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2. UMA ÉPICA DO SERTÃO-MUNDO

2.4. A ÉPICA MODERNA

2.4.3. A épica moderna e a busca por totalidade

2.4.3.3. Texto aberto

O sertão como princípio e como inspiração: um vasto tabuleiro onde se dispõem os mais variados personagens, do mundo ficcional ou real; casas brancas e pretas ocupadas por reis, príncipes, princesas, fazendeiros, cavaleiros e damas, políticos, escritores, cantadores, juízes, padres e bispos, os quais avançam ou recuam obedecendo à sina que os acompanha; um espaço que assimila outros espaços, naturalmente remotos. O sertão como tema de um Romance fascinante por sua magnitude, enigmático como um imenso quebra-cabeça onde faltam ou sobram peças. Um texto grandioso em extensão de páginas e em profundidade de criação poética, aparentemente cheio de lacunas e aberto a interpretações infinitas. À semelhança dos Cantos, de Ulisses, do Fausto, entre outros, considerados pertencentes ao gênero épico moderno, o Romance d’a Pedra do Reino figura como o tipo de obra para ser estudado “com um tratado volumoso em nossas mãos.” (MORETTI, 1996, p.38, tradução nossa)29, pois esses textos podem ser descritos

como um conjunto de livros, sobre os mais variados assuntos, dentro de um único livro. Paradoxalmente isso aponta para trabalhos aparentemente fragmentados que intencionam responder a uma visão unitária do mundo. A respeito dessa questão,

Moretti (1996, p. 48, tradução nossa) assegura que a unidade da épica moderna não reside em uma “conclusão definida”30, mas na permanente “habilidade de começar de

novo”31. Para ele, é possível que um mundo unificado seja representado como um

mundo aberto.

Centrada no depoimento prestado por Quaderna ao corregedor, a narrativa revela uma série de acontecimentos, mas origina muitos questionamentos também. Sabe-se, pelo início do texto, que o herói se encontra preso, todavia o Romance termina ao final do primeiro depoimento de Quaderna, quando este retorna para sua casa, não se esclarecendo as motivações da sentença. Uma das denúncias contra o protagonista seria sua participação junto aos atos cometidos pelo grupo do Rapaz-do- Cavalo-Branco, entretanto apenas se menciona a viagem empreendida por eles em busca do tesouro do padrinho e nada relacionado a crimes. Tampouco se elucida o assassinato de Dom Pedro Sebastião, ocorrido por esfaqueamento em uma torre sem janelas, cuja porta permanecera trancada por dentro. As relações políticas entre a caravana de Sinésio e os remanescentes da revolução comunistas não se explicitam, mas são sugeridas pelo corregedor. Enfim, várias outras situações permanecem sem desfecho.

Tais características reforçam a habilidade do texto em sempre começar de novo. Permanece o sentido da recriação, da reconstrução, da reformulação. Iniciado em 1958 e publicado apenas em 1971, o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe

do Sangue do Vai-e-Volta permaneceu em aberto para seu próprio autor por treze

anos. Lançado a público, ainda passou por revisões e modificações: na terceira edição de 1972, os folhetos que subdividiam o Romance foram agrupados em cinco livros, e foi anunciado na folha de rosto que aquele seria o primeiro livro de uma trilogia que se completaria com História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão e O Romance

de Sinésio, o Alumioso, Príncipe da Bandeira do Divino do Sertão, o que não

aconteceu; na quinta edição de 2004, o texto sofreu modificações consideráveis; na nona edição de 2007, antes do título aparece a expressão “A Ilumiara” e o Romance é anunciado como “Airesiana Brasileira No 1; em 2010, a décima primeira edição trará como expressão definitiva “Airesiana Brasileira em Fá-Maior – Introdução ao ‘Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores’”, e os cinco livros receberam os títulos de “Prelúdio”, “Chamada”, “Galope”, “Tocata” e “Fuga”. A última edição, de

30 “definite conclusion” (MORETTI, 1996, p. 48) 31 “ability to begin again” (MORETTI, 1996, p. 48)

2017, apresenta as últimas alterações pensadas pelo autor e anotadas em manuscrito, no intuito de situar o Romance terminantemente na obra total desejada por Suassuna e que seria denominada A Ilumiara.

O anseio pela totalidade demonstrado pelo projeto do autor manifesta-se nítido, refletindo-se no sonho do narrador em escrever a Obra Máxima da Humanidade, o qual se apresentaria com um livro completo, referindo-se, desse modo, ao universalismo épico. O resultado disso traduz-se como uma grande ironia à ambição enciclopédica. Notadamente, o projeto clássico ou iluminista de encerrar todo o conhecimento entre as capas de livros demonstrou-se falacioso, visto que os meios para sua apreensão mudam e se renovam constantemente, fazendo com que ele também se transforme. Nesse sentido, a narrativa pode ser vista também como alegórica e sua amplitude polissêmica torna-se responsável por numerosos significados futuros, corroborando o caráter de texto aberto da épica moderna. Ficcionalmente enciclopédico, o Romance d’A Pedra do Reino fragmenta-se em gêneros, em episódios, em histórias, em temas, todavia encontra unidade no que se propõe: revelar as diversas faces do sertão ou do sertão-mundo, como componentes e representantes de uma nação; elaborar-se, enfim, como um mundo que se abre ao leitor, à diversidade de vivências e de interpretações. Como atesta Franco Moretti (1996), os textos que compõem a épica moderna parecem obras abertas ao infinito. Esse aspecto de duração ou de extensão do fim encontra uma imagem perfeita no final de O Guarani, explicado por Quaderna:

Mas se o caso é de estilo régio, então eles não morreram, nem lá, nem depois. Consumaram aquele amor meio espiritual e meio tarado que tinham um pelo outro, e permanecem ali, possuindo-se um ao outro no embalo da palmeira, num amor de divindades, vivos para sempre e eternamente jovens, imortalizados naquele epopeico momento de romance que é sempre o mesmo, sempre renovado a cada leitura. (SUASSUNA, 2014, p. 735)

A totalidade como característica da épica clássica, porque esta lograva englobar o restrito e homogêneo mundo grego, reveste-se neste período atual de novos significados. Referir esse aspecto na épica moderna denota procedimentos de criação literária concernentes à polifonia, às instâncias de tempo, à alegoria, ao intertexto, à reescritura, à metalinguagem, entre outros. Busca-se a totalidade pela consciência de que o texto não é único e acabado, mas interdependente de outros e recriação contínua do autor e do leitor. Se o círculo simboliza a completude, ele aqui

se revela ao modo do uroboro: representação do moto contínuo, do estar em vias de recomeçar sempre e abranger novos significados e nisso alcançar a integralidade, ainda que em um presente efêmero, a ponto de evaporar.