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Tempo de crise e sociedade de massa

No documento Pátria e Liberdade (páginas 120-123)

Pátria E LiBErdadE Criadora no PEnsaMEnto FiLosóFiCo

2. Tempo de crise e sociedade de massa

O século XX chegou e com ele o sentimento de que a vida no ocidente pas‑ sava por mudanças profundas. Mudanças na sociedade produzem a sensação de crise quando no espaço social não há elementos que permitam clara compreensão do que ocorre e não fornece elementos que possam ser usados na solução das dificuldades. Portanto, o ocidente estava em crise na segunda década do século. A esperança criada, no século anterior, no progresso permanente da humanidade e na paz contínua entre os povos foi desfeita com a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Soviética. As perdas trazidas pelos dois conflitos foram enormes e elas não foram apenas materiais, perderam ‑se crenças e amores, tudo com dor. Como escrevemos em O século XX em El Espectador de Ortega e Gasset: a crise

como desvio moral: “a percepção de que havia um quotidiano em crise tornou ‑se

comum entre os pensadores do século XX” (p. 14).

O impacto da crise no modo de pensar foi tema de vários filósofos, mas foi Edmund Husserl quem primeiro traduziu, em toda sua extensão, o drama representado pela perda da confiança, não propriamente na ciência, mas no modelo de cientificidade e no papel desempenhado pelas ciências humanas. O problema foi tratado em A crise da humanidade européia e a Filosofia. Ali o filósofo afirmou (1996):

Se, pois se quiser tornar possível, para os fenômenos científico ‑espirituais, uma expli‑ cação realmente exata e, em conseqüência, uma práxis científica tão abrangente como na esfera da natureza, então os homens da ciência do espírito não deveriam só considerar o espírito, mas retornar ao suporte material e elaborar explicações por meio da física e da química exatas. Mas tal intento fracassa diante da complicação da necessária investigação psicofísica exata, já em vista do homem individual e mais ainda com respeito às grandes comunidades históricas (p. 61)2.

Os anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial foram duros com a queda da bolsa em 29 e o empobrecimento mundial que se seguiu, resultados da redução em 40% da atividade econômica e em 60% do comércio mundial. O resultado da crise foi sintetizado por Roger Garaudy em Perspectivas do homem (1966): “Vidas desperdiçadas. Vidas sem objetivo. As tragédias de um mundo em impasse” (p. 6).

Parte da sociedade europeia viveu a crise da primeira metade do século atordoada pela desconfiança nas instituições políticas liberais e caminhou, poli‑ ticamente, para modelos autoritários de gestão pública. O fascismo italiano, o nazismo alemão e o socialismo soviético foram as faces mais visíveis das mudanças políticas, implantando a violência, o terror e levando à Segunda Guerra Mun‑ dial que veio dez anos depois da crise de 29. Não foram os exemplos citados as únicas experiências de Estado forte. A Espanha de Franco e quase toda América Latina viveu a experiência dos governos antiliberais e, na última, os governos fortes se estenderam até o final do século passado. Esses sistemas difundiram a desconfiança no liberalismo e a rejeição da competição e esforço. Joaquim de Carvalho afirmou que não fazia sentido este tipo de crítica e defendeu as socie‑ dades livres. Afirmou em Com a razão nas mãos que o liberalismo democrático é forte para superar suas dificuldades:

Disraeli converteu a Inglaterra mediante o Parlamento à ideia imperial, foi a Terceira República quem deu à França o império colonial (…) uma e outra democracia conduziram os seus povos à vitória na Grande Guerra (p. 279).

2 O texto de Husserl foi traduzido pela EDIPUCRS em 1996 com comentários de Urbano Zilles. Zilles resume,

na introdução que elabora ao texto do filósofo alemão, o propósito de Husserl como se segue (1996): “Na Krisis Husserl indaga o porquê do fracasso das ciências, perguntando pela origem dessa crise, reescrevendo a trajetória da razão ocidental e constata que as ciências se afastaram, pela matematização do mundo da vida, substituindo ‑o pela natureza idealizada. Elabora uma ontologia do mundo da vida no qual tenta superar o antagonismo entre o objetivo‑ ‑naturalista e o subjetivo ‑transcendental do pensamento moderno. Enraíza tanto a explicação das ciências naturais como a compreensão dos saberes culturais, lutando contra a absolutização do paradigma científico, que empobrece os problemas humanos” (p. 8).

