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A épica moderna e o intertexto

2. UMA ÉPICA DO SERTÃO-MUNDO

2.4. A ÉPICA MODERNA

2.4.2. A épica moderna e o intertexto

A preocupação com o fazer poético ou com o plano de elaboração poética, suscita naturalmente questões acerca do diálogo com outros textos, do escrever com o olhar voltado para trás, fixo nos livros e nos textos que precedem a época contemporânea. No ensaio “Tradition and the Individual Talent”, Eliot (1919 apud WHITTIER-FERGUSON, 2010, p. 212, tradução nossa), trata o assunto com substancial lucidez: “ ‘Alguém disse: ‘Os escritores mortos estão mais distantes de nós porque nós sabemos mais que eles.’ E, precisamente, eles são aquilo que nós sabemos.’”23 Depreende-se disso que o estatuto da escrita moderna afigura-se

essencialmente recursivo, reelaborando-se constantemente sobre aquilo que uma vez já foi feito, ou seja, vive-se, lê-se e escreve-se sobre o que já foi, outrora, vivido, lido e escrito.

Nesse amálgama do presente com o passado, do “eu” com o “nós”, formalmente, diferentes vozes adquirem lugar no texto recorrendo a alusões diretas ou indiretas a textos externos. No novo modelo épico, fortalece-se, portanto, o recurso da intertextualidade e sobejam o eco e a repetição de personagens, enredos, palavras, construções sintáticas excertos e textos inteiros, visto que “ a ideia de repetição, como Pound a compreende, torna-se um modo de entender e avaliar a história assumindo-se uma posição nos dias atuais.” (WHITTIER-FERGUSON, 2010, p. 226, tradução nossa)24.

A busca pelo passado e por outros textos remonta ao exercício de criação poética, pois no lugar de poderes políticos ou bélicos, o poeta possui a retórica, única arma com que trava suas batalhas. E poderia sair vencedor, perante a falta de coerência política, cultural, espiritual que impõe ao mundo um estado agonizante? Talvez o questionamento não deva versar sobre vencedores ou perdedores. Conforme assinala Whittier-Ferguson (2010, p. 232, tradução nossa), os poetas e o resto dos homens “escrevem e leem e vivem”25 nesse tempo ainda em processo de

23 “‘Someone said: ‘The dead writers are remote from us because we know much more than they did.’

Precisely, and they are that which we know.’” (ELIOT, 1919 apud WHITTIER-FERGUSON, 2010, p. 212).

24 “the idea of repetition as Pound comes to understand it becomes a mode of understanding and

evaluating history and taking sides in the present day.” (WHITTIER-FERGUSON, 2010, p. 226)

redenção, em demanda eterna, caminhando por ritmos desiguais de memória e desejo.

Nessa épica moderna que é o Romance d’A Pedra do Reino, os instrumentos de guerra do herói, também narrador, são as palavras. Quaderna não se estabelece como vencedor ou perdedor, simplesmente coloca-se no caminho e a caminho em um itinerário já percorrido por outros, que têm muito a ensinar. Nesse sentido, ele articula seu texto “olhando para trás, através de seus ombros” e faz emergir na narrativa longos excertos de obras históricas, romances, poesias, além de folhetos completos da literatura de cordel, gênese da vasta produção do escritor Ariano Suassuna.

Para a fundamentação dos acontecimentos históricos, sociais e políticos, citam-se historiadores que tratam da história do Brasil, bem como os que direcionam seu olhar de modo particular para a região nordeste. Assim, os nomes de Francisco Adolfo Varnhagen com História Geral do Brasil, de Manoel Bonfim, patrono da sociologia, de Manuel de Oliveira Lima, com História da Civilização, de Antônio Áttico de Souza Leite, autor de Memória sobre a Pedra Bonita, ou Reino Encantado, na

Comarca de Vila-Bela, província de Pernambuco, de Frei Vicente do Salvador, autor

de História do Brasil, de Irineu Pinto, que escreveu Datas e Notas para a História da

