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A épica moderna e o foco no plano de elaboração literária

2. UMA ÉPICA DO SERTÃO-MUNDO

2.4. A ÉPICA MODERNA

2.4.1. A épica moderna e o foco no plano de elaboração literária

De acordo com Silva (2007), pela influência das concepções literárias modernistas, a épica moderna concentra-se principalmente no trabalho metalinguístico. Desse modo, evidencia-se o plano literário, o qual adquire autonomia estrutural pela intervenção criadora do poeta no espaço da narrativa. Enquanto os modelos da matriz épica clássica sistematizavam-se do plano histórico para o mítico, e os modelos da matriz épica romântica, do plano mítico para o histórico, “nos modelos da matriz épica moderna, o relato centra-se na intervenção criadora, impondo uma estruturação do plano literário para os outros dois.” (SILVA, 2007, p. 140). Orientando- se por semelhante via, John Whittier-Ferguson no artigo “Ezra Pound, T. S. Eliot, and the modern epic”, de 2007, propõe que a preocupação com o plano de criação manifesta-se como característica primordial do gênero. As guerras e batalhas, os espaços dos salões e dos palácios podem até tomar parte de seu enredo, a intervenção divina, as longas viagens e o processo de formação nacional ainda

ocupam, de certo modo, os interesses do poeta, mas a atenção primordial dirige-se ao texto, mais precisamente aos textos formadores. A épica moderna centra-se no ato estético, assim, ela “pode ou não ter algumas ramificações sociais, culturais, políticas, ou teológicas: a escrita improvável do autor no livro que lemos.” (WHITTIER- FERGUSON, 2010, p. 212, tradução nossa)22.

Guiando-se por tais concepções, observa-se que, no Romance d’A Pedra do

Reino, embora exista uma linha narrativa, composta episodicamente, com marcação

temporal bem definida e com desenvolvimento da ação, o projeto de elaboração literária assume o plano central do livro. Os fatos históricos e os mitos apresentam-se bem delineados e inter-relacionados, entretanto passam pelo crivo da intervenção criadora do autor/narrador. Opera-se, em diversos momentos, a inversão ou reformulação da história oficial, como se observa:

Cada vez se enraizava mais, em mim, a decisão de tornar embandeiradas e cheias de chuviscos prateados as pardas, miseráveis e sangrentas aventuras da Pedra do Reino, tornando-me Rei sem degolar os outros e sem arriscar minha garganta, o que somente a feitura do meu romance, do meu Castelo perigoso e literário, possibilitaria. (SUASSUNA, 2014, p. 198).

Outras vezes, opera-se a reconstrução do mito principal ligado a questões históricas, com o Rapaz-do-Cavalo-Branco incorporando ao mesmo tempo a figura do rei Dom Sebastião e a de Luís Carlos Prestes:

- Como eu vinha dizendo, estávamos às vésperas da Revolução Comunista de 1935. Ora, Sinésio concentrara em torno dele, durante todos aqueles anos, as esperanças de justiça da ralé sertaneja, como o senhor chamou há pouco. O Povo nunca perdera a fé na sua volta, quando ele, ressurreto, realizaria a Restauração, ou instauração de não sei que Reino, um Reino sertanejo no qual os proprietários seriam devorados por dragões e todos os Pobres, aleijados, cegos, infelizes e doentes ficariam de repente poderosos, perfeitos, venturosos, belos e imortais. Por isso, naquele Sábado, com a chegada epopeica do Rapaz-do-Cavalo-Branco, as duas ideias logo se juntavam num boato só. Sinésio viera para instaurar o Reino, e a guarda de Ciganos que o acompanhava não era senão a guarda-avançada de uma nova Coluna que o Guerreiro e Fidalgo-brasileiro, o Capitão Prestes, enviara ao Sertão para rebelá-lo e subvertê-lo, como já tinha feito em 1926, com a célebre “Coluna Prestes”! (SUASSUNA, 2014, p. 422)

As reflexões acerca do processo de elaboração literária são também abundantes, evidenciando a metalinguagem como uma das características singulares

22 “may or may not have some social, cultural, political, or theological ramifications: the author's unlikely

da épica moderna. Perfaz-se na voz do personagem João Melchíades, por exemplo, uma das mais belas definições para a poesia e para o poeta:

O Mundo é um livro imenso, que Deus desdobra aos olhos do Poeta! Pela criação visível, fala o Divino invisível sua Linguagem simbólica. A Poesia, além de ser vocação, é a segunda das setes Artes e é tão sublime quanto suas irmãs gêmeas, a Música e a Pintura! Vem da Divindade a sua essência musical. Mas, meu Senhores, ninguém queira tomar como Poesia qualquer estrofe, pois há muitas Poesias sem estrofes e muitíssimas estrofes sem Poesia… Ser Poeta, não é somente escrever estrofes! Ser Poeta, é ser um “geníaco”, um “filho assinalado das Musas”, um homem capaz de se alçar à umbela de ouro do Sol, de onde Deus fala ao Poeta! Deus fala através das pedras, sim, das pedras que revestem de concreto o trajo particular da Ideia! Mas a Divindade só fala ao Poeta que sabe alçar seus pensamentos, primando pela grandeza, pela bondade, pela glória do Eterno, pelo respeito, pela moral e pelos bons costumes, na sociedade e na família! (SUASSUNA, 2014, p. 239)

Para o narrador/autor, a palavra poética carrega em si toda força criadora e é por intermédio dela que o mundo ganha vida. No interior da obra literária cabem todos os reinos, povoados por belas mulheres e cavaleiros heroicos, marcados por “amores desventurados, poéticos e sensuais” e por “guerras, vinditas e emboscadas”. Sob essa perspectiva, mais que recriadora, a literatura revela-se redentora:

Seria a Literatura dos folhetos e romances que iria restaurar de novo, pelo fogo da Poesia, a gloriosa imagem anterior, que aquelas pedras, tortas e manchadas de mijo-de-mocó, aleivosamente queriam diminuir e macular! (SUASSUNA, 2014, p. 149).

O sonho de Quaderna é que o reino de Pedra Bonita ou a fazenda do padrinho assassinado, ambos pertencentes a seus antepassados, sejam resgatados pela composição poética. Para ele, um Castelo construído sobre os pilares da linguagem, onde finalmente se tornará rei. Pela narração de suas aventuras, em forma de depoimento, as quais deverão constituir, em forma de romance, a Obra completa de gênio da raça, Dom Dinis Ferreira-Quaderna propõe-se a compreender seu próprio itinerário de vida e sua identidade, como homem sertanejo que compõe uma nação maior.