pelo qual foi desenvolvida a teoria da água virtual para lidar com a subestimação que resultava consideração exclusiva dos fluxos de água captada (água azul), como explicado no terceiro capítulo.

A água cinza, por sua vez, tem sua provisão em um tempo intrínseco muito mais próximo do ciclo hidrológico, uma vez que depende do resultado deste (após a interação de todos os fatores relevantes, ou seja, o output desse sistema que constitui a água azul). A pegada de água cinza está diretamente ligada aos subprodutos indesejados do metabolismo social, ou seja, a emissão de detritos de alta entropia. Em outras palavras, a pegada cinza é fruto do cruzamento da duração de dois processos: um totalmente dependente do ciclo hidrológico, que estabelece o tempo necessário para diluir uma carga determinada de poluentes; e o metabolismo social, que determina a carga de poluentes por unidade de tempo.

A terceira equação da subseção anterior, ao ser uma função composta das duas funções anteriores, permite o estabelecimento de um diferencial de tempo comum dentro do horizonte de análise, como analogia.

Assim, o metabolismo dos poluentes se dá pela interação do sistema hidrológico com os sistemas econômico e social, em representações não-equivalentes, enquanto a relação que existe entre o metabolismo que produz a água verde e o que produz a água azul (ciclo hidrológico) é de parte e todo. Essa distinção não é gratuita: enquanto a intersecção entre um sistema e outro em geral não produz trade-offs, na relação de parte e todos esses trade-offs se tornam visíveis.

Assim, a água cinza só afeta a provisão de água azul em níveis críticos, onde a quantidade absoluta de água por unidade de tempo não é suficiente para reduzir a concentração dos poluentes que ocorreria em decorrência de um metabolismo social acelerado em relação ao tempo intrínseco do ciclo hidrológico (que varia tão lentamente que pode ser considerado constante). A relação aqui não é entre a provisão de água cinza e o ciclo hidrológico, uma vez que esta é apenas água azul não extraída, mas sim entre o metabolismo social e o ambiente que o contém. Portanto, não é possível ver o trade-off associado ao aumento da pegada hídrica em termos de água cinza usando apenas uma representação do sistema em termos de fluxos de água, sendo necessário o uso em paralelo da representação não-equivalente construída com base nas variáveis relevantes para o metabolismo social, ou seja, os fatores de fundo e fluxo usados no processo produtivo.

No que toca à relação entre água verde e água azul, é necessário lembrar que a última é produto do metabolismo de um sistema que tem o metabolismo de água verde como componente. Apesar de a água verde ser alimentada pela precipitação, outro componente do ciclo hidrológico, a água azul é que é variável dependente dos valores de evapotranspiração que determinam a pegada hídrica em termos de água verde. Uma maior evapotranspiração significaria um menor escoamento superficial, o que acarretaria menos água nos corpos de água para ser captada para outros usos.

São comuns estudos que mostram que o desmatamento aumenta a quantidade de água que escorre para os rios e outros cursos de água em pequenas áreas (BRUIJNZEEL, 1990). O trabalho de Costa et al. (2003) considera uma série temporal de 50 anos na bacia do rio Tocantins para analisar o impacto da mudança no uso do solo sobre os fluxos de água de um trecho desta bacia hidrográfica com área de drenagem de 175.360 km2, ou seja, em uma escala

maior do que a dos estudos anteriores, concluindo que a vazão do rio aumentou 24% no período em decorrência de um aumento da área desmatada de 30% para 49% do total da área. Para área de cerrados, o estudo de Coe et al. (2011) considerou um trecho da bacia do rio Araguaia com uma área de drenagem de 82.632 km2, da qual cerca de 55% havia sido

desmatada na maior parte a partir da década de 60 e na qual a vazão dos rios aumentou cerca de 25%, sendo que 2/3 desse acréscimo seria devido ao desmatamento. A modelagem desenvolvida por Oliveira et al. (2015) afirma que o escoamento superficial aumenta de 1% do total precipitado para cerca de 20% quando o cerrado é derrubado.

