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Dinâmica de Sistemas Complexos: Identidade e Relações Causais

A estabilidade de um sistema é fruto da harmonia entre o ritmo dos processos em di- ferentes níveis da holarquia, como explicado na seção anterior. Porém, da mesma forma que o diferencial de ritmo entre diferentes níveis da holarquia não pode ser grande demais, sob pena de causar a ruptura do sistema, este também não pode ser exatamente o mesmo, pois isso im - possibilitaria a construção dos diferentes níveis de análise como representações não-equiva- lentes, uma vez que implicaria um conjunto equivalente de relações causais. A importância desta ligação entre a estrutura do sistema natural e a forma pela qual ele é representado no cé- rebro (que é um subsistema da holarquia, ou seja, aquele que representa se encontra inserido na representação) se relaciona com o caráter antecipatório dos sistemas e será explicada nessa seção e na próxima. Dessa forma, a questão de como estabelecer a identidade dos subsistemas

de um sistema natural que tem sua própria identidade como todo e cujos componentes podem ser difíceis de distinguir. Tome-se novamente a equação geral de estado de um sistema dinâ- mico, agora incluindo um conjunto de parâmetros ai:

dxi/dt = fi(x1, …, xn, a1, .... ar), i = 1, …, n (14)

Essa forma de se representar um sistema estabelece uma dualidade entre estados inter- nos e leis dinâmicas. Na mecânica hamiltoniana, os estados internos são representados como coordenadas em um espaço de fase, e as leis dinâmicas como o efeito de forças exercidas so- bre esses estados internos xi. Um sistema dinâmico é o resultado da sobreposição de um cam-

po vetorial sobre um espaço de fase onde, para cada coordenada, é estabelecido um vetor que confere direção e velocidade ao comportamento das partículas. Ao considerar o efeito das in - fluências de fora do sistema como um único vetor (para cada coordenada) já se considera uma relação causal para este sistema. Cada estado interno terá um parâmetro ai correspondente so-

bre o qual irão agir as forças externas e que define o resultado do comportamento deste estado frente a esta força, fazendo com que o resultado da dinâmica dependa tanto do interior (nível focal) quanto do exterior (nível n+1). O sistema formal é definido a partir de dois tipos de pa- râmetros: os parâmetros constitutivos, que descrevem as relações de simultaneidade (dai/dt =

0) que compõem a identidade formal do sistema por meio da definição de seus componentes no nível inferior; e os parâmetros que descrevem o estado do sistema no nível superior e são função do tempo, representando os inputs do sistema (ROSEN, 2012).

Para utilizar uma metáfora biológica, é possível dividir a dinâmica de um sistema em três partes: o genoma, ou seja, os parâmetros constitutivos que definem a identidade formal do sistema; o fenótipo, ou seja, o valor das variáveis de estado do sistema do sistema considerado (resultado da interação entre genoma e ambiente); e o ambiente, os parâmetros próprios da di- nâmica temporal que representam a relação do sistema com o que está fora dele (ROSEN, 2012). Diferentes sistemas naturais podem ser identificados como da mesma espécie ou tipo, se representam diferentes fenótipos de um mesmo genoma, ou seja, diferentes valores para um mesmo conjunto de parâmetros em uma mesma identidade formal que são fruto tanto de dife- rentes influências ambientais como da própria idade do sistema, uma vez que sistemas mais velhos estarão mais “adiantados” em suas dinâmicas. De forma alternativa, sistemas da mes- ma espécie são realizações concretas de uma mesma essência.

