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ÁLVARO ROBERTO CRESPO MERLO:

No documento contradições e desafios para a saúde (páginas 197-200)

Em relação aos casos, o que aparece mais frequentemente são transtornos depressivos de todos os tipos, de uma forma mais intensa e também mais grave, os transtornos de estresse pós-traumáticos. Esse é o grande problema, porque são muito difíceis de controlar. Podem ser chamados até de síndrome do pânico, mas são uma coisa bem precisa, bem estabelecida e que só se encontravam em casos de violência súbita. É o caso do vigilante do banco que quase morreu num assalto e começa a ter pensamentos invasivos, pesadelos, não consegue mais passar na frente do prédio, não consegue mais passar na rua em que o prédio se situa, começa a ter pensamentos invasivos durante o dia, a revivenciar. Isso era uma coisa que acontecia numa agressão súbita. A violência psicológica típica do assédio moral continuada começou a produzir esse mesmo tipo de sintomatologia. Na própria psiquiatria,

inclusive, o pessoal ficou meio confuso. Hoje a psiquiatria considera que isso é possí -vel, que acontece porque, evidentemente, as pessoas fazem esses relatos. Não é mais, por exemplo, aquela violência súbita daquele cara que foi exposto a um atentado. Não. São pequenas agressões continuadas ao longo de meses, ao longo de anos que produzirão a mesma sintomatologia do transtorno de estresse pós-traumático. São essas duas coisas, basicamente. E o outro aspecto que é importante salientar nessa questão, é que hoje não está se diferenciando muito o privado do público, e esse é um grande problema.

Não sei se alguém fez Escola de Administração. Não estou falando mal das Escolas de Administração, mas hoje, elas formam as pessoas exatamente dentro dessa lógica: só existe um bom administrador, o que dá resultados. Tem uma pressão toda que vem de cima, e essa pressão acabou contaminando todos os espaços das

empresas, inclusive as bem “pobrinhas”, como dizia a moça do vídeo, que recebem

os fundos de Private Equity. Contaminou o resto do mundo, porque a cada uma em-presa dessa que é alavancada, a concorrente vai ter que se alavancar também, ou vai ter que dar um jeito de manter o mesmo nível de produtividade. Só que isso veio parar no espaço público.

Temos hoje no Serviço de Medicina Ocupacional uma equipe composta por quatro médicos, dois médicos do trabalho, um clínico e mais uma psiquiatra, duas psicólogas, uma assistente social que atende só esses casos. Temos uma psicóloga que está sempre com a agenda aberta, sempre de plantão. As pessoas podem vir direto e é necessário que isso aconteça. Recebemos casos dos funcionários do hospi-tal, de transtornos de estresse pós-traumático. Quando começam a chegar perto do hospital para trabalhar, começam a ter sintoma.

Tenho uma doutoranda que está terminando a coleta de dados e a acom-panhei numa entrevista com essa funcionária do hospital, a que passou um ano

com dor muscular. Espero não me estender muito, é só para exemplificar. Um dia

alguém disse: “Mas, espera um pouco. Será que isso não tem que ver com a história

do trabalho?” E começaram a tratar. Mas, na entrevista, o que aconteceu? Ela con -tou essa história toda e a doutoranda deixou a mulher falar uma hora, mas ela não falou de transtorno psíquico, só falava da dor. “Mas quando é começou essa

histó-ria?”, perguntou a doutoranda “Ah, esse negócio começou quando... Eu trabalho há

15 anos no hospital. Quando eu me dei conta que a minha colega, que era técnica de enfermagem – as duas eram técnicas de enfermagem -, que está a um ano

traba-lhando comigo, ganhava mais do que eu. Foi aí que eu comecei a ter sintoma”. Uma

história de livro. Eu caí para trás quando ela me falou isso. Ela deu aquela resposta direta, entendem!

Vocês vão ver hoje no setor público essa conversinha da remuneração variável, de criação de metas absurdas. Não vou me estender muito aqui. A segunda pergunta: se existem estratégias individuais ou coletivas construídas pelos trabalhadores. É

muito mais complicado criar aqueles mecanismos clássicos que psicodinâmica do trabalho mostra no trabalho taylorista-fordista, porque ali existem coletivos de traba-lho. O grande problema do trabalho hoje, dessa transformação do trabalho, é que ela cria o trabalho solitário. As pessoas estão em competição umas com as outras, prin-cipalmente no setor privado. Mas começamos a ver isso também no setor público, no trabalho docente. As pessoas estão em competição umas com as outras. Então, para criar mecanismos coletivos de defesa é muito mais difícil. É quase impossível. Não sei de mecanismos assim que foram criados. A tendência é as pessoas serem colocadas umas contra as outras.