No entanto, o estudo de Zeng et al. (2012), baseado em imagens de satélite, estima que houve aumento na evapotranspiração global nas décadas de 1980 e 1990, e que este aumento se concentra em regiões recentemente desmatadas. Um estudo similar realizado para o Cerrado por Oliveira et al. (2014) também estima um aumento da evapotranspiração da região do bioma como um todo (embora não em todas as partes). Três hipóteses são levantadas por este trabalho: a primeira aponta o uso de irrigação e a criação de represas como fator relevante (STERLING et al., 2013); a segunda, a transição de áreas de pasto para áreas de plantio que acompanha a expansão da fronteira agrícola, na qual a vegetação nativa é substituída por pasto (PHALAN et al., 2013); e a terceira relaciona o aumento da evapotranspiração ao aquecimento global (JUNG et al., 2010). A segunda hipótese é substanciada por Oliveira et al. (2014) pela realização de um teste em uma área menor (45 km2) desmatada em 2009, na qual

a redução da evapotranspiração dura apenas um ano, retornando aos níveis da vegetação nativa após este período. Outra evidência em favor desta hipótese é o estudo de Loarie et al. (2011), que mostra que a evapotranspiração cai quando da passagem da mata nativa para área de pastagem, mas cresce quando o pasto é convertido em canaviais.

É necessário considerar que a evapotranspiração também não é um processo homogêneo: não apenas os valores se alteram para cada tipo de uso do solo, mas também todo o processo que os produz. Dito de outra forma, embora a medida em uma dimensão (água) pressuponha equivalência entre o total e os valores dos componentes, o caráter complexo dos sistemas envolvidos garante que uma mesma representação não seja capaz de abarcar a multidimensionalidade dos processos que garantem a existência, sobrevivência e reprodução dos sistemas, uma vez que para isso precisaria realizar sínteses passivas diferentes, o que produziria uma representação não-equivalente. O uso de síntese ativa para se representar todos os processos demandaria uma capacidade infinita de processamento de informação (nos

termos da seção 1.7), o que torna necessário a consideração de diferentes representações não- equivalentes. Diferentes tipos de uso de solo não apenas afetam a provisão de água, mas também a de outros serviços ecossistêmicos. A capacidade de sistemas que evoluem de se adaptar a múltiplas pressões, lidando com diferentes qualidades medidas com variáveis de diferentes dimensões (água, alimento, temperatura, etc.) faz com que seu comportamento não seja ótimo em nenhuma delas considerada em separado, mas que seja satisfatório em um número de dimensões suficiente para que consiga se adaptar e viver no ambiente que habita. Essa multidimensionalidade dos sistemas complexos é algo que, para ser evidenciado, exige a consideração de representações não-equivalentes em paralelo.

Chega-se enfim à questão do nível focal e superiores do quadro 2, ou seja, da representação não-equivalente do sistema em termos hídricos. Enquanto os níveis superiores da representação não-equivalente em termos de fluxos de água foram construídos tendo por base processos físicos (ciclo hidrológico), eles não são completamente congruentes com os níveis inferiores, que foram construídos com base na representação não-equivalente em termos de fluxos de valor. Enquanto o excedente hídrico (EXC, nível a+3) equivale à quantidade de água azul que passa pelo Triângulo Mineiro em um ano, e o nível a+2 divide este excedente entre os diferentes destinos que este tipo de água tem, a maior parte da água utilizada nos processos produtivos que compõem a economia da mesorregião não tem como fonte a água azul, e sim a água verde, que está contabilizado no nível a+3 como evaporação. Isso ocorre porque a água verde nada mais é do que água metabolizada pelas plantas, e esta tem como seu maior destino a evapotranspiração da planta (com uma pequena fração sendo mantida na planta para que esta não “seque”). Assim, a irredutibilidade entre as representações não-equivalentes aparece aqui como uma incongruência causada pela sobreposição de níveis hierárquicos nessas diferentes representações, uma vez que partem de sínteses passivas diferentes que produzem bifurcações na forma. Como a água verde é metabolizada em um nível superior da holarquia dentro da representação em termos de água, este hólon superior tem uma maior capacidade de realizar sínteses ativas, uma vez que não conta apenas com a síntese passiva de seu hólon componente, mas com a de todos os hólons componentes, em uma agregação na qual a água azul aparece como propriedade emergente em decorrência da impredicatividade na forma entre os hólons e o todo52. O ciclo hidrológico,