Paraíba, de Francisco Augusto Pereira da Costa, historiador pernambucano e de

Epaminondas Câmara, com Subsídios para a história do município de Taperoá são recorrentes, além da transcrição de alguns textos, muitas das vezes, intervindo o narrador com acréscimo de informações ou apreciações críticas sobre o assunto tratado. Com acentuada frequência, também, são evocados autores da literatura brasileira, sobretudo os românticos como Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, Castro Alves, Sousândrade, Manuel Antônio de Almeida e José de Alencar. Ao recordar uma das ações do padrinho Dom Pedro Sebastião, por exemplo, o narrador cita, às páginas 678 e 679, um poema atribuído a Álvares de Azevedo, o qual vale ser transcrito:

‘Cavaleiro das armas brilhantes onde vais, nos Sertões chamejantes, com a Espada Sanguenta na mão? Por que brilham teus Olhos ardentes e esses Gritos nos lábios frementes vertem Fogo do teu Coração?

Cavaleiro, quem és? O Remorso? do Corcel te debruças no dorso e galopas, chapada através.

Oh! da Estrada acordando as poeiras não escutas luzirem Caveiras

e o Profeta da Pedra a teus pés?

Onde vais na Caatinga flamante, Cavaleiro das armas brilhantes, doido e ardente, qual Morto na tumba? Não escutas? Na pétrea Montanha meu tropel teu Galope acompanha e um clamor de Vingança retumba!

Cavaleiro, quem és? Que mistério? Quem te força, na Morte, no Império, pela Tarde assombrada a vagar? - Sou o Sonho da tua Esperança, tua Febre que nunca descansa, o Delírio que te há de matar!’”

O poema original denomina-se “Meu sonho”26 e apresenta-se um pouco

diferente do encontrado no Romance:

EU

Cavaleiro das armas escuras, Onde vais pelas trevas impuras Com a espada sanguenta na mão? Por que brilham teus olhos ardentes E gemidos nos lábios frementes Vertem fogo do teu coração? Cavaleiro, quem és? — O remorso? Do corcel te debruças no dorso…

26 O poema “Meu sonho”, de Álvares de Azevedo, foi publicado no livro Lira dos Vinte Anos, em 1853.

E galopas do vale através…

Oh! da estrada acordando as poeiras Não escutas gritar as caveiras E morder-te o fantasma nos pés? Onde vais pelas trevas impuras, Cavaleiro das armas escuras, Macilento qual morto na tumba?… Tu escutas… Na longa montanha Um tropel teu galope acompanha? E um clamor de vingança retumba? Cavaleiro, quem és? que mistério… Quem te força da morte no império Pela noite assombrada a vagar? O FANTASMA

Sou o sonho de tua esperança, Tua febre que nunca descansa, O delírio que te há de matar! …

As modificações realizadas pelo narrador manifestam claramente a inversão de perspectiva do eu-lírico em relação ao objeto do poema. No texto romântico, prevalece a profunda subjetividade e ambiguidade do ser, notadas pela luta que se trava entre o “eu” e o “fantasma”, que possivelmente representa a consciência do eu- lírico, presença comum nos poemas da segunda geração. Reforça-se ainda o clima sombrio e pessimista, próprios da geração do mal-do-século, pelo uso de termos tais como “armas escuras”, “trevas impuras”, “gemidos”, “fantasma”, “macilento”, “noite”, metaforicamente conformando a interioridade do poeta à imagem da melancolia, da profunda tristeza, do estado de ânimo abatido, conduzindo-o fatalmente à morte, um dos temas destacados pelos escritores desse período.

Na recriação de Quaderna, entretanto, as “armas escuras” transformam-se em “armas brilhantes”; em vez de “trevas impuras” e “gemidos”, “Sertões chamejantes” e “gritos”; substitui-se “fantasma” por “Profeta da Pedra” e o espaço sertanejo delimita-se pela “Caatinga flamante”. Não se trata mais de uma batalha interior do eu-lírico, mas de duas pessoas distintas: o poeta dirige-se a alguém de fora, que pode afigurar-se como um cavaleiro sertanejo e guerreiro, o Rapaz-do-Cavalo- Branco ou mitologicamente o próprio Dom Sebastião. Aplica-se aqui o que Moretti (1996) denomina processo de bricolagem e de refuncionalização, relacionado naturalmente à intertextualidade. Isso significa que a épica moderna reporta-se aos textos do passado referindo-os, recortando-os, reelaborando-os, em uma tentativa de

deslindar “uma nova função para aquilo que já existe.” Nesse sentido, o elemento novo é uma recriação de um passado que emerge e traz à tona todas as suas problemáticas. As tentativas épicas, nesta era moderna, propõem desafiar a antiguidade dentro do seu próprio terreno.

