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Joaquim de Carvalho acompanha Ortega y Gasset na defesa da vida nobre

No documento Pátria e Liberdade (páginas 126-130)

Pátria E LiBErdadE Criadora no PEnsaMEnto FiLosóFiCo

4. Joaquim de Carvalho acompanha Ortega y Gasset na defesa da vida nobre

Vimos no item anterior que Joaquim de Carvalho fez uma forte defesa da liberdade. Para ele, sociedades livres não caminhavam identicamente para a

formação de uma massa homogênea, como ocorreu na Alemanha nazista ou na Itália fascista. É o que se conclui do que Carvalho escreveu no item III de Sobre

a ideia de Estado total. As diferenças em relação à tese de Ortega y Gasset não o

impede de adotar as teses orteguianas expostas no capítulo VII de La rebelion de

las massas. Ele partilha com o espanhol a ideia de que as exigências íntimas do

espírito nobre é o motor da história. Ortega y Gasset explicou este seu enten‑ dimento de uma forma que pode suscitar incompreensões, mas é exatamente o que ele quer dizer quando afirma que “sustenta uma interpretação da história radicalmente aristocrática” (p. 150). Ortega y Gasset entende que é moral o ideal que orienta as sociedades e atribui às minorias éticas a tarefa de aprimorar a vida das sociedades. Em La situación política, Ortega y Gasset fala do liberalismo como um sistema capaz, como resumimos em Totalitarismo e ética em Ortega y Gasset, de “estimular o esforço pessoal e ajudar a nação a superar o que de desonroso existe em seu passado” (p. 111). O que significa: “um liberalismo que estimula a prática das virtudes” (idem, p. 111).

A virtude depende de escolhas éticas que afastam o sujeito da mediocridade das massas e o inserem na minoria seleta que vive nobremente, conforme expli‑ camos em A problemática ética em El Espectador de Ortega y Gasset (2010). Ali se mostra que “a escolha ética obriga integralmente” (p. 120). A escolha ética é própria da vida nobre, que significa uma vida própria, fiel a si. No artigo

O sentido da perspectiva no El Espectador de Ortega y Gasset explica ‑se que vida

nobre é “ser fiel ao autêntico eu, o que é uma tarefa difícil” (p. 409). É o que esclarece porque para Ortega y Gasset o homem que não quer se empenhar se desmoraliza, torna ‑se massa e passa a procurar fora de si um motivo para viver. A esta visão geral e comum do processo histórico segue ‑se o entendimento de Joaquim de Carvalho de que os partidos políticos ganharam nova configuração no início do século passado e se aproximaram de uma organização de massa. Ele explica em Sobre a ideia de Estado total: “Em rigor, não são partidos, são massas; daí a um tempo, a sua força temível e a sua fraqueza vulnerável” (p. 288). No entanto, esta não era uma condição generalizada de todo o ocidente e podemos “subir o outeiro donde descobriremos, finalmente, a paisagem primaveril sem o tigre ao fundo” (idem, p. 288). O fato descrito por Ortega y Gasset podia ser observado nos partidos ideologicamente extremistas. Porém, mesmo neles, isto é: “o da reação ultraburguesa ou o da ofensiva marxista, cujas ideologias e táticas partidárias convertem o alistamento em simples acréscimo numérico” (idem, p. 288), não se pode desconsiderar “que o caráter de resolução pessoal do eu

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reveste a saída ou entrada num partido” (idem, p. 288). Assim mesmo reconhe‑ cendo a transformação na organização partidária, a conversão de partidos em massa é fenômeno que Carvalho diz existir apenas em situações específicas como o caso do nacional ‑socialismo alemão.

O aspecto mais marcante da aproximação com Ortega y Gasset consiste no entendimento de que a vida nobre contém a resposta para as dificuldades de cada ciclo histórico. Nobreza definida pela exigência íntima de buscar os aspectos mais elevados da vida civilizada. Diz Ortega y Gasset no seu livro: “Isto é a vida como disciplina – a vida nobre. A nobreza se define pela exigência, pelas obrigações e não pelos direitos” (p. 182). E Carvalho cuida logo de esclarecer que a nobreza a que se refere é uma atitude de caráter, um comportamento ético. Não se trata de nobreza enquanto comportamento de classe que é fechada, como explica: “o acesso à nobreza não depende do indivíduo e a saída da classe lhe é vedada” (p. 289). E Carvalho continua sua meditação na direção da nobreza de caráter, mais que de classe, pois ela se expressa na dedicação e esforço, trabalho e dis‑ ciplina, cuidado com os bens, qualidades da nova fidalguia desejada no século XVIII pelo Marquês de Pombal. As atitudes desejadas pelo Primeiro ‑ministro expressavam o sentimento burguês.

