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Joaquim de Carvalho e a história para além da razão

No documento Pátria e Liberdade (páginas 130-132)

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5. Joaquim de Carvalho e a história para além da razão

No livro História como sistema, Ortega y Gasset propusera como resposta para a pergunta: o que é a vida do homem? a sua condição histórica. O esforço de elucidação da existência humana descobre a história como realidade que a esclarece. É este entendimento que leva o pensador a dizer, no texto seguinte, que o homem não tem natureza, mas história, ou melhor, que a natureza do homem é a sua historicidade:

E, pela primeira vez, o homem se vê obrigado a se ocupar do seu passado, não por curiosidade, nem por encontrar exemplos normativos, senão porque não lhe resta outra coisa a fazer. Por isto, esta hora presente constitui a ocasião para que a história se instaure como razão histórica (p. 49).

Trata ‑se de uma tentativa de ir além das sugestões do idealismo alemão de Georg W. F. Hegel e das leituras cristãs do tempo, já que a razão histórica de Ortega y Gasset não é uma razão que de fora e transcendente se realize na história ou oriente os acontecimentos, mas é uma razão que se mostra mais ampla e que transcendente as teorias que o homem elabora para explicar o curso da história e compreender seus movimentos.

Na obra História como sistema, Ortega y Gasset defende a tese de que a razão histórica é um conceito rigoroso, embora diverso da razão matemática. E é diferente não porque faz concessão ao irracionalismo, mas porque é mais exigente e rigoroso que ele. Os motivos estão enunciados no texto citado a seguir:

A Física renuncia estender aquilo do que ela fala. Ainda mais, desta ascética renúncia que faz seu método formal e chega, em virtude disso, a dar ao termo entender um sentido paradoxo do qual Sócrates já protestava (idem, p. 50).

E completa seu pensamento explicando que razão histórica não procede como a razão empírica nada aceitando como dado pura e simplesmente. É que ela:

Não acredita esclarecer os fenômenos humanos reduzindo ‑os a um repertório de instintos e faculdades – que seriam, efetivamente, fatos brutos, como o choque e a atração – senão que mostra o que o homem faz com os instintos e faculdades (…), nada mais que ideias e interpretações que o homem tem fabricado em certa conjuntura do seu viver (idem, p. 50).

De modo diverso de Ortega y Gasset, Joaquim de Carvalho conclui que os acontecimentos históricos não sugerem uma razão histórica, porque na história expressam ‑se as mais vivas contradições. Mesmo quando permanecemos nas limitações de uma razão que se pauta na vida não conseguimos expressar os movimentos da história. Toda tentativa de identificar nexos leva a fracassos por conta da maior amplitude da vida em relação ao pensamento. As contra‑ dições dos personagens expressam a própria irracionalidade do sujeito porque o homem faz frequentemente o que não espera e executa o contrário do que planeja. É esta a lição maior que o historiador descobre quando mergulha nos personagens, quando se aproxima do homem. Ao estudar a vida e obra do Primeiro Ministro de Dom José I no texto Pombal ou a contradição na política, Carvalho observa:

Não é por acaso em tantas e tão diversas contradições que se edifica a glória de Pombal? A afirmativa é triste para o pobre espírito humano quando faz da ausência de contradição a marca da dignidade intelectual, mas quando as auscultamos ouvimos claramente a gar‑ galhada expansiva da vida, que não se deixou aprisionar pela mão e pela mente do férreo governante (idem, p. 89).

Chega ‑se a esta conclusão examinando a atuação do homem não revela juízo equânime. É o que Carvalho procura indicar quando lista as incoerências e contradições do Marquês:

Déspota, lançou a semente da igualdade perante a lei; autoritário, apelou pela primeira vez em Portugal para a opinião pública, que nasceu precisamente sob o seu consulado; católico ‑romano, humilhou a Santa Sé, e quis a autonomia religiosa da nação, com a Igreja Lusitana; respeitador das ordens religiosas, expulsou os jesuítas e persegui ‑os tão

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implacavelmente que tudo quando posteriormente se disse contra a Companhia de Jesus foi dito apenas com palavras diversas; hostil aos judeus acabou com a infamante distinção de cristãos novos e cristãos velhos; desprezador dos direitos individuais, foi o emancipador dos escravos índios; estrangeirado na mente e nos modelos, realiza uma obra, discutível aliás, de independência econômica da nação, amparando o comércio, a agricultura, a navegação e criando indústrias novas; sedento de honrarias e com preconceitos contra nobreza, honrou a atividade comercial, fundando a aula de comércio, a primeira que houve na Europa; confiante nas luzes da razão natural, transformou a Inquisição em tribunal político; verdadeiro criador da instrução pública, e reformador da Universidade, que arrancou ex ‑stercore, policiou o pensamento com a Mesa Censora, pela qual se proscreveram obras filosóficas e literárias, como a Nova Heloísa, de Rousseau e os contos de Lafontaine; literato, que não cientista, se se lhe podem atribuir estes predicados, deu o primado da cultura às ciências, que não às letras, e ofensivamente orgulhoso, procurou o saber de homens como Frei Manuel do Cenáculo e António Pereira de Figueiredo (idem, p. 89).

Pombal pretendeu, observa Carvalho, levar adiante o ideal iluminista nutrindo “a convicção da barbaridade do passado, a confiança na razão edificadora e a certeza de que só ela instaura o reinado da paz e prosperidade definitiva” (p. 88). No entanto, sua atuação como Ministro do Rei não era expressão coerente deste propósito e reunia aspectos da tradição lusitana em viva oposição ao grosso das teses iluministas. Assim, é a vida que se expressa no tempo, algo tão grande e sublime que os esforços de interpretação não a elucidam completamente. As contradições dos personagens e a incoerência dos acontecimentos apenas indicam a enorme complexidade dos fatos históricos.

No documento Pátria e Liberdade (páginas 130-132)