À vista disso, ao trazer o texto romântico para dentro do seu, Quaderna parece, primeiramente, desafiar aquele estado de ânimo de luta interior, pois tal atitude não leva a resultados efetivos. Estes tempos de agora exigem ação e respostas: “Não escutas?”; “Não escutas o clamor por vingança?” As referências ao espaço sertanejo e, necessariamente, ao “Profeta da Pedra” atualizam e presentificam o texto romântico, sendo nítida a referência aos episódios de Pedra Bonita e aos anseios por vingar os antepassados e retomar o reino. Para além de tal interpretação, o cavaleiro bem pode evocar Dom Sebastião histórico e mítico: não foi ele que também sob sol escaldante atravessou as areias do Marrocos e cujo “ser que houve” permaneceu para sempre “onde o areal está”?27 Contudo, mantém-se um “ser que

há”, vivo no mito e desejado como aquele que voltará para restituir o reino ao patamar sublime. Para isso, faz-se necessário sair da morte: “Quem te força na Morte, no Império,/pela tarde assombrada a vagar?”, e percorrer o Império. No Romance d’A

Pedra do Reino, a figura do rei português amalgama-se à do Rapaz-do-Cavalo-

Branco, que também retorna “qual Morto na tumba” para vingar seu pai, para instaurar um novo tempo e propiciar a Quaderna condições de fundar o “Quinto Império”. Os três versos que encerram os poemas, bastante semelhantes, funcionam à guisa de resposta do cavaleiro e poderiam, no texto recriado de Quaderna, reportarem-se ao tom taciturno dos românticos, significando o esmorecimento do eu-lírico. Entretanto, o uso das iniciais maiúsculas em “Sonho”, “Esperança”, “Febre” e “Delírio” singulariza essas palavras, remetendo ao campo referencial linguístico que permeia a construção do herói, uma vez que o desenrolar de suas ações gravita em torno delas. Para além disso, e como o narrador anseia a construção de seu Reino por intermédio da criação literária, essas últimas linhas poderiam referir-se ao genuíno labor poético e ao próprio ato de escrever “que nunca descansa”.

No grande painel intertextual costurado pelo narrador, outros autores como José de Alencar e Euclides da Cunha emergem, ao lado de Homero, como referenciais da produção épica na qual o narrador se apoia. Por vezes O Sertanejo, O Guarani,

27 Referência ao poema “Quinta/D. Sebastião, Rei de Portugal”, do livro Mensagem, de Fernando

Iracema e Os Sertões são citados como verdadeiras épicas nacionais. Depreende-se

daí a valorização dos autores nacionais, mormente no que tange as suas obras nacionalistas e regionalistas, como se em busca das raízes históricas para identificação da cultura brasileira. Fundamentando-se, pois, em toda essa produção do passado, a Obra Máxima do gênio da Raça anseia um voo mais alto e pretende- se completa.

Dentre vários outros autores citados, medievalistas, realistas, naturalistas, parnasianos ou simbolistas, críticos literários ou historiadores, poetas pernambucanos e paraibanos, como Zeferino Galvão, Antônio da Cruz Cordeiro Junior, Severino Montenegro e Manuel de Oliveira Lima, apresenta-se substancial o diálogo travado com os cantadores de folhetos. A literatura de cordel, gênese da obra de Suassuna, dissemina-se pelo Romance d’A Pedra do Reino, pela transcrição dos poemas ou pela alusão a seus criadores, constituindo o enredo, ilustrando situações ou elucidando alguns dos episódios. Salientam-se, por exemplo, nomes como João Martins de Athayde, Gerônimo do Junqueiro, Amador Santelmo, Leandro Gomes de Barros, Natanael de Lima, Francisco Romano e Inácio da Catingueira.

