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2. UMA ÉPICA DO SERTÃO-MUNDO

2.1. A ÉPICA

Edward Mendelson e Hilary Clark, em seus estudos sobre o enciclopedismo na literatura, denominados, respectivamente para um como Narrativa Enciclopédica e para outro como Enciclopédia Ficcional asseveram a estreita relação do gênero com a épica. Segundo Mendelson, a narrativa enciclopédica vincula-se à épica quanto à estrutura, diferindo desta no que tange à matéria tratada e ao tempo narrado, ou seja, os temas não são mais os grandes feitos de um passado remoto, mas aqueles que ocorreram em uma distância de aproximadamente vinte anos apenas do tempo da narração. Hilary Clark, por sua vez, sustenta que o gênero enciclopédico atua como agregador do modo de dizer épico, isto é, o “dizer” e o “mostrar” pautados na narração, e também do próprio gênero épico, assimilando suas particularidades. Nesse sentido, a análise do Romance d’A Pedra do Reino como circunscrito ao gênero enciclopédico literário principia obrigatoriamente nos pontos de contato que o livro mantém com o gênero épico. Em seus textos, Mendelson e Clark não se referem a um tipo de épica, abordando o tema de forma genérica, o que possibilita examinar a narrativa de Ariano Suassuna à luz dos traços que configuram a épica moderna para responder a essa primeira e, talvez fundadora, premissa ao enciclopedismo literário estabelecida pelos autores.

Embora as marcas do gênero épico no Romance d’A Pedra do Reino distanciem-se por “séculos” do período clássico, as considerações de Aristóteles acerca dos gêneros impõem-se como marcos da gênese crítica e teórica da literatura. Norteado pelas duas grandes produções homéricas, a Ilíada e a Odisseia, o filósofo grego atesta a uniformidade do metro e a forma narrativa como características primordiais da épica. O verso é o hexâmetro datílico ou hexâmetro heroico, solene e amplo, mais nobre e adequado à imitação dos feitos elevados. A narrativa compõe-se de uma multiplicidade de episódios, bem ordenados e harmônicos em relação à ação principal com vistas a garantir a unidade (início, meio e fim) e dignificar a poesia. Embora a duração temporal, na épica, não deva se prender a limitações, é substancial que sua fabulação estenda-se até o limite em que a memória possa apreendê-la por

inteiro. Com efeito, para Aristóteles, os dois poemas encerram em si os moldes para a elaboração da epopeia, sumarizando as qualidades do que se chama a épica clássica. Assim, o que seria um estudo crítico, tornou-se teoria indispensável para numerosos estudos que objetivam definição do gênero épico, o qual passou também a ser sinônimo de clássico, ou seja, a épica necessariamente precisa enquadrar-se naquela configuração.

Georg Lukács, um dos maiores expoentes da teoria literária do século XX e que continua referência nestes tempos atuais, ao tratar do gênero épico, recorrerá também à antiguidade grega. Para ele, a épica irrompe como forma literária imanente àquele povo, cabendo a Homero somente transladar para seus cantos a transcendência “indissoluvelmente” mesclada “à existência terrena”. (LUKÁCS, 2000, p. 45). Segundo o autor, o gênero exige a totalidade encontrada apenas na conjunção precípua dos elementos “homem, amor, família, Estado”, componentes do mundo homogêneo dos gregos. Nessa ótica, a vida estende-se diante do poeta, que “é sempre o homem empírico da vida”, como o próprio objeto da épica. Ao aedo resta a “humildade”, a “contemplação”, a “admiração muda perante o sentido de clara fulgência que se tornou visível a ele, homem comum da existência cotidiana, de modo tão inesperadamente óbvio.” (LUKÁCS, 2000, p. 48). E o herói, que ocupa um patamar conquistado não individualmente, mas preparado pelo próprio destino, sintetiza e representa o destino de toda uma coletividade. Na compreensão de Lukács, portanto, a verdadeira épica está confinada ao tempo da antiguidade clássica, uma vez que o mundo pós-helênico tornou-se “infinitamente grande”, heterogêneo e fragmentado, perdendo o senso da totalidade, atributo imprescindível, segundo ele, do gênero. Essa completude, não mais inerente à vida, será perseguida pelo Romance, o qual tentará construí-la fazendo o caminho enquanto caminha e por isso os heróis romanescos parecem estar sempre em viagem, buscando por algo.

