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Última versão do trecho final da dramaturgia

CENA 12

(Um bosque. Ouve-se um choro. Ilumina-se um canto onde Paulinho chora)

Judith: (escutando) A árvore tá chorando!!! (descobre que é o Paulinho) Paulinho! O que você está fazendo aqui? Porque você está chorando?

Paulinho: (assusta-se) Não! É que caiu um cisco no meu olho!

Judith: Cisco nada... Puxa, Paulinho, eu nunca ia imaginar que você viesse aqui pra chorar... Se ainda fosse o Gustavo... mas você!

Paulinho: Judith! Não conte pra ninguém, por favor!!! Você tem que prometer! Judith: Prometer o quê?

Paulinho: Que não vai contar pra ninguém que eu estava chorando! Você sabe, isso não é coisa de menino!

Judith: E eu lá sei o que é coisa de menino ou coisa de menina? Paulinho: Mas eu sei!

Judith: Sabe, é?

(pausa)

Chegam Wendel e Pâmela. Pausa. Todos se olham. Judith pega sua pá.

Judith: Quem são vocês? Wendel: Eu me chamo Wendel. Judith: Wenel?

Wendel: Wen- Del. Pâmela: Eu sou a Pâmela. Kelen: E eu sou a Kelen.

Paulinho: Eu sou o Paulinho e ela é a Judith. Judith: Vocês têm nomes engraçados!

Pâmela: Vocês também são muito engraçados.

Pausa. As crianças se observam por um tempo. Aos poucos, um deles sorri e então todos sorriem. Judith solta sua pá.

Wendel: O que você estava fazendo aqui com esta pá?

Judith: Estava cavando um buraco para fugir da minha sombra. Kelen: Mas qual o problema de ter uma sombra?

Judith: Nem te conto! (pausa) Vocês também fugiram de casa?

Pâmela: A gente não tem casa. Nossos parentes estão acampados perto daqui. Judith: Acampados? Que legal!

Kelen: Não é acampado de férias.

Wendel: A gente tá lutando pelos nossos direitos. Carece de ter coragem73.

Judith: Coragem eu tenho. Paulinho: O que é ter direito?

Pâmela: É uma luta que parece não ter fim. A gente tem direito a terra. E direito de ser o que a gente é.

Judith: Direito de ser o que a gente é. Gostei disso! Judith: Também quero lutar pelos meus direitos! Paulinho: Mas a gente não tem revólver e nem espada! Wendel: Você sabe cantar e dançar?

Paulinho: Eu sempre achei que para lutar tinha que ser bravo e mau... Pâmela: Não é assim, um guerreiro tem que ser bom, justo e alegre.

Wendel: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa

ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder então ficar mais alegre, mais alegre, por dentro!74

Os quatro se dão as mãos, em roda, e as crianças indígenas entoam a canção kaiowá “Overaporãporã, overaporãporã, Yvágaariguaheehehe, heehehe75. As

crianças brincam de peteca e de outras brincadeiras de rua, enquanto os músicos

73 Frase retirada da obra Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa.

74 Período retirado da obra Manuelzão e Miguilim, de Guimarães Rosa, na perspectiva da plagicombinação. 75 Canção kaiowá recolhida pela pesquisadora Graciela Chamorro, e traduzida por ela como: “Brilha muito bem

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executam a canção Bola de Meia, Bola de Gude, de Milton Nascimento. Ao final das brincadeiras, caem no chão, exaustas.

Kelen: A gente tem que voltar pro acampamento. Lá tem muita coisa pra fazer. Judith: Foi muito bom conhecer vocês!

Wendel: Pra gente também. Aguyje. Kelen: Aguyje.

Paulinho: A o quê?

Pâmela: Aguyje. Em guarani, é tipo assim... uma coisa perfeita. Kelen: Mas pode entender também como obrigada.

Judith: Guarani? Nunca ouvi falar! É tipo inglês? Paulinho: Guarani é coisa de índio. Vocês são índios?

Wendel: (orgulhoso) O pai fala que nós somos árajeguaka76 - enfeites do universo.

Judith e Paulinho riem.

Pâmela: Do que vocês estão rindo? Kelen: Vocês tão rindo da gente?

Os dois ficam sérios. Pausa.