De Amador Santelmo, vale destacar um trecho do folheto Vida, Aventuras e

Morte de Lampião e Maria Bonita, situado às páginas 47 e 48, pela expressividade

que mantém no enredo e por sua representatividade dentro da tradição cultural nordestina. Pelo título do folheto, uma primeira interpretação ao início do excerto transcrito: “Dizem que uma Sombra escura/com duas Pontas na testa,/por onde o

Donzel caminha,/ao lado se manifesta.//”, foca-se nas figuras do diabo e de Lampião,

o qual, embora chamado de donzel – moço puro e ingênuo -, marcou-se historicamente pelas práticas violentas e pelos inúmeros assassinatos de seus inimigos. Nesse sentido, estabelecem-se duas antíteses, uma que coloca como antagonistas o diabo e o cangaceiro e outra que divide o próprio Virgolino Ferreira, ou seja, a imagem heroica que assimilou durante muito tempo, como um Robin Hood do sertão, justaposta ao caráter sanguinolento de seus atos. Para além desse entendimento, contudo, é possível depreender uma releitura do folheto feita pelo narrador, direcionando o olhar aos contornos do Rapaz-do-Cavalo-Branco, o donzel que permanecera preso na masmorra e fora considerado morto, como se verifica na sequência do poema: “Desde a Cadeia onde o Moço/na morte foi sepultado,//”. Atualizando a figura de Lampião ficcionalmente, o Rapaz materializa uma sublimação daquele, manifestando apenas o homem bom, como parece ser Sinésio todo o tempo

do Romance. Os quatro versos que encerram a citação corroboram esses significados: “O Donzel, lustre e Candeia/que o Sol do sangue espadana,/carne

cravada de Estrelas,/Coroa da Raça Humana//”, e podem ser compreendidos como a

fusão das imagens do Rapaz e de Lampião. As palavras “lustre”, “Candeia”, “Sol”, “Estrelas” compõem o campo semântico de “luz”, remetendo ao apelido de Virgolino Ferreira e metaforizando a sua pessoa e a do Rapaz-do-Cavalo-Branco. Ambos se tornam símbolos, eternizando-se, um como ser histórico, outro como elemento mítico. Lampião é citado em pelo menos mais duas passagens no Romance, visto com admiração pelo narrador que lhe confere o tratamento de “Dom” Virgolino Ferreira, título atribuído a todos que considera fidalgos do Brasil. O Rei do Cangaço, como passou para a história, faz parte da cultura nordestina e brasileira, dedicando-se a ele e a seu grupo numerosos romances de cordel, trabalhos acadêmicos, filmes e séries de televisão. Ao trazer para a narrativa um folheto referente a Lampião, Quaderna joga luz sobre sua figura e colabora para a manutenção de sua história. Para além disso, sublima sua imagem ao relacioná-lo ao Rapaz-do-Cavalo-Branco, fusão de mito, cavaleiro medieval e sertanejo.

Para arrematar essa seção sobre a costura intertextual no Romance d’A

Pedra do Reino, é fundamental abordar a recorrência aos textos bíblicos que pontuam

todo o texto. Por vezes, transcrevem-se trechos inteiros, em outras partes, emergem reformulações textuais com vistas à adequação aos intentos do narrador. Embora aconteça um vasto passeio pelas páginas do livro sagrado, a releitura do apocalipse se efetiva com maior intensidade, porque o Romance d’A Pedra do Reino, entre outros gêneros que agrega, é também “profecia, que, no Sertão do Brasil, Quaderna tenta decifrar.” (CAMPOS, 2014, p. 750), aproximando Pedro Dinis Ferreira-Quaderna e São João:

Integrava ela, assim, aquele grupo zodiacal e astrológico de 24 Anciões, que meu velho e demente companheiro, o Cantador judaico-sertanejo João de Patmos, tinha visageado na sua Epopeia-enigmática e logogrífica, vulgarmente conhecida como “O Apocalipse”. (SUASSUNA, 2014, p. 740).

Avizinhar a história de Quaderna, ou a de Sinésio, ou a de outros personagens às histórias bíblicas, aproximá-los da vida daqueles homens de outrora promove uma espécie de sagração do tempo atual da narrativa, a fusão do divino e do profano, ação genuína do gênero épico.