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É corrente a opinião que Bernardino Machado teve um especial apreço

No documento Pátria e Liberdade (páginas 44-47)

político pelos municípios – chegou mesmo a invocar, publicamente, o nome de Jacinto Nunes, como seu “mestre” nesta matéria – porque considerava as “fran‑ quias locais” e o seu exercício, mais ou menos imediato, pelos cidadãos, como condição essencial de um regime, verdadeiramente, liberal (no sentido moral, antes do político), fosse ele uma Monarquia ou uma República. Esta auréola deve‑ ‑se, em minha opinião, sobretudo a três ordens de factores: ter sido o dirigente republicano que, publicamente, de modo mais intenso e acutilante, denunciou e atacou as políticas de engrandecimento do poder real dos últimos governos monárquicos (e consequente cerceamento das liberdades públicas e enfraqueci‑ mento do poder do Parlamento, instituição representativa da vontade popular); ter defendido que o município, além de uma unidade administrativa, era “uma pessoa moral” – que depois da família era o elemento fundamental da pátria – e uma “organização essencialmente democrática” que, num regime político, era uma “pequena república dentro da República” (como dissera Tocqueville acerca das comunas norte ‑americanas) e o baluarte das conquistas liberais (como também mostrava a própria história)1; e, por fim, ter apelado, recorrentemente, antes e depois, da revolução do 5 de Outubro de 1910, para a permanente participação política das comissões paroquiais republicanas, como garante da democraticidade da República e da realização das aspirações populares.

Estas atitudes e convicções de Bernardino Machado são suficientes para o identificarmos como um prosélito do municipalismo. Mas será prudente introdu‑ zirmos alguns matizes nesta qualificação e acrescentarmos alguns esclarecimentos.

* Professor Catedrático Ap. da Universidade do Minho.

A descentralização e o municipalismo já tinham sido, muito antes de Bernar‑ dino entrar na vida política, objecto de amplas controvérsias nas Cortes, sobretudo, por ocasião das reformas administrativas. Como dizia Luciano de Castro, em 1867, desde os anos 40, a descentralização convertera ‑se numa “palavra mágica” e numa “panaceia universal”. Para isso, muito tinham contribuído os trabalhos, entre outros, de Victor Cousin, Silvestre Pinheiro Ferreira, Prevost ‑Paradol, Girardin, Vivien ‑Raudot, Molinari, Odillon ‑Barrot, Jules Simon, Édouard Laboulaye (para quem “a comuna é a escola da liberdade”2) e, mais que todos, Alexis de Tocque‑ ville que em 1835, na Démocratie en Amérique, fazia a mais cabal demonstração da conexão existente entre liberalismo e descentralização. O que fora um estudo de caso – a que podemos acrescentar a sua última obra L´Ancien Régime et la

Révolution (um dos ataques mais vigorosos contra a centralização) – tornara ‑se

uma evidência racional. Mas já em 1832 – diz Júlio de Vilhena – José Xavier Mouzinho da Silveira tomara várias medidas para descentralizar a administração, embora, passado algum tempo, tenha reconhecido a sua impossibilidade prática3; por sua vez, Passos Manuel, em conformidade com o código administrativo de 1836 (cujas bases foram lançadas por Rodrigo da Fonseca) ordenou que os administradores de concelho fossem eleitos por sufrágio local, mas, rapidamente, verificou que a medida se revelou impraticável4. Posteriormente, vários gover‑ nos tomaram diversas medidas legislativas quer para reformar os princípios da administração quer para tratar da divisão administrativa. E todas elas, em teoria, aceitavam as vantagens da descentralização sobre as da centralização. O debate das reformas administrativas não era, pois, desde a década de 40, o debate em volta do binómio centralização versus descentralização. O problema era outro:

como fazer a descentralização. Recorrendo a uma classificação de Júlio de Vilhena,

poderíamos dividir as inúmeras intervenções parlamentares que se fizeram sobre esta questão, ao longo de várias décadas, em duas atitudes: uma metafísica e a outra, positiva5; a primeira, decorrente duma reflexão teórica, do ensinamento dos livros e do estudo comparado com as reformas feitas além ‑fronteiras (espe‑ cialmente com a legislação administrativa da Bélgica, França e Itália), reconhecia a legitimidade das extrapolações e generalizações e a capacidade da teoria cativar

2 Édouard de Laboulaye, L´État et ses limites (1863), 5ème édition, Paris, Charpentier et Cie, Libraires ‑Éditeurs, 1871,

p. 93.

