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4 COMPARTILHA EM BELÉM: ANÁLISE DAS INTERAÇÕES NA PRÁTICA

4.3 Análises das interações na prática da pedagogia deliberativa

4.3.1 Interações quanto ao formato das dinâmicas

O início da dinâmica busca compreender como se deram as interações quando nos apresentávamos em sala de aula, como se dava essa relação ao convocarmos os participantes e ao explicarmos as regras e instruções dos encontros.

Nossa entrada em campo seguia um roteiro pré-determinado, como já dissemos na seção anterior. Em cada início de atividades na escola, chegávamos na sala de aula e saudávamos a todos. Nossa sequência era sempre falar qual era o nome do encontro, explicar como seria aquele dia de atividades, fazer a frequência, verificar se algum participante havia trazido os termos de consentimento e assentimento, e dividir as equipes, quando necessário. Após isso, se fosse uma dinâmica em que a turma inteira ficava reunida na mesma sala, iniciávamos a explicação em detalhes e começávamos a cronometrar cada etapa da dinâmica. Se fosse em salas separadas, nos dirigíamos com os alunos para os outros ambientes e só então, após acomodados, iniciávamos as explicações.

Nas dinâmicas, havia muitos barulhos ao nosso redor, seja pelas conversas paralelas, ou pela escola em si. Na oficina “o que é deliberação?”, no segundo encontro, as conversas paralelas eram corriqueiras, mesmo enquanto buscávamos explicar como a dinâmica iria ocorrer, sendo muito comum o pedido de silêncio por parte da mediação. Nessa oficina, fizemos um grande círculo com todas as cadeiras e, por ser a primeira dinâmica de fato do projeto, com todos participando ao mesmo tempo, era uma tarefa complexa manter todos atentos à fala da mediadora.

A sala tinha sempre muitos ruídos. O início foi bem conturbado, já que a mediadora tinha um papel central e era a única pessoa a ter que tomar a fala diante de uma turma de 35 participantes. Na primeira tarefa dessa dinâmica, em que os participantes deveriam anotar o que para eles significava a palavra deliberação, as conversas não só paralelas, mas concorrentes, persistiam.

Mas, por outro lado, nas dinâmicas em que a turma foi dividida em equipes e separadas por sala, ficando em grupos menores, o controle do falatório foi mais simples. Na dinâmica de discussão livre, no quinto encontro, por exemplo, em que a turma foi dividida em três grupos, e cada um ficou com uma mediadora responsável, as conversas eram muito pontuais no início das instruções. Tratava-se mais de bate-papos entre os participantes enquanto nós, como equipe, nos organizávamos para iniciar as atividades.

Uma situação especial que aconteceu foi no dia da dinâmica do chapéu, no terceiro encontro. Dividimos as turmas em dois grupos, em que uma permaneceu na sala de aula e a outra foi para a biblioteca. A turma que permaneceu foi organizada em círculo, de modo que todos pudessem se ver. Nessa dinâmica, a mediadora e uma pessoa da equipe de apoio sentaram-se à roda - o que é exceção, tendo em vista que nas demais atividades sentava-se apenas a mediadora. Essa pessoa iria apoiar a mediadora na leitura da matéria jornalística, que seria o tema do debate.

Como essa escola fica em uma grande Avenida de Belém e a sala de aula é em frente a ela, o barulho dos carros e ônibus era constante e chegava a se misturar com as nossas falas, numa espécie de trilha sonora de fundo. Notamos, porém, desde a nossa chegada na sala, que nesse dia o grupo estava mais silencioso que o normal, pois só ouvíamos praticamente o barulho da rua. Esta foi a única situação de silêncio em um início de dinâmica.

Em torno disso, merece ser problematizada essa abordagem no início de cada encontro com os participantes. Nossa entrada em sala de aula e início de atividades pouco parecem com aquilo que Freire (2011) diz sobre a pedagogia emancipatória, que rompe com a construção disciplinar. Nossa postura de atuação em campo consistiu ainda na dualidade educadores- educandos e, mais, pesquisadores-alunos. Essa distinção de papeis pode colocar barreiras a certas formas de dinâmicas, tendo em vista que tal diferença entre posições pode inibir certas participações, ainda mais quando se acrescenta outro ator da equipe de pesquisadores para participar das atividades.

Por outro lado, a pedagogia deliberativa que levamos para a escola rompe, em algum grau e de certa forma, com a visão disciplinar. Os barulhos também podem ser vistos como uma euforia em participar de algo que está totalmente fora da estrutura disciplinar. Nesse aspecto, era muito comum os alunos brincarem em sala de aula pedindo para que fossemos todas às quartas-feiras, no terceiro horário. Depois descobrimos que se tratava da aula de Filosofia. Em uma dessas perguntas, questionei se eles não gostavam da disciplina, ao que muitos disseram que não.

