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A ORGANIZAÇÃO TEXTUAL DO

2. UMA ÉPICA DO SERTÃO-MUNDO

2.2. A ORGANIZAÇÃO TEXTUAL DO

Antes de confrontar efetivamente a matéria do Romance com os conceitos da épica moderna, fazem-se necessárias, pelo menos, duas considerações acerca de sua estruturação formal, como primícias de referência ao gênero tratado. Uma se refere à organização das partes que o compõem e a outra se articula à intenção literária da épica. Notadamente, o texto de Suassuna não se apresenta em forma de poema como o são as epopeias, tampouco isso ocorre a Cem anos de solidão, uma das obras abordadas por Franco Moretti como exemplar da épica moderna. No entanto, o Romance do escritor paraibano, por sua estrutura e linguagem, revela certo parentesco com as formas de uma Eneida ou de um Os Lusíadas, evocando, mesmo que a uma distância temporal, espacial e temática relativamente extensa, os “cantos” tradicionalmente executados por autores ávidos de correspondência com o período clássico. A história de Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna (narrador e herói) organiza-se, textualmente, em cinco partes, as quais recebem, cada uma, um título relacionado à música e um subtítulo à maneira de síntese, como segue: 1) Prelúdio (A Pedra do Reino), 2) Chamada (Os Emparedados), 3) Galope (Os Três Irmãos Sertanejos), 4) Tocata (Os Doidos), 5) Fuga (A Demanda do Sangral). Cada seção apresenta-se subdividida em “Folhetos”, totalizando oitenta e cinco folhetos, cada qual com um título específico. 20. A utilização da estrutura do “folheto” denota a relação da

criação poética do Romance com a literatura de folheto, ou literatura popular em versos, ou ainda literatura de cordel, presença inconteste nas manifestações artísticas do nordeste brasileiro. Herança da colonização portuguesa, são impressos em papel

20 A partir da 11ª edição do Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-eVolta, em

2010, Ariano Suassuna nomeou as partes do texto, antes divididas em livros, aludindo a movimentos de uma peça musical. A 14ª edição, de 2014, utilizada neste trabalho, apresenta, portanto, tais títulos, pertinentes às considerações sobre a épica por evocarem a relação desta com a música.

jornal dobrado in quarto, geralmente ilustrados por xilogravuras, e seu conteúdo escrito em redondilhas maiores. Além de tais marcadores das partes da narrativa, numerosos folhetos, colhidos dos mais variados autores populares, são transcritos no corpo do texto como componentes do enredo.

Quanto à intenção literária expressa por dedicatória, proposição e invocação, separadas em seções do texto distintas da ação propriamente dita, um leitor desavisado poderia tomá-la como indício de sua filiação à tradição. À semelhança de Camões, que dedicou seu poema a Dom Sebastião e propôs-se a cantar “As armas e os barões assinalados” com suas façanhas e as “memórias gloriosas” dos reis, sob a inspiração das Tágides, referenciais da formação identitária de Portugal, Ariano Suassuna convoca também elementos próprios da formação cultural brasileira, primordialmente da região nordeste. Contudo, a elaboração poética aqui difere substancialmente do que seria denominado clássico: o livro é dedicado a exatamente treze pessoas, referindo figuras ilustres que marcaram a história pessoal e literária do autor, como escritores canônicos da literatura brasileira, historiadores, jornalistas, políticos, líderes religiosos, e sobretudo o pai, cujo nome principia a lista em letras caixa-alta. O modo de diagramação na página retrata originalidade e poeticidade:

Em memória de JOÃO SUASSUNA José de Alencar, Jesuíno Brilhante, Sylvio Romero, Antônio Conselheiro, Euclydes da Cunha,

Leandro Gomes de Barros,

João Duarte Dantas,

Homero Torres Villar,

José Pereira Lima,

José Lins do Rego e

Manuel Dantas Villar,

Santos, poetas, mártires, profetas e guerreiros do meu mundo mítico do Sertão,

Oferece, Dedica,

E consagra

ARIANO SUASSUNA

O pai figura como líder, em uma evocação a Carlos Magno, talvez, que vai à frente dos doze cavaleiros - os doze pares de França repetidamente citados por Quaderna em sua história; a referência rememora também os doze apóstolos de Cristo -, representados por homens da cultura erudita e popular, políticos, religiosos, familiares, todos elevados a uma condição sublime de “santos, poetas, mártires, profetas e guerreiros”. São nomes de pessoas reais, todavia já transformados em personagens da narrativa mítica de “crime e sangue”, anunciada na proposição:

