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2 PEDAGOGIA DELIBERATIVA: QUANDO A DELIBERAÇÃO ENCONTRA A

2.2 Teoria deliberativa: definições

A deliberação advém da possibilidade de solucionar problemas sociais e da tomada de decisão de forma discursiva entre os membros da sociedade (HABERMAS, 1995; 1997a; 1997b). Essa forma discursiva se dá por meio de um âmbito comunicativo da política (MAIA, 2008), em que a deliberação é resultado de uma cultura partilhada entre os cidadãos, que buscam valores, como a justiça e o respeito para garantirem as suas igualdades (HABERMAS, 1995).

Chambers (2009) ressalta que a teoria deliberativa é importante para que cidadãos atuem de forma democrática para observar e criticar as instituições, conformando um processo de

accountability, em que os representados podem cobrar o posicionamento público dos seus

representantes, dentro de um sistema político representativo (MAIA, 2006). Dentro desse processo de prestação de contas, Gutmann e Thompson (2004) destacam que a democracia deliberativa é basicamente a necessidade de justificar decisões, tanto por parte de quem as discute, quanto por parte de que as elabora.

Habermas (1997b) traz na concepção de deliberação o papel dos cidadãos não só para a resolução de problemas, mas também para a soberania popular, ao serem também criadores e propositores de direitos. O processo de debate e discussão pública facilita e pode fortalecer essa soberania e, por isso, a ampliação da participação popular e da formação de vontade políticas também são importantes para fortalecer o próprio sistema democrático. É como se a proposta de uma sociedade mais deliberativa colocasse a democracia no centro de uma esfera pública, e não simplesmente no momento de decisões e exercício de poder de escolha no momento do voto (CHAMBERS, 2009).

Maia (2008, p. 28) pondera que “A deliberação nem sempre visa a uma decisão imediata. Refere-se, antes, ao processo de reflexão crítica (...)”, em que tal gesto comunicativo implica num entendimento de um processo democrático comunicativo, que torna legítimo os processos de tomada de decisão política porque foram deliberados; debatidos de forma

consciente e argumentados (MAIA, 2008).

Se um processo de deliberação é legítimo, o processo democrático se torna vantajoso em cinco aspectos que, para Maia (2008), podem impactar social e democraticamente: vantagem educativa, em que os envolvidos no processo de deliberação podem aperfeiçoar os seus conhecimentos; vantagem coletiva, em que melhoram as suas relações de interdependência social e comunitária; vantagem democrática, porque promovem uma participação mais justa e inclusiva dos atores; vantagem racional, em que os participantes buscam e proveem suas próprias informações e seus próprios argumentos; vantagem autônoma, em que a democracia se faz pela vontade e pela necessidade das pessoas e dos grupos (MAIA, 2008).

Para que essas vantagens surjam no processo deliberativo, Maia (2008) diz que é preciso, primeiramente, diferenciar a mera conversação e/ou discussão da deliberação, pois o processo deliberativo leva em consideração algumas condições e princípios gerais que fazem essa diferença. Para Habermas (1997), o processo deliberativo opera por meio do seguinte postulado:

a) As deliberações realizam-se de forma argumentativa. […] b) As deliberações são inclusivas e públicas. […] c) As deliberações são livres de coerções externas. […] d) As deliberações são livres também de coerções internas. (COHEN, 1989 apud HABERMAS, 1997b, p. 29-30)

Para Marques (2009), Habermas está preocupado em garantir, por meio da deliberação, que os resultados das trocas argumentativas tornem as normas, daí resultantes, legítimas. Para a autora, essas trocas são processos discursivos voltados para a resolução de problemas compartilhados entre os cidadãos, baseados na ação comunicativa23. Esses processos comunicativos são baseados em princípios, que tem como núcleo a argumentação livre de constrangimentos, que envolvem o uso prático da razão, voltado para a chegada em um consenso (AVRITZER, 2009).

