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2. UMA ÉPICA DO SERTÃO-MUNDO

2.4. A ÉPICA MODERNA

2.4.3. A épica moderna e a busca por totalidade

2.4.3.1. Polifonia

A polifonia apresenta-se como mais um aspecto da épica moderna abordado por Franco Moretti (1996). O estudo de tal recurso nos textos literários remonta a Mikhail Bakhtin, quando este descreveu a produção de Dostoiévski como polifônica. A polifonia em literatura, portanto, revela-se na multiplicidade de vozes, ideologicamente distintas, contraditórias e polêmicas que constroem a obra e concretizam uma pluralidade de consciências equipolentes sem subordinação à voz do autor, como que pela busca de afirmação democrática e antiautoritária. Sob tal ótica, os personagens dostoievskianos não são “escravos mudos (…), mas pessoas livres, capazes de colocar-se lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele.” (BAKHTIN, 2018, p. 4)

Para Moretti, na épica moderna, essa diversidade de vozes, imiscíveis, são representações de um mundo “aberto, heterogêneo, incompleto” (MORETTI, 1996, p. 59, tradução nossa)28, desvelando todo o barulho da era moderna e afirmando a

necessidade de conviver com ele e de, principalmente, escutá-lo. Tal expediente evidencia, ademais, as muitas vozes de um mundo que se propõe a caber no espaço de uma obra literária.

O mundo, remodelado sobre as bases de um sistema capitalista em consolidação, que “destruiu o isolamento” dos mundos, fazendo “desmoronar o caráter fechado e a autossuficiência ideológica interna” (BAKHTIN, 2018, p. 20), expõe-se como terra fecunda para transformações referentes também à arte literária. Nesse sentido que os fundamentos contraditórios da vida social em formação no capitalismo apresentam-se como gênese do romance polifônico. A épica antiga não poderia sobreviver à disparidade desse mundo em processo de fragmentação e reconstituição e abertura de fronteiras.

As contradições e os desdobramentos do capitalismo não conduziriam uma formação orientada por uma lógica dialética; na verdade, neste novo tempo, as antíteses caminham lado a lado, consonantes, mas em momento algum miscigenadas, “irremediavelmente” contraditórias, “como harmonia eterna de vozes imiscíveis ou como discussão interminável e insolúvel entre elas.” (BAKHTIN, 2018, p. 34). De tais circunstâncias origina-se o traço da inconclusibilidade da épica moderna ou de uma espécie de diálogo interminável entre personagens, entre texto e outros textos, entre texto e o próprio leitor, cuja voz também é requisitada para unir- se à multidão de vozes delimitadas na diegese da narrativa. A falta de desfecho, o direcionamento ao infinito, a repetição e o moto contínuo, característicos da épica moderna constroem-se, em grande parte, relacionados aos aspectos da polifonia.

Examinado sob tal perspectiva, o Romance d’A Pedra do Reino revela-se, genuinamente, polifônico. Sua força expressiva origina-se no herói-narrador, heterogêneo e contraditório, saído de uma aristocracia decadente e estreante de uma nova classe. Em Quaderna, ajustam-se e contrapõem-se a erudição e o popular, o aristocrata e o funcionário público, o cômico e o sério, a covardia, o heroísmo, a mediocridade e a nobreza de caráter. Ele existe como autor de sua história, narrada por sua voz. Ao seu lado, convivem outros personagens, que falam de si e por si e ainda do próprio narrador, preenchendo algumas lacunas ou abrindo novas. Cabem também no Romance vozes externas, de historiadores, cronistas, poetas, romancistas e compositores populares.

A polifonia manifesta-se ainda na diversidade de discursos que se disseminam pelo texto, sejam eles políticos, sociológicos, religiosos ou morais. Exemplares são: a exposição formalizada pelo Comendador Basílio Monteiro, com severos ataques ao comunismo e a Luís Carlos Prestes, relacionando o grupo do Rapaz-do-Cavalo-Branco à revolução comunista; a longa exposição de Adalberto Coura acerca de suas convicções políticas; os intensos debates entre o professor Clemente, de esquerda, e o promotor Samuel, de direita; e as várias profecias de Pedro Beato, do Profeta Nazário, da Velha do Badalo e da própria moça Caetana.

