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Uma adaptação dramatúrgica a serviço das atrizes/dramaturgistas

Meu próximo trabalho dramatúrgico foi It (2010), do Grupo Dois Pontos11, no qual trabalhei simultaneamente como atriz e dramaturgista. O trabalho surgiu como um desdobramento do monólogo Atrás do pensamento, de Amanda Dias Leite, resultado de sua pesquisa de iniciação científica realizada em 2004/2005 na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Amanda construiu seu monólogo a partir da obra Água Viva, de Clarice Lispector, em pesquisa sobre tradução intersemiótica.

Em 2008, Amanda me convidou para retomar o trabalho com ela, e eu a princípio estaria na posição de diretora. Porém, logo após meu contato com a obra Água Viva, desejei também estar em cena e então surgiu a ideia de elaborarmos uma nova versão do trabalho, na qual atuássemos juntas. Em Atrás do Pensamento, Amanda fez a adaptação dramatúrgica, partindo de uma seleção de trechos do livro com os quais mais se identificou. Seu processo de criação utilizou principalmente os procedimentos de corte, colagem, reescrita e paráfrase, com o objetivo de se apropriar do texto de Lispector, tornando-o mais coloquial e adaptando-o ao seu próprio desejo de expressão.

Com minha entrada no processo, refiz o caminho traçado por Amanda a partir de minha própria leitura do texto, e chegamos a uma primeira versão dramatúrgica na qual tínhamos cada uma quatro pequenos monólogos, aos quais nomeamos provisoriamente

Renúncia/Morte Alegre, Sonoridade/Tarântula, Zerbino e Presente aos trechos escolhidos por

mim e Revolta contra Deus, A não palavra, Achados e Perdidos e Tempo aos trechos escolhidos por Amanda.

11Grupo Dois Pontos foi um coletivo criado em Belo Horizonte pelas(o) artistas Amanda Dias Leite, Júnia

Pereira, Marina Viana e Geraldo Octaviano. O grupo manteve atividades entre 2009 e 2013, e produziu o espetáculo It (2010), com direção de Marina Viana, e a cena curta Freaking People (2013), com direção de Dayse Belico.

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FIGURA 3 - Prólogo do espetáculo It, BH, 2010.

Grupo Dois Pontos.Da direita para a esquerda: Amanda Dias Leite e Júnia Pereira. Temporada de estreia, Teatro 171, Foto: Virgínia Pitzer.

Em 2009, a partir da entrada de Marina Viana como diretora na equipe e das experimentações na sala de ensaio, a estrutura foi se modificando: incluímos um prólogo e uma cena coreografada e o bloco temático “Tempo” deu origem a uma cena dialogada, que se entremeou aos monólogos. A estrutura final do texto ficou assim constituída, atuando Amanda como Mulher 1 e eu como Mulher 2:Prólogo (Mulher 1 e Mulher 2); Sonoridade (Mulher 2); Não-Palavra (Mulher 1); Só (Mulher 2); Revolta contra Deus (Mulher 1); Tempo (Mulher 1 e Mulher 2); Zerbino (Mulher 2); Estado de Graça (Mulher 1); Modo de Vida (Mulher 2); Achados e Perdidos (Mulher 1); Para não Morrer/Final (Mulher 1 e Mulher 2).

Não se tratava exatamente de um processo colaborativo, ao menos nos moldes da metodologia do grupo Teatro da Vertigem, pois além de se tratar de uma adaptação, a tríade ator-diretor-dramaturgo não existia: em um primeiro momento, trabalhamos somente eu e Amanda, simultaneamente, como atrizes e dramaturgas. Quando Marina Viana se integrou à equipe como diretora, o roteiro dramatúrgico já estava pronto. Apesar dessas singularidades, percebo que, no processo de seleção e adaptação do texto de Lispector, utilizamos o princípio do "depoimento pessoal" (RINALDI, 2006) do processo colaborativo, pois as escolhas feitas não giravam em torno da preocupação com a unidade e o sentido da obra original mas, ao

34 contrário, partiam de afetações muito pessoais em relação ao texto. Como exemplo, trago a memória da criação da cena “Modo de Vida”, na qual a seleção, adaptação e colagem dos trechos clariceanos feita por mim obedeceu ao critério de identificação com um sentimento muito pessoal de insatisfação e de invisibilidade, e não se guiou por uma preocupação com qualquer outro recorte conceitual ou com o sentido geral da obra de Lispector:

Tabela 2: Trechos da obra de Clarice Lispector selecionados para composição da cena Modo de Vida.