Acho que não respondi a primeira pergunta. Vou responder rapidamente ago-ra. Sim, isso nos traz também bastante sintoma. O nosso residente atendeu essa pessoa da empresa de informática. Depois que terminou a residência, foi trabalhar nessa rede multinacional de supermercados, na loja em que trabalhava essa mulher que fez três tentativas de suicídio. Trabalhou dez meses e começou a ter sintoma cardíaco, irritabilidade, insônia Eu fui acompanhando porque conversava e foi me contando. Era uma história de assédio moral atrás da outra. As histórias que as pes-soas trazem, são histórias que se tu não tens preparo, se não tens uma supervisão... A Psicologia sabe isso melhor do que eu. Que se criem espaços de supervisão, que os trabalhadores da saúde possam falar do que eles vêm vendo, o que eles vêm aten-dendo, para poder se criar um espaço de fala, a fala terapêutica. Eu acho fundamental que se crie esse espaço, porque realmente é muito complicado segurarmos sozinhos essas histórias.

A última coisa, em relação ao sistema de saúde e suas possibilidades. Não sei se a palavra é otimismo. Não estou numa fase muito otimista porque acho que a situação brasileira, principalmente, está muito complicada. Mas, para as pessoas que estão dentro do sistema, esse projeto que temos hoje no Ministério da Saúde, é para criar uma rotina. Reunimos em Porto Alegre, um grupo de quase trinta pessoas. Tinha gente do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador (CESAT) da Bahia e de vários lugares. O pessoal do ABC está nessa linha de frente. Vamos começar a fazer essa atividade de levantamento das rotinas que já existem hoje e quais são as que podemos construir. Acredito que se possa ter algum tipo de rotina que não é, fundamentalmente, médica, com os recursos que existem no sistema de saúde. Os médicos são muito poucos no sistema de saúde, mas temos todos os

outros profissionais. Acho que o sistema de saúde tem que ter algum tipo de tera -pêutica, de atendimento de grupo para esses pacientes. O atendimento individual toma muito tempo. É necessário, principalmente, no início, um espaço coletivo onde as pessoas façam seus relatos. Fizemos muitas experiências, ainda nos anos 1990, com relação a pacientes com osteomuscular, com LER-DORT. É uma ex-periência muito interessante porque as pessoas começam a conversar e começam a se dar conta de que as suas histórias são muito parecidas. O espaço, por si só, já

é terapêutico. Grupos terapêuticos, apoio psicológico do tipo terapia, onde entra

a Psicologia, Serviço Social, Terapia Ocupacional, onde entram os profissionais

que estão ali. Isso não existe hoje, mas acho que é possível de se criar. Mas somos nós quem vai fazer, somos nós quem vai tomar a iniciativa e tocar. Isso porque o Estado está olhando para o outro lado, está respondendo aos interesses daqueles que resolveram que o Brasil agora vai virar potência econômica mundial, a sexta economia mundial. Quando andamos pelas calçadas do país, não se vê isso. Eu não vi. Morei sete anos da minha vida na França e sei perfeitamente qual é a diferença entre um país onde há cidadania e a nossa realidade aqui. Vou parar de me queixar

senão vai ficar horrível.

Duas questões para fechar. Há dois aspectos nessa transformação do trabalho que são extremamente danosos à saúde. A primeira delas é a questão do controle individual da produtividade. O controle individual da produtividade e a terceiriza-ção fazem parte do eixo do mal, nada menos do que isso. São coisas que devem ser banidas, simplesmente. A terceirização vai completamente contra a possibilidade de reconhecimento no mundo do trabalho. Isso tem que ser dito claramente. O que o

capital financeiro quer na vida é só uma coisa: o setor de vendas. É nisso que está

interessado. Terceirizam o resto. É no setor de vendas que fazem a remuneração imediatamente. Vou parar aqui, depois continuamos.

PLATEIA:

No momento em que a força de trabalho precarizada na saúde pública vem aumentando, o estudo da professora Isabela se foca no servidor. Ficamos pensando que talvez o estudo pudesse ter partido dos dados mais gerais que não contem-plassem apenas os estatutários, e que o trabalho empírico pudesse ter ampliado os sujeitos entrevistados no sentido de se aproximar das distintas formas de vinculação dos grupos ocupacionais estudados. A leitura do seu texto nos levou a pensar na necessidade de compreender melhor as diferenças nas razões para o afastamento do trabalho, a partir dos diversos vínculos e relações em que se inserem os traba-lhadores. Como foi lidar com essas questões para elaborar o artigo? O título do seu

texto menciona a expressão “condições de trabalho”. Os aspectos ressaltados pelos

entrevistadores parecem ultrapassar o que é tradicionalmente contemplado por esta expressão. Gostaríamos de compreender melhor a amplitude usada para o termo e

a associação entre condições e relações de trabalho. O final do artigo aponta para a

necessidade de se pensar a formulação de uma política de atenção à saúde do traba-lhador do SUS e também sinaliza para a questão da gestão do trabalho. Como você percebe esta relação? O que temos construído no campo da gestão do trabalho e da educação na saúde permite compreender melhor as situações relatadas pelos

No documento contradições e desafios para a saúde (páginas 197-200)