Ademais, o discurso profético presente por todo o Romance estabelece uma profunda relação dessa narrativa de Suassuna com o gênero épico e principalmente com o destino do herói. O folheto XLV compõe-se de doze páginas de uma extensa

conversa entre Pedro Beato e Quaderna, onde se manifestam profecias, digressões e revelações:

- Acho sim, Dinis, meu filho! Talvez nem você saiba o que é, mesmo, esse pensamento escondido. Pois saiba que é o fogo que o Diabo sopra no sangue da gente quando se nasce, Dinis! Talvez nós conseguíssemos apagar esse fogo se fôssemos deixados sós, somente com as nossas forças e entregues à nossa sorte! Mas acontece que vem o batismo, e Deus, essa outra fera, obriga a gente a segurar outro fogo, o dele, aceso na mão do padrinho! A água e o azeite do batismo, esses ungem e passam. Mas o sal e o fogo ficam e queimam a gente a vida inteira! É esse fogo que nos come a carne e nos bebe o nosso sangue, deixando o homem transformado num esqueleto. Mas o fogo de Deus termina queimando até os ossos, expostos ao sol, e mesmo o esqueleto termina esfarelado, virado em cinza! Assim, de fato, é isso o que queima você por dentro, é o fogo de Deus e do Diabo. O que eu não sei é como esse fogo aparece em você por dentro, porque em cada pessoa é diferente! Mas aqui fora, vejo aparecer uma porção de coisas, o clarão de seu fogo, Dinis! Me diga uma coisa, por exemplo: você já perdoou os assassinos de seu Pai? Já perdoou os assassinos de seu Padrinho? (SUASSUNA, 2014, p. 310)

O questionamento de Pedro Beato a Quaderna refere-se ao assassinato de seu pai ou ao assassinato de João Suassuna, pai de Ariano? Toda a trama do

Romance d’A Pedra do Reino, carregada de enigmas, de aventuras, de guerras e

revoluções políticas, pode ser vista como redenção da história do personagem ou do autor que também viveu grande parte dos acontecimentos citados no livro, sobretudo a morte do pai, por motivações políticas, quando contava apenas três anos de idade? Seria possível que, pela escritura do Romance, tornado seu Castelo de sonho, Suassuna tentasse interpretar episódios de sua vida e conviver com eles, transfigurando-os. Assim como Quaderna, o autor reconhece a existência do bem e do mal, do amor e do ódio, de todas as forças contraditórias que habitam o homem, todavia parece acreditar também na força de reconstrução e de recriação que a arte possui e que, portanto, pessoas, ideias, objetos podem ser redimidos. Como afirma Campos (2014, p. 747): “Acredita na desgarrada e bela luta desta nação continente e nobre, fera a quem as jaulas do mundo não conterão submissa.”

Não obstante, as perguntas do beato continuam sem respostas, as dúvidas do narrador permanecem indecifráveis, ao leitor não se oferece nenhum desfecho. As várias histórias foram contadas, lançando-se mão de uma pluralidade de versões e de

pontos-de-vista. Nada garante quais são verdadeiros, quais os corretos, quais os confiáveis. Talvez não haja certezas. Talvez o necessário seja saber conviver com esse turbilhão, tentar ouvi-lo, como ressalta Moretti (1996). Sendo o Romance de Suassuna polifônico, decerto o mais sensato seria escutar todas as vozes que ali se encontram, a de Quaderna, como princípio, mas também as de todos os outros personagens que a completam. Outrossim, é plausível que a tudo se una a voz do leitor/ouvinte, que, assim como o herói deve voltar aos depoimentos quantas vezes forem necessárias para elucidar os enigmas, é interpelado a voltar ao Romance o quanto for preciso, em uma expectativa de compreender a multiplicidade que o constitui. Esse diálogo constante, esse avançar e retornar em fluxo contínuo, essa procura por respostas em meio à multidão alude ao fim “em aberto”, traço da épica moderna.