3 Júlio de Vilhena, in acta nº 29, da Câmara dos Senhores Deputados, sessão de 19.II.1878, p. 406. 4 Apud ibidem.

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e explicar, cabalmente, a realidade concreta; a atitude positiva, ainda que conside‑ rando úteis os contributos da abordagem metafísica, dava precedência, no debate e solução dos problemas de uma reforma administrativa, ao conhecimento da realidade concreta – considerada do ponto de vista histórico, geo ‑humano e étnico – sobre os princípios abstractos em que se pretendia basear. As dificuldades em conciliar estes dois pontos de vista explicam, em parte, o centralismo do código administrativo de 1842 e o carácter descentralizador da reforma administrativa de 1867 (salvaguarda das franquias locais e devolução, aos cidadãos, da livre gerência dos seus interesses), cujo relator foi Rodrigues Sampaio. Em ambos os pontos de vista lá estão os mesmos problemas: a divisão territorial; a dimensão demográfica dos novos municípios; as suas atribuições e recursos; as autoridades administrativas e os seus poderes (de modo a que os direitos e liberdades dos cidadãos não sejam diminuídos); as relações das corporações locais eleitas com as autoridades administrativas e distritais e com a tutela do poder central, etc.

Pelo que acabamos de dizer, não me parece crível que Bernardino Machado – que iniciara a sua carreira política como membro da Junta Central de Coimbra ignorasse estes problemas, quando entrou para a vida política, como deputado, em 1882; inclusive, ainda presenciará – embora sem intervir – no amplo debate, teórico e prático, que pouco tempo depois terá lugar na Câmara dos Deputados, sobre a reforma administrativa do município de Lisboa. Todavia, Bernardino, ao longo da sua carreira política, quer durante a Monarquia quer durante o tempo da propaganda republicana e, depois, durante a República, não participou, acti‑ vamente, nos debates parlamentares (ou mesmo fora do Parlamento) em volta do municipalismo, nem mesmo quando esta questão foi amplamente debatida, na Assembleia Constituinte de 1911, quando do debate do projecto constitucional. Aparentemente, isto é surpreendente, porque quando se realiza o I Congresso Nacional dos Municípios, Bernardino Machado é convidado a presidi ‑lo e a fazer a intervenção de abertura; e só não a fez porque adoecera. A este convite – devido, certamente, ao facto de presidir ao Directório do P.R.P., cujo programa político defendia o município como instituição fundamental da futura reforma adminis‑ trativa da República – não seria estranho o conhecimento público do seu combate acutilante, demolidor e sem tréguas, à política de engrandecimento do poder real, ao centralismo e, mais recentemente, ao franquismo. Mas da defesa da descentralização ao municipalismo vai uma distância grande. Note ‑se, por exemplo, que, tanto Jacinto Nunes como Bernardino Machado, eram defensores da descentralização; mas esta levou Jacinto Nunes a um municipalismo que estava longe, na sua radicalidade,

daquele que defendeu Bernardino Machado, pois enquanto o primeiro se deteve na re ‑forma administrativa, da qual esperava, como consequências, mudanças de

fundo, o segundo apelava à descentralização para chegar a mudanças de fundo – a pessoa e o cidadão – que mudassem, consequentemente, as instituições, a começar

pelos municípios, dando a estes, direitos, liberdades e garantias, que lhe tinham sido usurpados, ao longo dos séculos, pelo poder central. Eu diria, que Jacinto Nunes tem uma concepção institucional do municipalismo, enquanto que Bernardino tem dele uma concepção personalista (no sentido moderno que a este conceito é dado por Mounier). A primeira concepção arrasta o debate da descentralização e do municipalismo, sobretudo, para o campo financeiro, económico, administrativo e jurídico ‑político; a segunda concepção centra ‑o no campo da moralidade e da cidadania. Mas as fronteiras entre estes dois campos, quando nos aproximamos, de perto, dos seus problemas, tornam ‑se ténuas, o que ajuda a explicar não só porque é que Bernardino Machado, um tenaz defensor da descentralização, foi precipitado, pela opinião pública, no campo “municipalista” (na acepção institucional) mas também porque, nesta acepção, não o encontramos nas batalhas parlamentares.

Estas considerações exigem, pois, um esclarecimento mais cabal do que foi o “municipalismo” de Bernardino Machado sob pena de, folheando os seus escritos, se concluir, prima facie, que, embora defensor da descentralização, foi reservado quanto ao municipalismo (o que não é verdade) pela simples razão de que quase

não falou dele. O que também mostra – falando num sentido mais geral – que

as palavras e as coisas são, radicalmente, heterogéneas, e que é na sua recíproca

intencionalidade fenomenológica (glosando Husserl) e não na sua correspondente verificabilidade, que o historiador deve procurar o sentido de umas e outras.

No documento Pátria e Liberdade (páginas 44-47)