Judith: Desculpa, não foi por mal. Paulinho: Vocês são índios mesmo? Wendel: Como assim?

Judith: É que vocês não têm cocar, e nem saia de índio com penas! Pâmela: E por que eu tenho que vestir isso?

Paulinho: Porque isso que é roupa de índio!

Judith: Por que vocês não pintam o rosto e nem usam arco-e-flecha, que nem nos livros da escola?

Pâmela: Sua boba! Você não sabe de nada! Wendel: Vamos embora, gente! (eles saem) Kellen:Jaha77.

Pâmela:(saindo)Mitãkuña’ivaí78!

Judith: Espera! (pequena pausa) Puxa, Paulinho, acho que eles ficaram chateados com a gente...

Paulinho: Chateados por quê?

Pausa

Judith: E a gente também ficou falando o que eles tinham que fazer, como tinham que se vestir... (pausa) QUE HORRÍVEL!!!! A gente fez com eles igual fazem comigo!

Paulinho: Como assim? Você não é índia! Por acaso alguém fala com você pra usar arco e flecha, cocar e roupas de índio?

Judith: Não, mas falam que eu sou menina e tenho que usar saia, vestidinho, laço de fita... é a mesma coisa! Ninguém devia dizer pra ninguém o que vestir e o que fazer! Isso não é legal!

Pausa

Paulinho: Sabe, Judith, eu acho que fazem isso com todo mundo! Comigo, com você, (acende-se a luz da plateia) com eles todos! Vivem nos dizendo o que podemos e o que não podemos fazer para ser aquilo que querem que a gente seja! E aí se a gente não faz o que eles querem, riem da gente... ou batem... Comigo é assim: todo mundo diz que eu tenho que ser forte, tenho que brigar, não posso dançar, não posso usar roupas coloridas... eu tento fazer tudo direitinho, mas nem sempre eu consigo... (pausa) às vezes eu fico triste e me dá vontade de chorar, como todo mundo, mas se eu choro na frente dos outros, me dizem que pareço uma menina... CANÇÃO DAS AZEITONAS

Letra: Christian Bruel, Júnia Pereira e Tatá Santana Música: Tatá Santana

76 Enfeite ou adorno do tempo/espaço (tradução nossa). 77Expressão kaiowá que significa “Vamos” (tradução livre).

78 Xingamento comum entre crianças kaiowá, traduzido pela atriz Sorrayla Parra, que aprendeu a expressão em

sua convivência com os kaiowá e a introduziu na dramaturgia. Em tradução livre, significa “menina feia” e/ou “menina má”.

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Vozes masculinas: Todo mundo diz que eu pareço uma menina. Vozes femininas: Todo mundo diz que eu pareço um menino.

Todas(os): Todo mundo diz que as(os) meninas (os) só devem fazer o que as(os)meninas (os) fazem! (etc, como na primeira versão)

Paulinho: Olha, Judith, agora está crescendo asas em você! (Paulinho brinca com a

fonte de luz, fazendo surgir asas na sombra de Judith)

Judith: Oh, não! (se vira) Ah, é você que está fazendo isso!

Paulinho: (ri) Olha que legal! Você pode ser um gatinho, ou uma baleia... Judith: Ou um macaco...

Paulinho: Eu tenho uma faca e vou matar você! Judith: Eu transformo a sua faca numa flor! Paulinho: É só uma mão! (riem)

(Judith e Paulinho continuam brincando com a fonte de luz e projetando sombras na tela. Pai e Mãe entram em cena pela plateia e perguntam ao público pela Judith)

Judith: Vem chegando alguém! Vamos nos esconder! (Judith e Paulinho se

escondem)

Pai e Mãe: (improvisam) Você viu uma menina com um vestido amarelo? Ela tem o cabelo preto, liso, até no ombro... Ei, você, estou procurando minha filha, você viu?

(procuram pelo palco, vão embora)

Judith (saindo do esconderijo): Acho que eram meus pais. Deviam estar me procurando.

Paulinho: E agora, o que fazemos, Judith? Judith: Vamos voltar para casa.

Paulinho: Mas o que vamos dizer?