Seleção de trechos originais da obra Água Viva Cena/Versão Final o presente me foge, a atualidade me escapa (p.8)

Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela (p.14)

Mas pelo menos não estou imitando artista de cinema e ninguém precisa me levar à boca ou tornar-se aeromoça. (p.37)

Eu, que vivo de lado, sou à esquerda de quem entra. (p.38)

E conheço também um modo de vida que é suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contínua, de uma habilidade de esquivança que vem de longo caminho antigo. Como sinal de revolta, apenas uma ironia sem peso e excêntrica. Tem um lado da vida que é como no inverno tomar café num terraço dentro da friagem e aconchegada na lã. (...) Essa liberdade fugitiva de vida não deve ser jamais esquecida: deve estar presente como um eflúvio. (p.82)

Viver essa vida é mais um lembrar-se indireto dela do que um viver direto. (p.83)

E eu vivo de lado - lugar onde a luz central não me cresta. (p.83-84)

MODO DE VIDA (MULHER 2)

Ainda tem alguma coisa me escapando. Mas não vou estender a mão e pegar porque não seria um movimento gracioso, mas grosseiro, masculino. E eu não quero. Que seja o meu modo de vida a graça de movimentos, um orgulho suave, uma frustração leve e contínua. Sei me esquivar há tempos, vivo de lado. Vivo como se estivesse tomando café num terraço dentro da friagem e aconchegada na lã. Parece que convalesço mansamente de algo, que, no entanto, poderia ter sido absolutamente terrível. Viver é muito perigoso. Então eu só lembro da vida indiretamente e não a vivo diretamente. Essa habilidade fugitiva de vida é a minha herança. Sou fraca Macabéa sexo frágil?I'mluzer?

Pelo menos não estou imitando artista de cinema e ninguém precisa me levar à boca.

Essa grande liberdade na adaptação do texto me foi dada pela apropriação da metodologia desenvolvida por Amanda na versão anterior do trabalho, mas também se influenciou pelo trabalho dramatúrgico de Marina Viana, nossa diretora, que naquele momento investigava as possibilidades da plagicombinação12 na criação realizada a partir de

12Criado pelo artista Tom Zé (1998), o conceito de plagicombinação diz respeito aos procedimentos de cópia,

apropriação, colagem e combinação. Nas palavras do músico: "Determinadamente, em todas as músicas eu tinha a preocupação de tirar alguma coisa de outro lugar. A era do compositor, do autor acabou. Agora é o

35 fragmentos de outros textos. Assim, também no processo de criação de It, além do texto de Clarice Lispector utilizamos referências de outros autores como Nélson Gonçalves, Ernesto Sábato, Ferreira Gullar, Guimarães Rosa, Caetano Veloso, além de textos nossos e de canções que compuseram a trilha sonora. A ideia era ser coautora, autora, performer.

FIGURA 4 -Cena Modo de Vida, espetáculo It,BH, 2011.

Grupo Dois Pontos.Em cena, Júnia Pereira. Temporada no Teatro Sesi Holcim. Foto: Glauce Guima.

Uma questão que surgiu para nós durante a divulgação do espetáculo foi em relação ao nosso trabalho ser ou não ser feminino. Internamente, em nosso processo de criação, a questão de gênero se refletiu em nosso trabalho especialmente no figurino, pois inicialmente eu usava um vestido e Amanda um terno e ao longo do trabalho nossa imagem ia se alterando e caminhando para a desconstrução e para a mescla dessas duas imagens femininas: uma (terno) do mundo do trabalho, mais ligada à razão e à vida pública, e outra (vestido) mais ligada à emoção, à sensualidade e à vida privada. Essas duas diferentes performances de

plagicombinador[...] Somos um alfabeto de referências. Uso esse alfabeto em pequenas células, como plágios ou citações. Essa é a estética do arrastão, da bricolagem." (Zé, 1998, on-line)

36 gênero (BUTLER, 2015b)13 formaram um binômio a partir do qual estruturamos visualmente nossa presença cênica. Apesar disso, o título It, sugerido por Marina para o espetáculo, expressa um gênero neutro e nossa visão interna do trabalho não era a de um trabalho feminino, embora feito por mulheres. Para nós, o espetáculo – assim como a obra de Clarice que o inspirou – tratava de temas universais, comuns a todas as pessoas: a existência, o tempo, a morte, a solidão. Como o próprio nome diz, o nosso trabalho, em nossa visão, era it.