Outro ponto comum é o entendimento de ambos que estimular as minorias a assumir a liderança da sociedade não equivalia a dar aos filósofos a condução da política. Ortega y Gasset trata o assunto em Mirabeau, o político sobre o qual comentamos (2002): “Ali ele traça a distância que há entre o intelectual e o polí‑ tico, sendo o segundo mais capaz de ações úteis e suficientes na coisa pública” (p. 417). Joaquim de Carvalho praticamente repete Ortega y Gasset ao dizer em

Com a razão nas mãos que os metafísicos não são políticos e muito menos que

saibam governar: “isto nunca, e jamais se pode perdoar a Platão ter defendido ideia tão esquisita, o governo dos filósofos seria uma calamidade” (p. 271). As características do político, que são tão diversas dos filósofos, foram comentadas em Reflexão sobre a universidade texto onde Carvalho escreve que o político precisa possuir “uma visão clara da realidade dos fatos e o cálculo prospectivo da sua incursão pelo futuro” (p. 291), posição idêntica à defendida por Ortega y Gasset em Mirabeau, o político.

Este comportamento de notável dedicação às boas coisas da civilização era observado numa minoria que, para Ortega y Gasset, não era uma classe, mas um seleto grupo de pessoas que se dedica a algo. Ele explicou o assunto como se segue: “a divisão da sociedade em massas e minorias excelentes não é, portanto,

uma divisão de classes sociais” (p. 146). Este aspecto da meditação orteguiana foi assim comentado por Lopes de la Vieja no artigo Democracia y masas em

Ortega (2000): “As massas não são classes sociais, mas um fato psicológico, o

homem massa. Seu império significava para Ortega y Gasset nada menos que a ascensão do mostrengo social” (p. 139). E Ortega y Gasset entendia, afirmou ‑o em La rebelión de las masas que a minoria, durante o século XIX, estava bem presente na “velha democracia que vivia contemplada por uma abundante dose de liberalismo e de entusiasmo pela lei” (p. 147/8). O que parece a Ortega y Gasset é que esta atitude se perdeu com a formação das multidões.

O mesmo papel reformador da sociedade Joaquim de Carvalho atribui à minoria culta e a sua atuação qualificada no seio da sociedade, como se nota no texto a seguir:

Qualquer sociedade, e em cada ciclo da sua jornada, carece da existência de um escol. Pode pensar ‑se, até sem torpeza mental, que a civilização é um produto destilado pela escol – isto é, um círculo reduzido de indivíduos que, libertos da maldição bíblica de ganharem a vida com o suor do seu rosto, tem simultaneamente a disposição de ânimo e o tempo livre para cultivarem coisas imateriais e impalpáveis – a justiça, a bondade, a verdade e a beleza, sem as quais a sociedade tem as ventas e o fartum dos retábulos (p. 289).

A maneira de Ortega y Gasset tratar o talento das minorias era mais alargada que a forma de Joaquim de Carvalho, ela contemplava os melhores de cada ativi‑ dade, incluindo os melhores padeiros, cozinheiros, carpinteiros, etc., atitude cuja raiz era a vocação íntima de cada homem. De todos que pertencem às minorias se exige a dedicação completa à tarefa, o compromisso com o aperfeiçoamento da atividade e a entrega apaixonada ao que faz. O que há de próximo entre os dois pensadores é a compreensão aristocrática da história e o fato de destacarem o burguês como o exemplo da minoria nas sociedades livres do XIX. Diz Joaquim de Carvalho que o frade na Idade Média, a dama e os fidalgos na modernidade são os antecessores dos burgueses do século XIX, o que nas palavras de Carva‑ lho assim se expressa: “o burguês da alta roda, no século XIX, quis ser e foi o herdeiro da gloriosa ascendência” (p. 290). Eis quem integra a minoria criadora que alavancou a cultura ocidental dos tempos medievais para cá.

No entendimento de Joaquim de Carvalho eis as minorias que aprimoraram a civilização e que antecedem na liderança social ao papel social do burguês no século XIX que “como o escravo ao grego e ao romano, a cerca ao frade e a terra ao nobre, puderam ser senhor do tempo e desperdiçá ‑lo em benefício da

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civilização” (p. 290). Sobre o trabalho de liderança dos monges na Idade Média, Joaquim de Carvalho cita Nogueira em Formação da ideologia republicana lem‑ brando que os religiosos “fundavam o seu conventinho, quase sem socorros, só à força de diligência, de duro trabalho, e muita e insignificante persuasão” (p. 219). E para o preparo da minoria destaca em Instituições de cultura a importância da Universidade portuguesa desde a ação política de D. Manuel que esperava que ela “se tornasse similar das universidades da Cristandade” (p. 12).

Portanto, o liberalismo criou uma minoria, diversa das anteriores, mas com o mesmo papel renovador e dinamizador da vida social ajustada às necessidades históricas do seu tempo.

No documento Pátria e Liberdade (páginas 126-130)