A divisão dos parâmetros da dinâmica de um sistema nessas três categorias serve ao propósito de tornar mais explícitas as relações causais que ocorrem no sistema. Aqui, é neces- sário ir além da simples ideia de causalidade como uma relação entre causa e feito e identifi- car diferentes os tipos de causalidade que ocorrem em um sistema complexo. Para isso, resga- tam-se aqui os quatro modos de causalidade de Aristóteles (2014, Physics III): a causa materi- al, ou seja, aquilo a partir do qual o sistema surge e persiste; a causa formal, a espécie ou cate- goria na qual o sistema é classificado; a causa eficiente, ou seja, a fonte imediata da perturba - ção sobre o sistema; e a causa final, ou seja, para qual finalidade o sistema foi criado. O geno- ma pode ser considerado a causa formal e o ambiente, em suas pressões evolucionárias sobre o sistema (como por exemplo, pela predação), a causa eficiente da dinâmica9, sendo o fenóti-

po efeito da combinação da causa formal com os inputs fornecidos pelo ambiente, ou seja, a causa material. A forma “normal” de causalidade, única presente na modelagem matemática tradicional, é a causa eficiente (ROSEN, 2012). A causa final, no entanto, é produto de uma causalidade complexa que ocorre em diversos níveis da holarquia, e por isso só será devida- mente explicada na seção seguinte, uma vez que depende de mais conceitos para ser entendi- da.

Considerando o sistema complexo como composto pelo genoma, ambiente e fenótipo, com seus respectivos modos de causalidade, é possível verificar a importância dessa segrega- ção de categorias de causalidade ao se utilizar de deslocamentos virtuais. Estes deslocamentos são pequenas variações imaginárias na configuração de um sistema mecânico mantendo a energia total constante. O resultado de um deslocamento deste tipo em um sistema de forma hamiltoniana faz com que as forças presentes no sistema levem esse deslocamento a desapare- cer, com o sistema voltando ao equilíbrio.

Ao trazer o raciocínio do deslocamento virtual da estática para a dinâmica, é necessá- rio lembrar que, como visto anteriormente, uma vez determinada a equação de estado, pode-se afirmar que a dinâmica contida em tal equação determina a ligação entre o estado do sistema x(0) e o estado x(t). O estado do sistema x(i) é a causa material do estado do sistema x(j). Por - tanto, um deslocamento virtual do estado x(i) para algo mais próximo de x(j) pode ser inter - pretado como uma aceleração do ritmo da dinâmica, ou seja, do tempo intrínseco. Para que isso ocorra, é necessário que a variação dos efeitos fi seja igual à soma dos produtos dos parâ-

9 Aristóteles (2014; Categories) já trata de questões semelhantes as consideradas pela teoria de sistemas. Entre elas podemos destacar que a espécie como definida por Rosen (2012) se assemelha muito ao conceito de espécie de Aristóteles, e o conceito de fenótipo é muito próximo do conceito de substância primeira.

metros ai com o valor da variação do estado do sistema para cada parâmetro, de forma que a

relação entre causa e efeito seja exata, e consequentemente, simétrica, como na equação abai- xo:

dfi =

j=1 n

❑aidxj (15)

Colocando de outra forma, o fenótipo é o efeito do genótipo (identidade e causa for - mal), do ambiente (por meio dos parâmetros que regulam a relação do sistema com o que há fora dele, representando a causa eficiente) e do valor do estado do sistema no instante anterior (causa material, a quantidade de inputs que o ambiente forneceu no instante anterior). O pro- blema colocado por essas condições é claro: a exatidão da relação só poderia ser fruto da au - sência de relações desconhecidas. Como afirmado anteriormente, sistemas complexos não po- dem ser completamente representados em uma única identidade formal e, portanto, modelos criados para representá-los irão apresentar discrepância após certo período.

Assim, a partir da equação de estado do sistema, é possível produzir o mesmo efeito a partir de diferentes causas. Isso ocorre porque, seja o deslocamento virtual fruto da variação dos parâmetros ou dos valores do estado do sistema, ele é mensurado na mesma dimensão (dada por fi). Porém, a presença de bifurcação na identidade formal (genótipo) do sistema

após o instante tc faz com que não seja possível garantir que o mesmo efeito seja produzido

por uma variação no ambiente ou no fenótipo de magnitude tal que na equação de estado do sistema essa variação fosse equivalente. Ou seja, a produção de um mesmo efeito a partir de diferentes causas só é possível após o instante crítico tc, quando essa equivalência se perde.

