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Considerações iniciais

No documento Pátria e Liberdade (páginas 118-120)

Pátria E LiBErdadE Criadora no PEnsaMEnto FiLosóFiCo

1. Considerações iniciais

Os estudos de Joaquim de Carvalho sobre política encontram ‑se, principal‑ mente, no volume VI das suas Obras Completas editadas pela Fundação Calouste Gulbenkian em oito grossos volumes. No sexto volume, que estampa trabalhos elaborados entre 1930 e 1957, estão dois textos especialmente importantes sobre a história política de Portugal intitulados: A corrente regeneradora (séc. XIX), elaborado em quatro capítulos e A formação da ideologia republicana (1820‑ ‑1880), com três capítulos. O principal de suas reflexões políticas em defesa da liberdade está, contudo, em três pequenos ensaios também no mesmo volume intitulados: Liberalismo e democracia ou glossa de um juízo de Herculano, Com a

razão nas mãos e Sobre a ideia de Estado total. Todos eles são fundamentais para

o entendimento de suas posições liberais e no último consta o essencial das crí‑ ticas que elabora a compreensão orteguiana de massas. Sobre a ideia de Estado

total foi escrito pouco depois da publicação de La rebelion de las masas (1930).

O texto foi publicado no Jornal Liberal, de Lisboa, na edição de maio/junho de 1933 em meio às discussões sobre o futuro da liberdade. Vamos tomá ‑lo como contraponto de La rebelion de las masas de Ortega y Gasset porque sua temática corresponde a um diálogo temático com o pensador espanhol, embora Carvalho não tenha se referido diretamente a Ortega y Gasset. Devemos lembrar, ainda, o artigo Pombal ou a contradição na política e o prefácio que escreveu para o

Manifesto do Reino de Portugal, ambos no volume oitavo nos quais surge a questão

da vida como manifestação maior que a racionalidade.

Os últimos estudos mencionados no parágrafo anterior são importantes para a compreensão do fenômeno político como expressão da vida segundo a visão fenomenológica elaborada por Edmund Husserl1. É o método fenomenológico que inspira a vasta produção acadêmica do professor coimbrão, como indicamos nos dois primeiros capítulos do livro História da Filosofia e Tradições Culturais:

um diálogo com Joaquim de Carvalho, nº 127 da Coleção Filosofia, da Edipucrs.

No ensaio Com a razão nas mãos ele resume seu procedimento metodológico afirmando que é um trabalho da consciência construir certezas nas quais possa confiar. Ele assim o diz: “há uma única certeza, a da consciência, uma única força, a da confiança em si” (p. 263).

A explicação orteguiana para o surgimento do Estado totalitário no século passado, especialmente o nazi ‑fascismo e o socialismo soviético, estava, em última instancia, sustentada no surgimento da sociedade de massas, que, para o filósofo espanhol, ganhava força com as grandes multidões que ocuparam os espaços públicos na Europa a partir do final do século XIX e início do século XX e daí se espalhou por todo o ocidente. Embora o livro tenha sido publicado em 1930, pelo menos uma década antes Ortega y Gasset já publicava conferências, artigos e livros sobre o tema e defendia a tese de que as massas dominavam a vida do ocidente. Destaque ‑se por serem mencionados pelo filósofo na primeira página de seu livro La rebelión de las masas: o artigo Massas, de 1927, as conferências feitas em Buenos Aires na Associación de amigos del arte, de 1928 e o livro España

Invertebrada, escrito no início da década de 20 (1921). Ortega y Gasset entende

que o fenômeno das massas se generaliza para todo o ocidente de forma mais ou menos igual, embora se expresse mais claramente nas sociedades com menor tradição de liberdade.

1 Em O homem e a filosofia, pequenas meditações sobre a existência e a cultura fizemos uma análise da questão de como

o mundo surge na consciência. Dissemos que o propósito de Edmund Husserl foi de “compreender o mundo como fenômeno, isto é, mostrar como ele se apresentava à consciência” (p. 30). De modo resumido pode ‑se dizer que o filósofo alemão desenvolveu um método de redução eidética para chegar a verdades confiáveis ainda que não com‑ pletas. Ele procedeu assim porque, desde Kant, a Filosofia não mais entende que o significado das coisas origine ‑se nelas próprias, isto é, redução eidética é uma espécie de selo de garantia que atesta o que as coisas são. Para Husserl, esta relação com o mundo provoca uma modificação no modo de ser do homem. É essa redução que torna possível captar o mundo como fenômeno. Reduzir significa, na fenomenologia, entender o fato na consciência, isto é, aquém do real em si mesmo. Husserl reconhece três formas de redução que provocam alteração no eu: reflexão ou redução psicológica, por variação eidética ou redução à essência que é a referência às essências a partir da intuição sensível e

êpoché, isto é, o procedimento pelo qual se dá a suspensão dos pensamentos e atividades no mundo. Por este processo

de redução fica estabelecido um elemento de ligação entre a consciência e o que está a volta dela. A redução fenome‑ nológica é o processo pelo qual um objeto ou vivência chega a consciência e confere sentido. O filósofo denomina constituição a ação da consciência pela qual um objeto ou vivência torna ‑se consciente e adquire significado. O ato de dar sentido Husserl denomina doação. Pela doação se conjuga passividade e atividade na consciência.

118 Pátria E LiBErdadE JoaQuiM dE CarVaLho: a CrítiCa À VisÃo ortEGuiana dE Massa E a dEFEsa da LiBErdadE 119

Joaquim de Carvalho contrapõe que o fenômeno das massas somente se manifesta, da forma como Ortega y Gasset o descreve, nos estados totalitários e autoritários, especialmente no nazi ‑fascismo e socialismo soviético. As sociedades livres, que os dois pensadores tomam como preferíveis, tinham para Carvalho elementos seguros para minimizar o comportamento de massa presente nas grandes multidões que povoavam o espaço público naquele momento. Fazer esta distinção parece ‑lhe necessário e mostra sua confiança na liberdade como esteio da vida social e política.

Este trabalho parte da análise orteguiana da sociedade de massa. Em seguida apresenta a crítica que Joaquim de Carvalho faz à essa interpretação, esclarece o que Joaquim de Carvalho considera a parte virtuosa da interpretação orteguiana e analisa o fenômeno político sob inspiração da liberdade. As posições de Joaquim de Carvalho são mais que uma defesa, elas expressam confiança no futuro da liberdade num momento em que os fatos pareciam apontar na direção oposta.

No documento Pátria e Liberdade (páginas 118-120)