Maia (2008), porém, pontua que num debate real, os princípios podem sofrer algumas restrições durante o processo deliberativo, pois

(...) os participantes não dispõem de igual status; nem sempre estão preparados para refletir sobre as questões controversas; não se mostram interessados em ouvir atentamente os outros; mentem, chantageiam, ameaçam e frequentemente não estão dispostos a alterar seus próprios pontos de vista diante daqueles apresentados pelos demais. (MAIA, 2008, p. 31)

Essas restrições podem ser relacionadas com o âmbito onde ocorre a deliberação, já que a deliberação não se dá em uma forma única, padronizada; cada lugar onde a deliberação ocorre vai demandar uma forma de realizar a deliberação. Esses ambientes de deliberação compõem

um sistema deliberativo. Mansbridge (2009) diz que a ideia de sistema deliberativo alarga a concepção padrão de deliberação, e que opera mutuamente tanto em esferas formais quanto informais de debate e decisões. A autora diz que esse sistema não é uma relação direta entre as partes que formam o conjunto, no caso, arenas formais e informais de deliberação, mas é um sistema interrelacionado, em que uma parte pode afetar a outra (MANSBRIDGE, 2009).

Esse sistema que se afeta entre as partes, ajuda a entender como os cidadãos se afetam também e contribuem para a circulação de ideias, argumentos, e trocas comunicativas sobre assuntos de seus interesses. Para Mansbridge (2009, p. 208), “Em seu melhor funcionamento, um sistema deliberativo, assim como todos os sistemas de participação democrática, auxilia seus participantes a entenderem melhor a si mesmos e ao contexto no qual se inserem”. Para ela, então, a conversação cotidiana, é uma forma de alargar a concepção formal da deliberação e colabora para que os processos deliberativos ocorram em diversas arenas e lugares, como nas ruas, nos ambientes privados e na mídia.

Neblo e White (2018) analisaram várias interações dentro de diferentes ambientes de deliberação, a partir do modelo de circulação do poder comunicativo de Habermas. Os autores fizeram um adendo ao modelo habermasiano, que consiste em uma porosidade de comunicação entre a sociedade civil e o governo. Os autores verificaram de forma mais detalhada que há sub- ambientes dentro da sociedade civil, nos quais as interações são necessárias para aprimorar o modelo de circulação da comunicação na esfera pública e, logo, as formas de deliberação que se fazem de diferentes modos nesses âmbitos.

Os autores elencaram alguns critérios que são importantes para que os diferentes âmbitos da deliberação se comuniquem. Os âmbitos podem ser compreendidos como a mídia, os cidadãos comuns, partidos e grupos de interesse, mini-públicos24 e os três poderes (legislativo, judiciário e executivo), com os seguintes critérios: o conhecimento que um ambiente deve ter do outro para que haja a interação, a tradução, para que os sites se comuniquem sem distorções, receptividade, para que os ambientes estejam abertos às deliberações uns dos outros e flexibilidade, para tomar ações com as informações que recebem (NEBLO; WHITE, 2018).

A diversidade da comunicação, de linguagens e de pessoas que se encontram em um

24 Em tradução livre, podem ser entendidos como órgãos ou ambientes em que os cidadãos comuns podem deliberar sobre seus anseios sem a intervenção de um grupo de interesse, em que os resultados podem servir como insumos para as elaborações de leis. Do inglês: “(...) mini-publics are bodies that allow citizens to develop their public beliefs and desires in a deliberative setting, which is not typically provided by parties or interest groups. The outputs of mini-publics then often go on to serve as inputs for legislatures” (NEBLO; WHITE, 2018, p. 9).

dado processo deliberativo é um ponto de atenção dentro da teoria, pois é uma questão que confronta diretamente com a natureza normativa da deliberação, como veremos mais adiante. Mas, conforme diz Maia (2008), o caráter normativo e de condições ideias da deliberação nos ajudam a verificar e a analisar processos que podem ser mais ou menos deliberativos por meio dos princípios.

O entendimento dos princípios é importante, então, para compreendermos e diferenciarmos o processo deliberativo de outros processos comunicativos políticos que circulam na esfera pública e que não visam, necessariamente, alguma transformação ou tomada de decisão. Assim, trazemos uma explicação dos princípios gerais para destacar e situar a teoria deliberativa.