Romance-enigmático de crime e sangue, no qual aparece o misterioso Rapaz-do-Cavalo-Branco. A emboscada do Lajedo sertanejo. Notícia da Pedra do Reino, com seu Castelo enigmático, cheio de sentidos ocultos! Primeiras indicações sobre os três irmãos sertanejos, Arésio, Silvestre e Sinésio! Como seu Pai foi morto por cruéis e desconhecidos assassinos, que degolaram o velho Rei e raptaram o mais moço dos jovens Príncipes, sepultando-o numa Masmorra onde ele penou durante dois anos! Caçadas e expedições heroicas nas serras do Sertão! Aparições assombratícias e proféticas. Intrigas, presepadas, combates e aventuras nas Caatingas! Enigma, ódio, calúnia, amor, batalhas, sensualidade e morte! (SUASSUNA, 2014, p. 27)

Os temas, o espaço, a ação e os dois heróis dessa épica sertaneja, o Rapaz- do-Cavalo-Branco e Quaderna, dispõem-se ao leitor objetivamente como deve ser a proposição. Pela diagramação e pela estrutura reconhece-se a similaridade dessa parte com a das epopeias, entretanto a temática direciona-se às histórias sertanejas

tornadas comuns pela literatura de cordel. Aí reside uma das novidades da épica moderna de Suassuna, configurando uma espécie de transgressão ao clássico, pois o cordel, popular, será transcrito em sua forma própria no corpo do Romance como divulgador da arte do cotidiano, das tradições populares e dos autores locais, marcando sua importância para a manutenção das identidades e das tradições artísticas regionais. Ainda a composição do texto em períodos curtos remete ao verso poético próximo daquele praticado nos folhetos, mais espontâneo. Os termos “Castelo”, “Rei”, “Príncipe”, grafados em maiúsculas no interior do texto, lembram a singularização dos referenciais presentes na poesia simbolista e reportam-se a um outro tempo e espaço – clássicos ou medievais - distantes temporal e espacialmente dos personagens que se movimentam aqui, mas que a eles se fusionam, desvelando uma diegese mítica, na qual se relatam façanhas de homens comuns, sertanejos, embora tornados nobres por suas aventuras, lutas e viagens decorridas em terra bem conhecida.

A invocação, formalizada na mesma página da proposição, embora corresponda de certo modo à épica clássica, pela disposição e erudição das palavras, tematicamente alinha-se à proposição e à dedicatória pela remissão a elementos próprios da topografia regional. O apelo apresenta-se de dois modos distintos nas duas estrofes, escritas em redondilhas maiores, que compõem o poema à moda de cantiga popular:

“Ave Musa incandescente do deserto do Sertão! Forje, no Sol do meu Sangue,

o Trono do meu clarão: cante as Pedras encantadas

e a Catedral Soterrada, Castelo deste meu Chão!

Nobres Damas e Senhores ouçam meu Canto espantoso:

a doida Desaventura de Sinésio, o Alumioso,

o Cetro e sua centelha na Bandeira aurivermelha do meu Sonho perigoso!”

Na primeira estrofe explicita-se o clamor à Musa por inspiração poética, com verbos no imperativo, ou seja, o vate necessita de um poder sobrenatural, acima dele, que aja em seu “sangue” para realizar o feito da poesia, cuja matéria, contudo, é inerente a seu cotidiano: “deserto do sertão”, “Pedras encantadas”, “Catedral Soterrada”. Ao se dirigir à Musa, o poeta utiliza termos mais rebuscados, a exemplo de “incandescente”, “forje”, “soterrada”, como se efetivamente ele estivesse buscando impulso criativo na antiguidade clássica, um período naturalmente sublime, conforme atesta Lukács (2000) e precisasse, portanto, adequar a linguagem. Na segunda estrofe, o tom não é de invocação, mas de apelo a “Nobres Damas e Senhores” para que ouçam seu canto. Esse direcionamento claro à pessoa do leitor ou do ouvinte será recorrente no desenrolar da história, como se o eu-lírico/narrador precisasse convencê-los da veracidade de sua fala e assim conseguir sua cumplicidade. A linguagem aí também muda, aproximando-se da informalidade como “Canto espantoso”, “doida Desaventura”, “Alumioso”. No poema, repete-se o recurso à letra maiúscula no meio das frases e praticamente todos os termos em maiúsculo, como na proposição, apontam para temas e figuras que serão enfatizados ao longo do

Romance. Nesse sentido, palavras como “Lajedo”, “Castelo”, “Pai”, “Rei”, “Príncipes”,

“Sertão”, “Sol”, “Sangue”, “Pedras”, “Desaventura”, “Bandeira” e “Sonho” sintetizam e adiantam a “matéria épica” que deverá ser cantada na sequência.