Ao considerar a causa eficiente como a única forma de causalidade possível, o paradigma re- ducionista cria uma inconsistência lógica entre os resultados do modelo antes e depois da bi- furcação, quando as pressões ambientais (causa eficiente) que levavam a um efeito equivalen- te ao da variação das outras causas passam a produzir um efeito não-equivalente.

A estrutura holárquica dos sistemas complexos faz com que estes se comportem, por- tanto, de forma muito diferente dos sistemas mecânicos reducionistas como a mecânica hamil- toniana. A presença de bifurcação entre identidades formais que só podem ser conhecidas após serem observadas tornam impossível a formalização de uma equação de estado do siste- ma que o explique completamente. A independência (limitada) da dinâmica dos subsistemas presentes em cada nível do sistema em relação à dinâmica de seus níveis superiores torna o comportamento do sistema irredutível a uma única formulação. Qualquer variação que ocorra

no comportamento de um sistema complexo produzindo um efeito irá se manifestar em parte como devido à causa material (as condições iniciais), em parte como causa eficiente (pressões ambientais) e em alguns casos também em parte como causa formal, quando a variação pro- duzir um resultado não previsto pela identidade formal preestabelecida do sistema, indicando o ponto de bifurcação. A presença desta segmentação da causalidade em diferentes categorias em um sistema complexo faz com que não haja uma trajetória de equilíbrio para onde conver - gem os resultados, fazendo com que uma mesma causa possa produzir diferentes resultados (ao interagir com as outras causas relativas a diferentes níveis hierárquicos) dependendo das condições ambientais e da “idade” do sistema, ou seja, sua posição no tempo em relação ao ponto de bifurcação (ROSEN, 2012). É importante ressaltar que as diferentes categorias de causalidade, apesar de herdadas de uma tradição filosófica mais antiga, têm uma origem clara nessa formulação: ela vem de diferentes níveis da holarquia.

Consideradas as três formas de causalidade, resta considerar a causa final. Sistemas complexos podem evoluir no tempo, a partir da interação com o ambiente, e o fazem de forma antecipatória, como mostrado na seção anterior. O processo de evolução dos diversos sistemas interagindo faz com que um evolua para antecipar o outro, aumentando a complexidade destes sistemas que interagem. A causa final, nessa formulação, não é externa ao sistema, como no esquema aristotélico, mas do contínuo processo de interação e antecipação dos sistemas. Sis- temas complexos produzem a si próprios buscando sobreviver no ambiente que, por sua vez, também está executando sua própria dinâmica e mudando em decorrência disso. A visão me - canicista trabalha com a ideia de uma equação de estado definitiva, que descreva todo o com - portamento do sistema ao longo do tempo, não comportando esse tipo de mudança. A causa final de um sistema emerge como um fechamento causal que, à primeira vista, parece inverter a relação entre causa e efeito. No entanto, este fechamento causal se dá exatamente na autor - referência de qualquer sistema complexo, que surgiu a partir de um contexto que envolve tan - to o ambiente quanto o sistema que lhe deu origem: é no processo de coevolução que o siste- ma produz a si próprio10, buscando antecipar o comportamento necessário para sobreviver, se

adaptando e dando origem a novos sistemas com novas características que estão mais adapta- dos (ROSEN, 2012). O fechamento causal é propriedade dos sistemas complexos, e um siste - ma deste tipo não estará adequadamente representado se não apresentar tanto esta segmenta- ção de causalidades como o fechamento causal que garante a individualidade destes sistemas,

10Spinoza (2007), ao tratar da relação entre a parte finita e o todo infinito, já afirma que a substância é causa de si

ou seja, permite identificar estes sistemas como seres com uma organização própria, distintos de seu ambiente.

Uma vez considerada a complexidade de um sistema como produto de uma causalida- de complexa, que pode ser segmentada para representar processos que cuja causalidade é ori- ginada em diferentes níveis da holarquia com diferentes tempos intrínsecos, a próxima seção trata da compatibilidade entre estes diferentes modos de causalidade representados em mode- los de diferentes tipos, nominalmente modelos analíticos e sintéticos.