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Ângulo comunicacional: apontamentos para as observações e análises

3 COMUNICAÇÃO: FORMAS DE OLHAR PARA AS INTERAÇÕES NA

3.4 Ângulo comunicacional: apontamentos para as observações e análises

Para nosso argumento de pesquisa em torno das interações, trazemos aqui que a teoria deliberativa é também comunicativa. A comunicação deliberativa é uma forma de comunicação que, dentro do processo deliberativo, torna a atividade interativa, com recursos de linguagem que possibilitem que essa comunicação aconteça, ou melhor, que se busque ao menos uma tentativa para que ocorra. É a comunicação como processo, que tem os elementos e princípios deliberativos, como a mutualidade, igualdade, respeito, argumentação.

É importante destacar que no processo de dinâmicas e oficinas do projeto nosso objetivo não era fazer processos de deliberação para avaliar o nível de deliberação e, sim, ensinar os alunos, por meio de dinâmicas pedagógicas deliberativas, como a discussão livre sobre o conceito de deliberação, quais eram os princípios deliberativos e seus significados nos processos de discussão.

Dessa forma, aqui, a comunicação deliberativa não foi abordada como uma forma de avaliar os processos deliberativos dentro do projeto, ainda que de alguma forma contribua para pensar um experimento de deliberação em ambiente escolar. Nossa proposta vai na direção de apresentar como, por meio da prática da pedagogia deliberativa, surgiam diversas possibilidades comunicativas, como os participantes interagiram, que recursos comunicativos utilizaram, como se comportaram, como falavam, com que linguagem, como compreendiam os princípios, quais eram as dificuldades e desafios que se apresentavam em campo.

O uso de linguagens, como vimos, está presente na literatura da deliberação, principalmente em textos críticos ao modelo normativo habermasiano, e em análises empíricas,

que avaliam e analisam as diferentes possibilidades de comunicação nos processos deliberativos e como elas contribuem/ou não para incrementar/ou não os resultados da deliberação.

Assim, o ângulo da comunicação na prática pedagógica deliberativa é o problema de pesquisa deste trabalho, que tem o esforço de enxergar as diversas interações comunicativas que se estabeleceram no decorrer das atividades, observando os elementos propriamente comunicativos - reflexividade, dupla afetação e tentativa -, os elementos deliberativos - uso de argumentos e dos princípios da deliberação -, e a relação comunicativa dos participantes com a proposta de criação de capacidades deliberativas, no caso, a pedagogia deliberativa do Compartilha. Faremos isso nas análises, a partir da literatura que trouxemos até aqui.

O que vimos, até então, sobre a relação entre deliberação e comunicação é que há autores que defendem a visão comunicativa da deliberação como perspectiva fundamental para a boa deliberação. Tal perspectiva problematiza a deliberação para além de um processo normativo, propondo-o como mais plural e substantivo (YOUNG, 1996; GUTMANN; THOMPSON, 2004). Apesar do investimento de pesquisa de Polletta e Gardner (2018), ao fazer uma revisão de várias pesquisas para verificar as diferentes possibilidades comunicativas dos processos deliberativos em fóruns formais, o trabalho das autoras não problematiza a comunicação em si e, sim, como a comunicação contribui para a qualidade da deliberação; da mesma forma, Steiner et al. (2017).

Tais perspectivas, dessa forma, problematizam em partes o viés comunicacional, e voltam a direção comunicativa para o processo deliberativo, na visão de que uma ampla possibilidade de formas comunicativas podem estar ou não “a serviço do” processo deliberativo.

A perspectiva do nosso trabalho, entretanto, visa apresentar como diversas formas comunicativas se revelam em diferentes momentos da prática da pedagogia deliberativa, não para pensar um determinado processo deliberativo e, sim, para pensar como os diversos momentos interativos são ricos em si mesmos para a proposta de criação de capacidades deliberativas. Assim, para a nossa postura de investigação comunicacional, apoiamo-nos em Braga (2010; 2017), que aborda a comunicação como um processo tentativo, para nos ajudar a ver o que tem de comunicacional em nosso processo de investigação.

O que talvez vejamos de mais comunicacional nas perspectivas deliberacionistas, apresentadas aqui, seja o entendimento comum sobre o que é comunicação: o formato em que dois polos conversam, deliberam, um emissor, o outro receptor, já que a proposta de trocas argumentativas nos orienta a enxergar dessa forma. Braga (2017), inclusive diz que esse senso

comum sobre a comunicação não é pouca coisa. Mas, nosso papel, no entanto, enquanto pesquisadores em Comunicação, não só de forma ampla, mas inclusive de forma dedicada à pesquisa em deliberação, é o de problematizar questões comunicativas que emergem na prática. Ainda sobre enxergar o que há de comunicacional, Braga (2017), ao indicar o que isso seja, busca fugir de essencialismos que possam propor definições fechadas. Apesar disso, pontua que rejeitar o essencialismo comunicacional não significa dizer que qualquer coisa seja comunicação.

A boa deliberação, por exemplo, precisa atender a alguns critérios, como já descrevemos. Se tal prática é também comunicativa, podemos inferir que também exija a boa comunicação. Essa perspectiva de “ser boa” significa dizer que é “(...) bem sucedida, que articula, integra, vincula e cria reconhecimento mútuo” (BRAGA, 2010, p. 69). Porém, para o autor, esse nível de comunicação tem um valor alto. E arriscamos dizer, assim, como a deliberação, é exigente.

Tal nível de exigência de comunicação é colocado numa perspectiva rara. Para Braga (2010), a comunicação não é só comunhão, encontro de comuns que raramente acontece, mas também é conflituosa, performativa, com casualidades e valores baixos. Por isso, a postura do autor é colocar a comunicação como tentativa.

Consideramos os processos comunicacionais como tentativos em pelo menos dois aspectos. Em todo episódio comunicacional, a existência de uma margem, maior ou menor, de ensaio-e-erro torna os resultados probabilísticos, qualquer que seja o critério adotado para considerar o sucesso da interação. O tentativo corresponde, também, ao reconhecimento de algum grau de imprecisão (incerteza, multivocidade, ausência de controle) em todos os passos do processo. (BRAGA, 2010, p. 66, grifo do autor)

Tal olhar comunicacional aponta dois ângulos que fazem parte do processo comunicativo: o probabilístico e a imprecisão. O probabilístico aqui não se dá no sentido estatístico, mas no sentido previsível, em que algo pode ou não acontecer, em diferentes graus. E a imprecisão é que, algo acontecendo, não se há um controle do que realmente pode acontecer (BRAGA, 2010). Mas tal acontecimento comunicativo não significa dizer que a tentativa é o que acontece ou não, como se o que acontecesse fosse sucesso e o que não acontecesse fosse insucesso. Para o autor, “É preciso então não confundir comunicação com comunicação bem sucedida ou com comunicação de qualidade (...)” (BRAGA, 2010, p. 71).

A proposta do processo tentativo é olhar para este processo de forma mais abrangente, mas com critérios. Se tal processo é mais ou menos bem sucedido, são necessários critérios para dizer o que significa esse sucesso. Aliás, critérios que se descortinam no fazer do processo. Se

tal processo comunicativo é tentativo, não há motivos para se colocar critérios de sucesso antes que a tentativa ocorra, até porque “(...) O que em um regime seria considerado sucesso pode ser visto, em outro regime, como frustrante” (BRAGA, 2010, p. 71).

Nesse processo tentativo, também há as tentativas dos participantes, que são intenções individuais, não devendo ser confundidas com as tentativas do processo comunicativo, que a cada possibilidade interativa, se renova (BRAGA, 2010). A tentativa individual é uma forma de expectativa, aquilo que se espera que aconteça, assim como a tentativa do processo também. O que essa perspectiva da comunicação tentativa traz é que, mesmo provável e imprevisível, “(...) efetivamente se faz, (...) como resultado de alguma ação, de um trabalho humano e social para produzir alguma coisa que não está inteiramente dada nos pontos isolados prévios a uma interação” (BRAGA, 2010, p. 80, grifo do autor).

Às vezes, em nossa ânsia de querer dizer que alguma coisa é, Braga (2010; 2017) nos traz a perspectiva comunicacional de que alguma coisa pode ser, e que a palavra “alguma”, indefinida, nem sempre é vaga. Este “alguma” também pode ter algum valor comunicativo. Assim, Braga (2010; 2017) nos indica que é na tentativa de observar fenômenos e processos interacionais, que caminhamos em direção ao que é propriamente comunicacional. Não só a comunicação é tentativa, como a caminhada de pesquisa também é. São nos esforços tentativos - de fazer a tentativa, de vê-la acontecer e de tentar inferências -, que teremos, além de respostas, experiências comunicativas.

Por isso, nosso objetivo aqui se dá como heurística (BRAGA, 2017), ao buscar ver as interações comunicativas, em uma proposta de comunicação, cujas características e visadas comunicacionais se relacionam com a prática da pedagogia deliberativa. Tal heurística, como diz Braga (2017, p. 66) “(...) significa justamente a arte da descoberta”, encaminha uma proposta metodológica para que vejamos o que há de comunicacional nas atividades na escola. O que Braga (2017) busca com a heurística é a especificidade e não a essência de um comunicacional que não tem um conceito fechado anterior àquilo que se verá na prática. Assim, Braga (2017) parte de premissas para investigar, realizando perguntas com características comunicativas para buscar respostas sobre o que se evidenciou de comunicacional.

Nesse recente trabalho de Braga (2017), o autor faz uma série de premissas e perguntas estimulantes de serem pesquisadas. São premissas gerais sobre circuitos, códigos e dispositivos de comunicação, nas quais o autor vem trabalhando ao longo do tempo. Ele sugere que essas premissas e gestos heurísticos (os de inferir e questionar), não partam de premissas genéricas sobre a comunicação e sim de aspectos sobre o que se quer pesquisar, buscando na observação e na descrição do caso em específico, a resposta para as perguntas (BRAGA, 2017).

A partir de minhas reflexões no processo de criação deste trabalho, criei uma lista de aspectos, que leva em consideração a fundamentação teórica e as observações do pré ao pós- campo, que podem ou não coincidir com as de Braga (2017). Tal proposta não prevê esgotar as possibilidades de perspectivas, mas deixar também espaço aberto para o que emergir nas análises. Dessa forma, partindo da premissa geral, da comunicação como tentativa em perspectiva com a deliberação e a prática da pedagogia deliberativa, observamos os seguintes aspectos:

a) na perspectiva da teoria deliberativa, os participantes tentam: ✓ usar argumentos;

✓ usar linguagens diferentes dos argumentos, como histórias de vida; ✓ agir comunicativamente orientados pela mutualidade;

✓ convencer uns aos outros para mudar de ponto de vista; ✓ debater usando os princípios da deliberação;

✓ discutir sobre temas controversos;

✓ colocar questões de interesse de todos e não de uma perspectiva particular; ✓ liderar ou atrapalhar a discussão;

✓ chegar em um acordo comum sobre o que está sendo discutido; ✓ não debater, permanecendo em silêncio.

b) na perspectiva da pedagogia deliberativa, os participantes tentam: ✓ compreender a proposta do projeto Compartilha;

✓ perguntar e tirar dúvidas sobre as orientações das dinâmicas; ✓ seguir as regras das dinâmicas;

✓ incluir os nomes dos princípios deliberativos em seus vocabulários; ✓ trabalhar em equipe;

✓ explicar as atividades para os colegas; ✓ sugerir questões para serem discutidas;

✓ sugerir outras formas de realizar as dinâmicas; ✓ não participar.

Tais aspectos se transformarão em visadas para as análises dos dados coletados, de acordo com o problema de pesquisa proposto, conforme desenvolveremos no capítulo a seguir.

4 COMPARTILHA EM BELÉM: ANÁLISE DAS INTERAÇÕES NA PRÁTICA DA