De outro modo, essa dualidade pesquisadores-educandos e a proposta de levar à sala de aula uma pedagogia que não se faz presente na estrutura obrigatória da escola, pode nos caracterizar, ao olhar dos alunos, como pessoas que não têm certa autoridade naquele ambiente, tendo em vista que nele há códigos específicos que são seguidos na pedagogia disciplinar (FREIRE, 2011), como a figura do professor, os horários, as avaliações, o intervalo, etc., dos quais não fazemos parte. Ainda, como se trata de uma atividade não avaliativa, a não

obrigatoriedade também pode contribuir para o desinteresse na participação em certos momentos.

Uma situação que ilustra isso foi quando, ao iniciarmos a dinâmica do cartaz, após dividir a turma em sete equipes, uma das alunas me indagou se já poderia ir embora. Nesse momento eu não estava na mediação, apenas fazendo registros de observação. Respondi a ela que ainda não, pois estávamos seguindo o horário da escola, mas que dentro de 10 minutos as atividades iriam finalizar. A participante não respondeu verbalmente, mas sinalizou com o corpo: revirou os olhos diante da informação que eu havia dado a ela.

Certamente, tal diferença entre papeis em uma sala de aula e estar presente como pesquisadores em um ambiente, que não é o nosso de costume, causa impacto nas formas de interações. Em outra situação, já no último dia de encontro na escola, ao entrar em sala, perguntei aos alunos como haviam passado o final de semana, em uma estratégia de “quebrar o gelo” antes de iniciarmos as atividades de fato. Apenas um ou dois participantes responderam e os demais continuaram conversando.

Outra situação que remete a essa diferença entre pesquisadores-alunos foi o primeiro encontro na escola. Lembro que foi o mais tenso para mim. Não tinha ideia das pessoas com as quais iríamos falar. Além disso, minha preocupação com as atividades antes de ir à escola contribuíam para aumentar o sentimento de querer fazer tudo funcionar. Até por isso, chegamos com bastante antecedência na escola para evitar qualquer imprevisto.

Estávamos em grande número neste dia, aproximadamente 12 pessoas de nossa equipe para nos apresentarmos aos participantes. Decidimos que três de nós apresentaríamos a proposta do projeto aos alunos e que o restante da equipe ficaria na sala, mas sem intervir, apenas estando lá para se apresentar aos alunos, para que eles gravassem os nossos rostos e começassem a se familiarizar e, também, dando apoio necessário para a atividade acontecer (figura 13).

Figura 13 – Mediadoras apresentando o projeto e membros da equipe atrás

Desde o início, dispusemos a sala de aula em círculo para que todos se olhassem e se conhecessem. Nosso primeiro impacto ao apresentar o projeto foi o barulho na sala. Em poucos minutos, nos olhávamos e nos perguntávamos como aqueles alunos conseguiam estudar e prestar atenção nas aulas diante de tantos sons de buzinas de carros e de motor de ônibus acelerando (há um grande ponto de ônibus bem em frente à escola, assim como um shopping).

Mead (1937) nos lembra que a dupla afetação é exatamente o momento em que nossas ações afetam os outros, assim como a nós mesmos. Os barulhos com os quais nos incomodamos, as falas insistentes dos alunos junto com as nossas, são mesmo instrumentos que afetam e configuram esse ambiente, da mesma forma como é esse ambiente ruidoso que configura e afeta as interações barulhentas entre os alunos.

Nesse sentido, além da diferença entre papéis, há de se levar em consideração, e é prudente destacar, a relevância do ambiente escolar para que essas situações se desenrolem, como se desenrolaram. Sabemos da precariedade estrutural das escolas públicas no Brasil e de como isso colabora para a debilidade do ensino. Dito de outra forma, o ambiente no qual os alunos, com quem lidamos durante as atividades do projeto, estudam está longe de ser um espaço que proporcione concentração e tranquilidade. Os ruídos que rondam, os zumbidos persistentes, em nada contribuem para um ambiente equilibrado e harmônico, pronto para ser desfrutado em sua plenitude; é um espaço que precisa ser sempre conquistado.

A conquista da atenção para as instruções das dinâmicas, nesse ambiente, não se dá em torno somente dos barulhos ou do silêncio, da estrutura física, ou da diferença entre papéis que atuamos em sala de aula. Se dá também em torno na forma como abordamos o que temos a dizer naquele dia, e do modo como levamos as dinâmicas, que implica também uma forma de interação. Sobre isso, veremos a seguir.