A contribuição dos apontamentos de Georg Lukács é inegável para as reflexões literárias, teóricas e críticas, dirigidas à epopeia, mesmo porque instaura parâmetros de comparação entre a produção épica clássica e o que seguiu no correr dos séculos. Certamente poemas semelhantes à Ilíada e à Odisseia não puderam mais ser escritos, em vista de que sua estrutura e temática emergem como que naturalmente do seio daquela comunidade grega, conforme avalia Lukács, entretanto, pelo cotejo de outros textos críticos e teóricos e pela análise de outros poemas e

narrativas, parece haver certa lucidez na constatação de que o romance não substituiu a épica, ainda que aquele apresente marcas evidentes de uma herança desta. O gênero épico continua existindo ao lado do gênero romance, embora visivelmente transformado, conforme se evidencia nos estudos do professor Anazildo Vasconcelos da Silva, no livro História da Epopéia Brasileira (2007). Em suas observações, Silva pondera que a épica mantém-se viva na contemporaneidade, e as modificações sofridas, no curso da história literária, devem-se às diferentes concepções literárias envolvidas em suas manifestações e às mudanças naturais intercorrentes em qualquer cultura. Nesse sentido, o gênero sustenta-se sobre bases por ele denominadas matrizes épicas clássica, romântica e moderna, associadas, respectivamente, às retóricas grega da antiguidade, medieval e moderna do século XX. Em relação aos preceitos de Aristóteles, o autor sugere um olhar cauteloso, pois, ainda que constituam parâmetros de análise, formulam-se como textos críticos voltados apenas à obra de Homero, e “sua aplicação indiscriminada, através dos tempos, impossibilitou o reconhecimento de epopéias legítimas fora do âmbito clássico.” (2007, p. 46)

O livro Modern Epic, de Franco Moretti, corrobora a permanência do gênero épico pelo transcorrer dos séculos. Aqui, o autor analisa marcos da literatura mundial como Fausto, The Nibelung’s Ring, Ulysses, One Hundred of Solitude, configurando- os exemplares genuínos da épica moderna florescida a partir do século XIX. Para justificar o sintagma utilizado no título de seu livro, Moretti vale-se da similaridade entre as narrativas examinadas e a tradição, bem como de uma intensa relação daquelas com o passado, resultando em uma substância épica. A par desses traços, levantam- se particularidades concernentes sobretudo ao aspecto da dimensão supranacional do espaço, configurando a “modernidade” dos textos, os quais, por isso, podem ser chamados também “world texts”, despontando raros e únicos em sua cultura. A junção do substantivo “épica” com o adjetivo “moderna” parece paradoxal, todavia, como afirma o autor, essa suposta imperfeição somente atesta a confluência do gênero para o período histórico no qual se localiza, também cheio de contradições.

O estudo do Romance d’A Pedra do Reino sob o viés do gênero épico, necessário à sua conformação à ficção enciclopédica, fundamenta-se mormente sobre as características arroladas pelos autores Anazildo Silva e Franco Moretti, em vista de sua nítida filiação à épica moderna, formalmente refletida pelo relato centrado

na intervenção criadora; pela participação plena do eu-lírico/narrador no enredo (firmando uma noção memorialística mais pessoal, privada e restrita); pela presença do herói expectador; pela intertextualidade (diálogo com textos formadores, bricolagem, refuncionalização); pelo encadeamento atemporal de fatos históricos e de figuras históricas; pela natureza aberta e provisória do texto; entre outras singularidades.