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Ao se deparar com governos antiliberais, Ortega y Gasset viu no fenômeno, como dissemos em Introdução à filosofia da razão vital de Ortega y Gasset (2002) “uma raiz social e política, que nascia do tipo de homem que a sociedade da abundância havia criado na Europa” (p. 416). No entanto, explicava o filósofo espanhol, a dificuldade ia além da dimensão social, política e econômica possuindo também significado filosófico. Sua análise considera o novo tipo de homem que emerge da situação. Assim, o filósofo entende que a raiz deste novo sujeito era resultado da homogeneização ruim da sociedade decorrente de um modo de vida insensato, onde todas as fichas foram depositadas num “só tipo de homem, numa idêntica situação” (p. 128), conforme afirma em La rebelion de las masas. O texto acima citado de Joaquim de Carvalho revela que para o português a sociedade da abundância produzida pelo capitalismo não era responsável pela onda antiliberal, a não ser em lugares específicos da Europa.

A análise orteguiana parte do seguinte ponto: a homogeneidade entre as pessoas, que é um fato social ruim, formou ‑se na sociedade europeia com o domínio dos espaços públicos pelas grandes multidões. As multidões se torna‑ ram o lugar das pessoas e elas reduzem o espaço da liberdade existencial, como explica no prólogo da obra acima mencionada (1994):

Ao contemplar, nas grandes cidades, essas imensas aglomerações de seres humanos, que vão e vêm pelas ruas ou se concentram em festivais e manifestações políticas, vem a mim, de modo obsessivo, este pensamento: pode um homem de vinte anos elaborar um projeto de vida que tenha figura individual independente, mediante seu próprio esforço? (p. 132).

A resposta para a pergunta é negativa, esclarece o filósofo. A multidão que enche os espaços públicos se comporta como os prisioneiros “em uma prisão, onde se encontram amontoados muito mais presos do que ali cabem, ninguém pode mover um braço nem uma perna por própria iniciativa, porque pressionaria os corpos dos demais” (idem, p. 132). Assim era a vida na Europa, conclui Ortega y Gasset, parece difícil que a maioria, em qualquer canto do continente, tivesse autonomia ou lutasse pela liberdade, estando pressionada pelo propósito de ser como todo mundo, isto é, uma peça desta grande multidão desafiada a ocupar o lugar de mando social.

A nova situação era representada por um tempo de multidões, mas não era só uma questão de quantidade de pessoas reunidas e sim da nova atitude que adotavam. A multidão mudou de comportamento, ela espera ser vista e ocupa os lugares de destaque na sociedade. Disse o filósofo em La rebelion de las masas:

“A massa antes, se existia, ela passava inadvertida, ocupava o fundo do cenário social, agora adiantou as baterias e se tornou o personagem principal” (p. 145). As aglomerações, se antes ocorriam ocasionalmente, agora se tornaram um fato social recorrente. Se as pessoas pretendiam influir no destino do grupo, sabiam, antes, que deviam integrar as minorias qualificadas, isto é, deixar de pertencer à massa. No século passado este sentimento mudou, o sujeito queria estar na massa e a massa pretendeu se tornar o agente social mais importante. A massa passou a dar o tom na administração do Estado.

E por que o tempo das massas ganhou força no século XX? Para Ortega y Gasset não foi por acaso. Ele foi resultado das transformações sociais que se seguiram à Revolução Francesa quando se popularizou a mentalidade de que se podia ter uma sociedade tão cheia de direitos quando despovoada de deve‑ res. Como explica o filósofo em Revés de almanaque, o político no século XX radicalizou esta perspectiva de organização social e passou a falar: “todos têm direitos e nenhuma obrigação” (p. 720). Uma sociedade assim é uma sociedade democrática de massas uniformes.

3. Joaquim de Carvalho e a crítica à visão orteguiana de massa

No documento Pátria e Liberdade (páginas 120-123)