Para nossa surpresa, a recepção do trabalho foi nos mostrando que nosso gênero seria quase sempre marcado em nosso trabalho, e não pela forma com que performávamos, cenicamente, esse gênero, mas apenas por sermos lidas, socialmente, como mulheres. Ainda que não estivéssemos tematizando questões restritas às mulheres, a equipe feminina na dramaturgia, direção e atuação e a referência de Clarice Lispector como base de criação já eram suficientes para que o trabalho fosse recepcionado como “feminino”.

Observamos que em nossa plateia a maior parte do público era composta por mulheres e nos jornais era comum que o espetáculo fosse divulgado com alguma vinculação ao “feminino”. Tal fato pode estar relacionado com a pouca presença de mulheres na dramaturgia mineira daquele período: assim, saltava aos olhos, pela sua diferença ou pioneirismo, o gênero das autoras. Em reportagem de janeiro de 2011, a jornalista Thais Pacheco faz um apanhado da dramaturgia mineira presente na “Campanha de Popularização do Teatro e da Dança” daquele ano. De acordo com ela, de quase setenta trabalhos produzidor por dramaturgos(as) mineiros(as) em cartaz no período, nosso trabalho era um dos poucos escritos por mulheres:

Dos 141 espetáculos adultos em cartaz, quase metade foi escrita por mineiros. Também entram na lista clássicos, releituras e vários textos de dramaturgos estrangeiros. Se for considerada a produção autoral nacional, os mineiros são

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Judith Butler (1956) é uma filósofa estadunidense e professora da Universidade da Califórnia em Berkeley. Seu trabalho abarca os temas do feminismo, da teoria queer e da filosofia política e ética. Em seu livro mais conhecido, Problemas de Gênero (GenderTrouble, 1990), Butler questiona a sujeita do feminismo e a ordem compulsória entre sexo/gênero/desejo. A filósofa teoriza a performance de gênero como uma forma de

(re)produção de si como corpo generificado. Tal performance não é, entretanto, aleatória ou livre, como muitas vezes interpretado pelo senso comum; mas se relaciona com o contexto social e político. Conforme expresso pela autora em Quadros de Guerra (Frames of War, 2009): “O corpo, na minha opinião, é onde encontramos uma variedade de perspectivas que podem ou não ser as nossas. O modo como sou apreendido, e como sou mantido, depende fundamentalmente das redes sociais e políticas em que esse corpo vive, de como sou considerado e tratado, de como essa consideração e esse tratamento possibilitam essa vida ou não tornam essa vida vivível. Assim, as normas de gênero mediante as quais compreendo a mim mesma e a minha capacidade de sobrevivência não são estipuladas unicamente por mim. Já estou nas mãos dos outros quando tento avaliar quem sou”. (BUTLER, 2015c, p. 85)

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maioria na campanha. [...] começando na dramaturgia, Júnia Pereira é uma das poucas representantes femininas no ofício – ao menos nos espetáculos da Campanha. (PACHECO, 2011, p. 5)

O rótulo de dramaturga feminina, que me foi dado por outrem, era motivo de incômodo, mas também de orgulho. Ao mesmo tempo em que foi importante para dar visibilidade à minha produção, por meio, por exemplo, da reportagem citada, incomodava que o trabalho não fosse visto sem esse marcador, pois, em se tratando de dramaturgia produzida por homens, o rótulo “masculino” não era utilizado: meus colegas homens, ao contrário de mim, não apareceriam no jornal como “representantes masculinos” no ofício.Somente a produção feminina merecia um destaque de gênero, o que tinha um aspecto positivo, por trazer visibilidade; mas também negativo, pois tal visibilidade já antecipadamente a enquadrava em um contexto a partir do qual deveria ser visualizada.