52É necessário lembrar que este caráter depende da representação que se faz do ciclo hídrico e dos fluxos de água, nos quaisaágua verde e a azul aparecem como qualitativamente heterogêneas, não sendo, portanto, universal. Ou seja, as sínteses passivas realizadas pelo observador implicam essas diferentes sínteses passivas que produzem bifurcações na forma. Um observador que não estivesse interessado na diferença qualitativa entre

tomado como metabolismo de um hólon, apenas “representa” água azul, ou seja, água como normalmente considerado, sendo a água verde algo que se diferencia a partir da consideração da importância dessa água no metabolismo ecossistêmico da água, nível imediatamente inferior e, portanto, contíguo. Enquanto a água fornecida pela evapotranspiração para o ciclo hidrológico é representada nesse nível como explicação, com uma equação de estado que coloca todas as variáveis componentes como qualitativamente homogêneas, a água verde é entendida na homologia entre os níveis (não-equivalentes) que permite a consideração da influência de um sobre o outro de maneira imanente e não reducionista.

Figura 20 – Rede de Relações entre Variáveis para Água de Diferentes Níveis Holárquicos

(Elaboração própria)

Quadro 9–Relações Sociedade-Ambiente na Holarquia Considerada

Nível a+3 a+2 a+1 a n-1 n-2

Metabolism o Ciclo Hidrológico Ecossistema s Naturais Ecossistema/ Sociedade Sociedade Uso Humano Produção

Função Abastecimento Recarga Apropriação

/ Extração Consumo direto e indireto(uso Consumo direto + Uso Uso direto e indireto na produção (uso

os dois tipos de água não representaria os níveis hierárquicos do ciclo hídrico como tendo bifurcações entre si, reduzindo a complexidade da análise e levando aos mesmos problemas das análises anteriores ao desenvolvimento da teoria daágua virtual.

final) indireto na produção

intermediário)

Fonte: Elaboração própria com base em Madrid (2014, p. 106).

Tal sobreposição de níveis é fruto da necessidade de se trabalhar com as representações não-equivalentes em paralelo para que se possa observar propriedades emergentes e trade-offs que ficariam ocultos utilizando apenas uma representação. As funções desempenhadas pelo sistema composto por fatores de fundo (parâmetros constitutivos) em termos de unidades de área, uma vez que representam todo o metabolismo (ecossistêmico e social) que ocorre dentro da área categorizada, metabolizando os fluxos de água para tal, estão descritas no quadro acima. O abastecimento são os fluxos de água resultantes do ciclo hidrológico, que precisariam de modelos climáticos para representar sua dinâmica, mas que são aqui tratados por seus valores médios. A recarga é água resultante da dinâmica do ciclo hidrológico que efetivamente chega às diferentes categorias de uso de água nesse nível: superfície, ou seja, rios e outros corpos de água; a camada superficial do solo e a vegetação natural; e as camadas inferiores de solo. A apropriação/extração identifica os fluxos de água que são captados ou apropriados para uso no metabolismo social. Nos três níveis inferiores mostrados acima, uso direto é o uso de água azul e o uso indireto, o uso de água verde, mantendo a divisão entre fluxos efetivos e virtuais. Esta água pode entrar no metabolismo social de duas formas, uma vez que este reflete as categorias socioeconômicas relevantes: envolvida no consumo da população, ou seja, no seu uso final, ou utilizada na produção, ou seja, uso intermediário.

Uma vez feitas as considerações acerca das categorias utilizadas na construção do sistema formal que representa o complexo ambiente-sociedade-economia em suas diferentes representações não-equivalentes, pode-se seguir aos valores estimados. Na seção seguinte é feita a análise dos resultados desta análise para a mesorregião do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba.