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4 COMPARTILHA EM BELÉM: ANÁLISE DAS INTERAÇÕES NA PRÁTICA

4.3 Análises das interações na prática da pedagogia deliberativa

4.3.5 Interações quanto aos princípios da deliberação

Buscamos aqui compreender o entendimento dos participantes quanto aos princípios da deliberação, como a igualdade, respeito, inclusão, não-coerção, justificação, reflexividade e reciprocidade, em dois momentos: um na dinâmica do cartaz (no encontro 02) e o outro na dinâmica dos princípios (encontro 03).

Conforme relatamos no item 4.3.2, ao analisar as interações quanto ao formato de mediação, ilustramos a dinâmica do cartaz, que, em parte, não foi realizada conforme o planejado, pois os alunos conversaram além do esperado durante o exercício de reflexão em torno dos princípios. Na situação, por conta do barulho, que não conseguimos ser bem sucedidos em nenhum tipo de controle, como o pedido de silêncio, por exemplo. Desse modo, tivemos que passar individualmente nos sete grupos para ouvir o que cada um deles tinha a falar sobre o princípio que havia construído no cartaz, conforme a disposição da ilustração (figura 14).

Figura 14 - Mapa da divisão dos grupos na sala

Fonte: Elaborado por Ronaldo Palheta, membro da equipe

Como foi uma atividade turbulenta, eu saí do papel de observação e ajudei alguns grupos com dúvidas. Por isso, não pude captar a explicação de todos, somente posteriormente nos registros de áudio. Porém, pelo excesso de barulho, os gravadores também não conseguiram capturar todas as falas com clareza e, dessa forma, o que compartilharei aqui é um resumo das anotações feitas pelo membro Ronaldo Palheta58 (por isso, algumas explicações sobre os princípios estão entre aspas e outras não), que estava realizando o registro nesse dia, e um resumo do que consegui ouvir nos áudios. Listamos a seguir o que os alunos explicaram sobre cada um dos princípios:

• Reflexividade: “refletir sobre algo”;

• Reciprocidade: uma conexão de sentimentos;

• Não-coerção: “quando uma pessoa é obrigada a fazer uma coisa que ela não quer. É que nem quando os amigos do menino querem obrigar ele a ficar com aquela menina, mas ele não quer”59;

• Inclusão: incluir pessoas nos projetos;

• Igualdade: “direitos iguais”. Nesse momento eles levantaram o cartaz que criaram e outros alunos disseram que estava “bonito”;

• Justificação: justificar o porquê do voto;

58 Agradecemos ao colega de equipe pelo registro e contribuição no trabalho.

• Respeito60: “a sua opinião é diferente da minha. Claro, eu vou debater, mas o que, a gente vai ficar... É religião, eu vou respeitar a sua religião. Tipo, se tu for judeu e eu sou cristão, tem que respeitar, é um negócio de respeito. Só assim o Brasil vai pra frente, o país vai pra frente”.

É importante frisar que nenhum membro da equipe havia dado explicações sobre o princípio em si. Eles foram estimulados a buscarem os seus próprios entendimentos. Dessa forma, vemos que, apesar de todas as falas serem suscintas, trazem possibilidades de entendimento. Mead (1937) nos mostrou que a mente é a capacidade que os sujeitos têm de indicar significados e que ela surge quando somos capazes de indicá-los a nós mesmos e aos outros implicados no processo interativo, sendo um dos elementos responsáveis pela reflexividade. Ou seja, somos estimulados a dar considerações e nossas respostas partem de um processo reflexivo, de uma capacidade de criar respostas.

Portanto, apesar de fugir do roteiro, vemos que desse ponto de vista é factível dizer que os participantes buscaram os seus entendimentos sobre os princípios pelos quais ficaram responsáveis – o processo reflexivo se deu. Por outro lado, a desorganização na dinâmica prejudicou com que todos conseguissem se ouvir e pudessem ter a oportunidade de compreender sobre todos os princípios.

Desse ponto de vista, é curioso notar que, mesmo os participantes buscando o entendimento sobre o significado dos princípios, eles não conseguiram praticar aquilo que estavam fazendo no ato reflexivo, ou seja, quando todos falavam ao mesmo tempo, não praticavam o princípio do respeito. Assim, mesmo em um espaço de uma pedagogia mais dialógica, a ação não caminhou junto da reflexão, dois elementos importantes da práxis de transformação social (FREIRE, 2011).

Isso, porém, não deve ser visto como uma surpresa, pois não foi solicitado a eles que além de refletirem sobre os princípios, pensassem em situações reais da vida ou que aplicassem àquele momento de construção. Como já dissemos, tanto na fundamentação teórica, quanto em outras seções de análises, os alunos esperam de nós que ajamos no modelo da pedagogia disciplinar; que partam de nós as regras, as instruções e os desafios. E é singular que, ao mesmo tempo em que esperam isso de nós, alguns deles, ainda assim, fazem associações com a vida real, com o universo de significados compartilhados entre eles, como quando um aluno, ao falar

60 Nesse momento, não foi mais possível ter uma boa captação de áudio, pois havia muito barulho. Então, decidi me aproximar da equipe com um gravador em mãos. Consegui captar a opinião de uma das participantes do grupo, quando ela dizia sobre o princípio.

de não-coerção, exemplificou com a situação de um amigo não querer namorar outra pessoa só pela pressão dos demais, caracterizando essa “pressão” como “coerção”.

De forma distinta, o desenvolvimento da compreensão a respeito dos mesmos princípios se deu na dinâmica dos princípios, no encontro seguinte (03). Metade da turma foi deslocada da sala de aula para a biblioteca e, lá, foi redividida em três subgrupos. Cada um deles ficou responsável por um princípio, sobre o qual deveriam escolher as tarjetas descritivas correspondentes.

Nesse dia, não foram trabalhados todos os sete princípios e, sim, apenas três, escolhidos de forma aleatória pela equipe, que foram “igualdade”, “respeito” e “reciprocidade”, conforme o gabarito da dinâmica que a mediadora tinha em mãos, em que cada número estava em uma tarjeta, totalizando nove (figura 15).

Figura 15 – Gabarito com os princípios e as descrições correspondentes

Fonte: Elaborado pela equipe da UFMG

A dinâmica ocorreu, de modo geral, bem silenciosa. Em um momento, antes das explicações de cada princípio, os alunos comentaram com a mediadora que a dinâmica era difícil. Logo depois, até que de forma rápida, os alunos fizeram a relação das tarjetas descritivas com os nomes dos princípios e começaram a colá-los no quadro branco, conforme solicitado.

Foi possível ouvir nos registros de áudio61 alguns alunos dizerem aos outros para irem até o quadro.

Assim como descrevemos na dinâmica anterior, listamos aqui o que os participantes disseram e compreenderam sobre o significado dos princípios:

• Igualdade: “direitos iguais”.

• Respeito: “respeitar o outro”, “a orientação sexual”, “religião”, “cor da pele”; “respeitar as ideias”.

• Reciprocidade: os alunos não souberam explicar.

Para coletar esses entendimentos, a mediadora teve que pedir diversas vezes para que os participantes contribuíssem. Na resposta sobre “respeitar as ideias”, ela parabenizou a participante pela resposta, relembrando que esse é um entendimento importante para a deliberação. Ao chegar ao princípio de reciprocidade, os alunos não souberam dizer o que significava, e a mediadora teve que dar as explicações, dizendo que a reciprocidade se tratava, basicamente, de levar em consideração a opinião do outro e que era, também, um princípio importante para a deliberação.

Após essa troca de perguntas e respostas, a mediadora solicitou que os participantes olhassem para os princípios que foram colados no quadro, e as características correspondentes, para verificar se concordavam com as associações de tarjetas feitas pelas equipes. No tempo dado de cinco minutos, os alunos fizeram as ponderações entre si e, em seguida, a mediadora começou uma outra parte da dinâmica, para verificar se eles alterariam ou não as tarjetas que haviam colado e se concordavam ou não com as tarjetas dos outros princípios colados pelas equipes.

A equipe do princípio de igualdade mudou todas as tarjetas e as demais equipes concordaram, ficando as respostas de acordo com o gabarito da mediadora. A equipe do princípio do respeito também alterou uma das tarjetas, incluindo a tarjeta com a seguinte descrição “as diferenças ligadas à classe, religião, raça ou orientação sexual não podem atrapalhar a participação”. Tal tarjeta, pelo gabarito, está ligada ao princípio da igualdade e, por isso, a mediadora ponderou que a igualdade e o respeito são dois princípios que se complementam, mas que a diferença entre as pessoas não pode atrapalhar a deliberação e que devemos ser tratados igualmente, logo, se tratava de uma descrição sobre o princípio de igualdade.

61 Importante dizer que não realizei observação nessa dinâmica, pois optei por participar da dinâmica do chapéu, que estava ocorrendo paralelamente. Dessa forma, as observações e anotações foram realizadas somente por meio dos áudios gravados e do registro escrito dessa atividade pela equipe do projeto.

Após essa mudança e retirada da descrição, a equipe do princípio “respeito” ficou com apenas uma tarjeta colada corretamente que correspondia ao princípio. Como eles ficaram com as demais tarjetas não utilizadas em mãos, uma pessoa da equipe de apoio interveio na dinâmica e disse aos grupos que eles deveriam verificar tais tarjetas para acrescentar62. Logo em seguida, os alunos apresentaram as duas tarjetas corretas que faltavam para completar o princípio.

Em seguida, foi passado para o princípio da “reciprocidade”. Alguns participantes foram até o quadro alterar uma tarjeta, mas acabaram colocando a mesma que já estava no princípio do respeito. Sendo assim, a mediadora os alertou que estava faltando uma tarjeta correta e, assim, a própria mediadora colocou acrescentou ao quadro, já que o tempo para a atividade estava encerrando.

Após esse momento, a mediadora pediu uma avaliação sobre a dinâmica. Alguns disseram que foi “legal” e uma participante disse que foi bom porque foi possível reverem os princípios que haviam visto no dia anterior. A mediadora perguntou também se a discussão de grupo fez os participantes mudarem de ideia e alguns colaboraram dizendo que sim, pois viram que algumas tarjetas não representavam o princípio.

Nesse segundo momento de uma dinâmica que trata sobre o conteúdo dos princípios nota-se a necessidade e a importância de se repetir os conteúdos. Mesmo que a dinâmica do dia anterior tenha abordado os princípios de uma forma mais construtiva, em que os participantes deveriam construir seus próprios entendimentos, aqui já foi dado a eles insumos para que pudessem avançar um pouco mais na reflexão sobre os significados dessas palavras.

Contudo, vemos que eles não souberam explicar o princípio da reciprocidade, mesmo com todas as tarjetas descritivas em mãos e, também, não compreenderam a diferença entre as descrições sobre igualdade e respeito.

Dessa forma, consideramos que os princípios da deliberação se apresentam como um desafio para a prática da pedagogia deliberativa e que é fundamental se estimule os participantes de forma mais ilustrativa, buscando exemplos e até outras formas de apresentação do conteúdo, como por meio de materiais audiovisuais e temáticas que circulam na esfera pública, mas , principalmente, que sejam próximas à realidade da escola e dos alunos.

Podemos dizer que, em relação à primeira, essa segunda tentativa de ensinar o conteúdo sobre os princípios se deu de uma forma mais tranquila, em que todos tiveram a oportunidade de falar e de serem ouvidos, já que os ruídos e as conversas paralelas estiveram em menor intensidade.

62 Nesse momento, a mediadora chamou a atenção do membro da equipe para que deixassem eles descobrirem sozinhos.

Ademais, é pertinente pontuar que algumas palavras desses princípios causaram dificuldades de entendimento entre os participantes, principalmente os princípios da não- coerção e da reciprocidade. Verifiquei isso não somente nessas duas dinâmicas, mas ao longo dos encontros.