Judith: Vamos contar que nos perdemos e depois achamos o caminho. Na certa, em casa vai dar confusão. Mas o que eu entendi hoje é mais importante que tudo. Temos o direito. Aconteça o que acontecer, agora eu sei.

CANÇÃO FINAL Letra: Júnia Pereira Música: Tatá Santana

A minha sombra já não me amedronta Não tenho medo, a minha sombra não sou eu

Ela é apenas uma imagem que eu faço, desfaço, refaço... Como um desenho no papel,

Um verso, um poema, Um passo de dança, A minha sombra não sou eu

A minha sombra é a projeção do meu corpo em movimento Meu corpo em movimento

Cria diferentes formas, transforma, performa:

Sombra de flor, sombra de pássaro, sombra de menino, sombra de menina, sombra de cachorro, sombra de ciborgue, sombra de Peter Pan (3x)

A minha sombra já não me amedronta Não tenho medo (2x) (PEREIRA, 2016, s.p.)

Tal versão dramatúrgica, ao ser compartilhada novamente com a equipe completa de artistas, em dezembro de 2016, gerou o seguinte comentário de um de nossos músicos: “A gente vai acompanhando a personagem Judith, se identifica com ela, vê ela como uma heroína, e aí ela dá um vacilo desses com os indígenas...” Interpretei, porém, esse estranhamento como positivo e me senti contemplada em meu desejo de inserção dos indígenas na dramaturgia por esta simples desconstrução da personagem como “heroína”, a partir do apontamento de suas limitações e da visibilidade de sua arrogância social em relação

134 às personagens indígenas, quando ela os questiona acerca de atributos indígenas que aprendeu na escola e que as personagens não portam.

Outro aspecto está ligado ao fato de que Judith vem sendo cobrada o tempo todo para que seja “uma menina de verdade”, que porte uma identidade coerente e reconhecível. Então, na cena com as personagens indígenas, ela reproduz essa violência que sofre, exigindo das crianças indígenas, igualmente, um comportamento coerente com uma identidade fixada socialmente. De acordo com Akotirene (2019): “O pensamento interseccional nos leva reconhecer a possibilidade de sermos oprimidas e de corroborarmos com as violências”. (AKOTIRENE, 2019, p.45). Tal reconhecimento se dá em cena logo que as crianças indígenas saem, e Judith grita: “Que horrível! A gente fez com eles igual fazem comigo!”

Desconstruir o heroísmo da personagem Judith esteve também muito coerente com nosso processo de amadurecimento e aprendizado durante a pesquisa temática realizada nesse trabalho. Para chegar a esse aprendizado, tivemos que passar por um momento de crise em nosso grupo de trabalho, que desconstruiu um pouco a imagem inicial que tínhamos de nós mesmas(os). Ainda de acordo com Araújo (2009), tal crise é comum em um processo colaborativo, pois as proposições de cada artista geralmente levam o grupo a se posicionar de forma heterogênea, contribuindo para um aprendizado coletivo:

Esse polo criador individual – por paradoxal que pareça – acaba também acirrando o posicionamento grupal. Ele provoca uma tensão produtiva, ou até mesmo um antagonismo, que fortalece o próprio grupo e o conceito-geral que este tem do trabalho – ainda que por via da crise e do conflito. Por outro lado, as individualidades também saem fortalecidas por essa dinâmica de confrontos, diálogos e negociações, presentes dentro do processo.

Aliás, poder-se-ia pensar a “crise” não apenas como uma consequência à qual o grupo está necessariamente fadado, mas como um mecanismo implícito e impulsionador em processos desta natureza. Ou seja, a sua deflagração pode ser vista não como uma reação espontânea e indesejada, mas como uma ação transformadora, produzida pelo próprio processo. (ARAUJO, 2009, 50)

Assim como Judith, também nós não éramos heroínas (heróis) e durante todo este período em que estivemos às voltas com a proposição de personagens indígenas na trama, estivemos imersos em uma crise coletiva que nos fez rever nossas posições em relação ao grupo de trabalho e aos modos e meios de produção teatral. O que estava em jogo, para além de uma simples opção dramatúrgica, era também nosso posicionamento político, social e racial, como indivíduos e como grupo, nossas visões acerca da função da arte e nossas expectativas em relação ao público.

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Capítulo 5

Jaity Muro